As paredes e os espaços públicos da ilha de São Miguel, nos Açores, têm-se enchido de graffiti. Mas dos bons. É o festival de arte pública Walk & Talk, que vai na quarta edição e já chegou às páginas do The New York Times.
No meio da Avenida Marginal de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, está um enorme contentor roxo. A proximidade da doca, onde atracam cargueiros todos os dias, provoca a curiosidade. Dos locais e dos muitos turistas que por ali passam. É esse o objetivo. Este contentor é um cartão-de-visita do festival Walk & Talk, que se diz de arte urbana e que, por estes dias, regressa à ilha dos Açores, onde começou, há quatro anos. Vêm uma série de artistas que intervêm em espaços públicos, em murais, no porto, em edifícios abandonados, jardins, ruínas ou fábricas. Pelo meio há dança, poesia de rua, workshops, cinema, performances e conversas.
No contentor roxo estão indicações sobre a edição deste ano. Há uma seta que mostra o circuito de ruas com intervenções e outra que aponta para a galeria Walk & Talk, mesmo no centro da cidade. Alexandre Farto, o supergraffiter português mais conhecido por Vhils, é um dos convidados. Conhecido pelos rostos que esculpe em paredes, numa espécie de graffiti de baixo-relevo (tem até 5 de outubro uma exposição retrospetiva da carreira patente ao público no Museu da Eletricidade, em Lisboa), é uma espécie de embaixador do festival e marca presença pela quarta vez consecutiva.
E como é que um festival de orçamento reduzido e organizado por dois jovens locais atrai tantos artistas, visitantes e curiosos, é alvo de atenção no The New York Times e coloca São Miguel no mapa dos eventos do género à escala mundial? Sobretudo sabendo-se que nenhum artista recebe cachet (há apenas um valor, não revelado pela organização, para cada produção). A resposta passa pela capacidade de persuasão de Diana Sousa, 28 anos, e Jesse James, 26.
Os dois empreendedores, filhos de micaelenses, vivem em Lisboa, mas passam boa parte do ano na ilha, a preparar o festival. Um dia lembraram-se de exibir trabalhos de arte pública de forma livre e sem curadoria, num local improvável e quase remoto. «Temos conseguido nomes muito fortes na área da intervenção pública talvez porque o meu nome intimide», brinca Jesse James, nome de pistoleiro americano, que não usa o apelido Moniz profissionalmente – é filho de um imigrante. «Os artistas detetam aqui uma hipótese de estar à vontade e depois da segunda edição, o boca-a-boca fez o resto.»
Mas não foi fácil realizar um evento deste género numa ilha onde pouca coisa ainda acontece culturalmente. Para isso foi essencial o apoio da Câmara Municipal de Ponta Delgada e do Governo Regional dos Açores. «Essa foi uma das nossas maiores lutas, sobretudo se pensarmos que o Governo é PS e a autarquia PSD. Não foi nada fácil. Mas sempre batemos o pé para termos independência. Este é um festival sem cor política!» A prova do sucesso é o facto de, de ano para ano, o orçamento aumentar.
E o número de visitantes também tem crescido. «Um festival deste tipo só resulta em cidades de periferia como Ponta Delgada», diz Diana Sousa. «Em grandes cidades perde-se o sentido de comunidade.»
O artigo publicado na edição online do The New York Times a 27 de junho também veio dar uma ajuda. A jornalista Jeanine Barone realça uma capacidade de atmosfera de festa de rua do festival, embora não mencione as muitas festas que são organizadas à noite e que este ano, na inauguração, contou com um dos melhores DJ portugueses da atualidade Nicolai Sarbib. Isto ao mesmo tempo que David Guetta atuava num festival de verão na lagoa das Sete Cidades. Outro nome de peso? A presença do artista plástico Julião Sarmento nas Talks, a secção onde o festival, em jeito de conferência, põe artistas a refletir sobre a arte. Sarmento começou precisamente a sua masterclass a realçar que não é de todo um artista que interaja com espaços públicos.
Mas este Walk & Talk é cada vez mais um festival de diversidade artística. Neste ano, além de cruzar artistas de registos e áreas diferentes, apostou no serviço educativo, exibição de filmes e performances na rua. E o mérito cultural do festival é consubstanciado com o amor que a população tem pela iniciativa. Há cada vez mais voluntários e pode mesmo falar-se de trabalho de comunidade, sobretudo na maneira como a cidade é cúmplice em arranjar condições para ajudar os artistas. Há mesmo o caso de uma pintura no asfalto feita por centenas de micaelenses por iniciativa da agência micaelense HDG e do atelier de arquitetos Sala 2.
No Walk & Talk, o cidadão também intervém. Conta-se também a história de um protesto no Facebook pela demolição de um edifício que albergava um mural do artista Smile 1 Heart. A organização teve de emitir uma mensagem a lembrar que faz parte deste tipo de intervenção artística um certo caráter efémero. E o curioso é que ao longo de três anos as obras que ficam nunca foram vandalizadas, antes pelo contrário. Apenas dois dos quatro homens de cimento de Mark Jenkings, criados em 2012, foram arrastados das rochas para o mar, mesmo ao lado do forte. O vândalo foi o mar. Também as obras de Liqen, consagrado artista espanhol, foram pensadas para mais tarde exibirem as marcas da deterioração. E quem fizer o circuito do que ficou dos outros Walk & Talk acaba por ir parar sempre ao alto da cidade, onde numa pequena quinta, numa casa em ruínas, é imperioso sentir o Abraço à Ruína, obra de culto de Vhils.
Neste ano, Filipa Francisco, com o grupo de dança açoriano 3725, criou em residência em Rabo de Peixe o espetáculo Cardume. Durante semanas, a coreógrafa e os bailarinos andaram pelas ruas da vila mais problemática de São Miguel para extrair uma energia dos habitantes, nomeadamente das crianças. «Sempre ouvi falar deste local mas nunca tinha vindo aqui», diz a coreógrafa. «A experiência foi forte. Encontrei um teatro vivo.»
Quem quiser fazer o circuito na cidade encontrará espaços criados por artistas nacionais como Carolina Backlar, Fidel Évora, Fernanda Eugénio, Jorge Santos, Luís Brum, Mariana Andrade, Rui Areias, Mariana – A Miserável, Ricardo Barbeito, Susana Aleixo Lopes ou Robert Panda. Do estrangeiro chegam nomes como Labuenaylamala (Espanha), Hyuro (Argentina) Marlon de Azambuja (Brasil) ObiePlaton (Roménia), Jeremy Blackar (Estados Unidos), Gabriel Specter (Canadá) e Gustavo Ciríaco (Brasil). Por outras palavras, alguns dos maiores nomes mundiais da arte urbana estiveram ou estão na ilha de São Miguel.
Tudo está bem anunciado, com mapas em folhetos e aplicações para smartphones. Na galeria, está neste ano Retiro, de Nuno Alexandre Ferreira e João Pedro Vale, ou uma instalação do grego Christos Voutichtis. Há ainda uma peça do português Pascal Ferreira.