Joel Neto

Tempestade cerebral


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

No que pensará o Artur quando enfia os anéis que chegaram com os brinquedos de madeira dentro da cafeteira italiana que vai surripiar ao armário. O que verá ele naquela cafeteira: um local perfeito para entesourar as preciosidades? A câmara onde se esconde um bilro mais fixe do que aquele com que os anéis vieram emparceirados? Uma caixa sem graça, como é próprio do alumínio de má qualidade, a cujo cinzentismo só uma série de argolas coloridas poderá resgatar?

E o que imaginará quando, aborrecido da cafeteira, vai ao carrinho da cozinha buscar as cebolas que depois encontramos dentro da salamandra, debaixo dos almofadões do sofá, no interior de um par de sapatos largado há meses na sapateira desconjuntada do corredor?

Quase tudo o resto no meu filho me encanta. Mas, fascinar, fascina-me em primeiro lugar isso. Imaginar o que se passa dentro daquela esfera rosada que é a sua cabeça, tão infantilmente careca ainda, enquanto ele aprende as funções das coisas, as relações entre elas, as proporções relativas do Mundo. A tempestade que hão-de provocar aquelas sinapses, trovejando uma por cima da outra, enquanto o seu hipocampo vai acumulando, absorvendo, sugando, digerindo.

Está numa fase delirante, o Artur. Num dia diz que não com a cabeça, querendo com isso significar anuência, e no dia seguinte – sem que nenhum de nós tenha conseguido identificar o momento em que o dirimiu – já corrigiu o erro. De manhã a Marta põe-se a cantar com ele aquela canção do Olá e ele diz “Olá!” em todos os momentos errados, mas quando ao fim do dia chega a casa, e é preciso distraí-lo porque o jantar ainda não está pronto, já sabe não só em que parte do refrão lhe cabe dizer “Olá!”, como que aquele outro “Olá” que vem nas estrofes não é o dele.

Está tudo a acontecer, ali. E também disto se fará, aliás em maior escala do que aquilo que às vezes queremos admitir, o homem que virá a ser. Chega a ser frustrante estar do lado de fora, a coleccionar os sinais do percurso, sem poder assistir realmente ao modo como as peças daquele tetris se vão encaixando, pulverizando e acolhendo novas peças ainda. Mas, ao mesmo tempo, ele pode vir a precisar da crónica desse processo, nem que seja por mera curiosidade, e jamais um cronista mereceria esse nome se não trouxesse consigo, ao mesmo tempo, uma certa capacidade de maravilhamento e a infinita ignorância de que essa capacidade depende como de mais nada.

No fim é sempre isso: uma história. Tivéssemo-las todas sistematizadas e à mão, e nem o Mundo seria a desordem que é, nem nós próprios o seríamos.