A corrida de galinhas

Notícias Magazine

Há uns anos, passei uma noitada de amigos em que o Ulisses de Joyce foi o começo de conversa, trazido pela brasileira Dulce, que fumava de boquilha e era professora na Universidade de São Paulo. Ela comparava a tradução já antiga de Antônio Houaiss com a, então, acabada de sair, feita por João Palma-Ferreira. Dulce pre­feria a do seu compatriota, lembro-me de a ouvir encantada com al­gumas soluções de tradução: «sapatos biquilargos», «nenúfar pleni­desabrochado»… O dono da casa disse que ele e a mulher já tinham estado num Bloomsday, o dia 16 de junho em que a gente de Dublin percorre as ruas da cidade que foram vividas por Leopold Bloom, a personagem de Ulisses. A Dulce respondeu: «Lá em São Paulo tam­bém comemoramos o Bloomsday nas nossas festas juninas…»

Alguém me perguntou: «E tu, gostaste de Ulisses?» E eu disse, sem fugir ao correr da conversa: «Já estive em Bonsall, na cor­rida de galinhas.» Ninguém sabia onde ficava Bonsall e não há nada como uma ignorância coletiva para prender a atenção. Um dia, con­tei, ia por uma pequena estrada do Devonshire, por aqueles campos ingleses com muros de pedra e casas de pedra, e um fio de asfalto por onde nos cruzamos com raros MG verdes e descapotáveis. Furei, de noite, à entrada de um aldeia chamada Bonsall, a sul de Manchester. Arranjaram-me quarto na Barlow Mow Inn, uma estalagem. O pa­trão tentou convencer-me de que furei no momento certo e no lugar certo. No dia seguinte aconteceria ali uma corrida de galinhas, úni­ca no mundo. Mas o que me convenceu a ficar foi um cartaz sobre a lareira. Dizia: «A felicidade é a jornada, não o destino.»

Durante o jantar na Barlow Mow Inn tentei adiantar con­versa sobre o que seria uma corrida organizada de galinhas. As ga­linhas que eu tinho visto correr na minha vida, incluindo as pe­quenas cabiris, da minha infância, podiam ser rápidas mas ti­nham sempre o trajeto incerto – Fângios, talvez, mas Agostinhos que se metiam pelo pinhal nas descidas íngremes. Vi o meu pai, pelas picadas de Angola, a pagar muita galinha que se metia nos rodados do camião ao passarmos nas sanzalas. O que seria uma corrida com galinhas? «Só visto…», espicaçava-me o estalajadeiro entre duas canecas de cidra.

Na manhã da corrida, um sábado, a Barlow Mow Inn en­cheu-se e a concorrência era ainda maior e barulhenta à porta. Os camponeses vizinhos traziam gaiolas que se empilhavam. Perto, sobre um caminho de chão negro varrido (expulsando os insetos, perturbadores para as atletas), uma vedação de plástico a meia al­tura de homem delimitava a pista de 20 jardas, cerca de 18 metros. Em cada corrida, entravam para um topo os proprietários e as ga­linhas, quatro pares, era dada a partida e acontecia a emocionante corrida. Ou não acontecia. Porque enxotadas, o primeiro metro era feito em debandada, uma ou outra até voava, mas depois tudo caía no acaso. Havia as que iam em ziguezage, outras paravam e recua­vam, algumas debicavam o chão em vão… Nas corridas daquele dia, só uma galinha chegou à meta, um estreito tecido vermelho pousa­do no chão. As outras provas tinham acabado ao fim de quatro mi­nutos, prazo estipulado há cem anos, com as concorrentes indife­rentes à fita vermelha.

À ausência de competição das galinhas correspondia o empolgamento dos apoderados que lhes falavam, baixo e ao ouvido, línguas estranhas, e a multidão que as incitava, com o mesmo inte­resse que numa Volta a Portugal tem o público das bermas das Pe­nhas da Saúde. A corrida de Bonsall transmitia-me uma mensagem, não sei qual, interessante. Talvez o interesse das coisas sem meta. Dulce teve de admitir: «Corrida dessa no Brasil não tem, não.» Toda a gente quis saber mais, desviou-se a conversa e continuou-se nela. A corrida de galinhas tornou-se o assunto maior daquela noite.

Hoje, tantos anos depois, já a corrida de Bonsall é mundial, a Hen Racing World Championship, e é transmitida pela BBC. Con­tinuo sem saber porquê, mas foi o mais feliz furo da minha vida.

Publicado originalmente na edição de 10 de agosto de 2014.