Não sei se terá sido de ir ao cinema ver o filme que fala de um dos meus pesadelos recorrentes, ficar à deriva no espaço, a ver a Terra a afastar-se cada vez mais, mas a verdade é que me parece que à deriva também andamos por cá, mesmo que de pés assentes no chão.
Esta cosmovisão do mundo que se tem vindo a impor nas nossas vidas, sem que alguém a tenha convidado a entrar, faz-se notar em grande parte daquilo que vemos e fazemos. Na forma como tentam que passemos a pensar. Na forma como tentam que nos passemos a relacionar.
Uma das relações mais importantes para uma sociedade que aposte na acumulação de conhecimento é a relação entre mestre e mestrando, entre o novo e o velho (parece que “velho” passou a palavra maldita, com conotação negativa e ofensiva, mas insisto em utilizá-la de forma positiva e elevada). Num mundo perfeito, andariam sempre aos pares, o novo e o velho. Mas parece que a relação privilegiada entre mestre e mestrando se tem vindo a desintegrar progressivamente, à medida que se vão instalando ideias que glorificam uma juventude plena de superficialidades, mas vazia da força de mudança que a deveria caracterizar e menorizam a vetustez, associando-a à perda, ao invés do ganho.
Esvaziou-se o novo e o velho das suas propriedades mais importantes e destruiu-se a sua relação, vital para o avanço do conhecimento e de uma sociedade cada vez mais evoluída. Um sem o outro é desperdício. Ao novo, a inexperiência de vida ainda não lhe colocou travões à criatividade. Para o novo, tudo é possível, basta que se tenha audácia e ímpeto. Ao velho, a experiência poder-lhe-á ter limitado a espontaneidade, mas entregou-lhe a argúcia e a clarividência, essenciais para fazer vingar ideias novas e audazes.
Funcionaram sempre em regime de simbiose. Um, fornecendo vitalidade e novidade, outro contribuindo com um sistema de conhecimento sólido e fundado na experiência e maturidade. Pena será que se encontrem agora à deriva um do outro. Por vezes mesmo um contra o outro. Um embaraço, ver-se como se relega à condição de estorvo quem já tenha ultrapassado um prazo de validade imposto por normas ISO qualquer coisa. E uma certa incredulidade ao ver como se condescende facilmente em relação aos que ainda agora começaram o seu caminho.
Separar para conquistar terá sido o motivo deste afastamento, talvez. Provavelmente, se analisarmos as ideias que nos têm vindo a ser impostas, sob a forma de intervenções, externas e internas. Ao capital, não lhe interessam as mesmas coisas que ao conhecimento. Portanto, a sociedade do capital será sempre regida por valores completamente diferentes dos valores que regem a sociedade do conhecimento.
Passámos de uma para outra de forma algo abrupta e meio imposta, sem que a mudança de paradigma fosse resultado de um sentimento generalizado de mudança, mas antes uma cosmovisão que se impôs à força e à revelia. Esta cosmovisão é algo tacanha e bastante provinciana, visto que nunca saiu dos gabinetes onde nasce. É pequenina porque se centra em coisas que são pequeninas e que pouco contribuem para a resolução das grandes questões humanas.
É, se preferirmos, uma nanovisão, dado o curto alcance e o desconhecimento do mundo à sua volta. Não o poderia conhecer, uma vez que a sua construção não depende de contributos nem de novos, nem de velhos. Às vezes, parece que nem de seres humanos. A única coisa que conhece são equações, cálculos de risco. Coisas estéreis, que não conseguem gerar ideias, nem fazer avançar a humanidade. Fazem-na é andar assim à deriva, desconjuntada, desagregada, perdida no espaço sem nada a que se agarrar.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[03-10-2013]