A mulher que morreu duas vezes

Notícias Magazine

É uma das cenas mais famosas do cinema. Três minutos que levaram seis dias para filmar, três minutos em que, mais de meio século depois, todos juram ter visto o corpo delicado de Janet Leigh no chuveiro a ser esfaqueado pela mãe do dono do mo­tel, em Psico. Sim, todos sabemos que não era a mãe, coisa nenhu­ma, o assassino era o filho disfarçado, a quem a cara amargurada de Anthony Perkins emprestava os traços freudianos que, na vi­rada dos anos 50 para 60, tanto estavam na moda em Hollywood e nos filmes do grande Alfred Hitchcock. Mas essa troca, mãe pe­lo filho, não era o único engano naqueles três minutos.

Desde logo, nenhuma nudez foi vista pelos espetadores. As for­mas da jovem que tomava banho estão tão esbatidas pela cortina baça e pela dança das câmaras quanto a cara da falsa mãe que se aproxima para matar. Nítida é a água a cair do chuveiro e a escorrer para o ralo da banheira, a mão aberta a escorregar pelos azulejos, a cortina arrancada das suas argolas e a cara de Janet Leigh já morta, olho aberto, impressionantemente aberto apesar das gotículas que o agrediam. E lembrem-se, para já, desta contradição: em 1960, as leis morais de Hollywood não permitiam um corpo nu, mas deixa­vam que víssemos um brutal assassínio em todo o seu esplendor.

Janet Leigh (1927-2004) era então atriz consagrada e não ia dei­xar que nas filmagens fosse vista nua, mesmo com garantia de que as imagens claras não chegariam ao público. Ora a cena fundamental do chuveiro não permitia fuga. A cortina tapava, mas havia segundos sem cortina, as câmaras dançavam, mas quem estivesse no plateau ve­ria. E, sabe-se, Alfred Hichcock (ele que se apaixonava por todas as suas atrizes louras: Grace Kelly, Eva Marie Saint, Tippi Hedren…) não iria desdenhar estar a meio metro, como esteve, do belo corpo nu que to­mava banho de pé… As câmaras foram intrometidas até aos pormeno­res, a boca aberta num grito, os cabelos curtos varridos pelo chuveiro e até uma axila não depilada – e, sim, aí estava Janet Leigh , a virtuo­sa. Mas não, nunca vimos, nem esbatido, o corpo nu de Janet Leigh.

Por 500 dólares, a ruiva Marli Renfro, modelo fotográfi­co, aceitou ser body double. Isto é, nas cenas do chuveiro, corpo de substituição. Ela tinha belas medidas, 91-59-89, e parte disso vê-se no único momento que junta a faca e o corpo: a cintura estrei­ta e os quadris generosos. Quanto aos problemas morais, nenhum: Marli Renfro já tinha sido capa de várias revistas de nudistas. Po­rém, tanta exposição nas filmagens levava a uma contenção: os 500 dólares do contrato obrigavam a nunca revelar que entrara no filme. Ao longo de décadas o segredo ficou difuso como a nu­dez em Psico. Marli Renfro até teve uma capa da Playboy fazendo de coelhinha, mas isso era fraca compensação quando se deu cor­po, literalmente, a uma das cenas emblemáticas do cinema mundial.

Em julho de 1988, um tipo estrangulou duas mulheres em Los Angeles. Um jornal publicou que uma delas tinha sido body double em Psico. Voltou a história da mulher por trás da cortina. Na verdade, a morta chamava-se Myra Davis. E esta, se substituíra Janet Leigh, foi só para testar a luz antes de a atriz entrar em ce­na (chama-se a isso, no cinema, fazer stand-in). Em todo o caso, com a confusão, Marli Renfro foi pela segunda vez desapossada do seu corpo sob o chuveiro.

Há anos, ao ler a condenação do assassino de Myra Davis, o es­critor americano Robert Graysmith resolveu seguir essa história. Ele costuma escrever sobre crimes reais e o paradoxo entre a realidade e a ficção à volta de Psico levou-o a interessar-se pela histó­ria. The Girl in Alfred Hitchcock’s Shower não é um grande livro mas é uma obra de misericórdia para com Marli Renfro, que ainda es­tá viva. Ninguém merece ter ficado tanto tempo sob um chuveiro e ainda mais atrás de uma cortina.

[Publicado originalmente na edição de 20 de abril de 2014]