Joel Neto

Qualquer coisinha


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Sentados na cozinha ampla da Lapa, respiramos fundo. Em frente temos o Julien e a Yara, que esvaziou o frigorífico para nos salvar. O dia foi tão esgotante, os três alinhados nos bancos altos de um furgão decorado com a marca de uma rent-a-car estrangeira – centenas de quilómetros acima e abaixo, a recolher livros de que outros quiseram desfazer-se -, que nem nos lembrámos do jantar. Mas a conversa é o encanto de sempre. Falamos do Louis e do Tiago, que ainda comem em casa. Falamos da Marie e do Pierre, já tão crescidos, um em Paris e outro em Lille. Falamos do Artur, à mesa connosco. Falamos dos projectos, os nossos e os deles.

Só a Yara continua inquieta. “Desculpem, não tinha os ingredientes todos”, diz. Há anos que nos dá guarida em Lisboa: instala-nos no anexo ao fundo do jardim, entrega-nos uma chave, manda renovar toalhas e lençóis. Somos como irmãos há mais de 30 anos, e agora ainda lhe devo isso. Mas, para ela, não chega. “Peço desculpa, não consegui ir às compras”, volta. O Julien ri-se: “É uma coisa mesmo portuguesa, ‘desculpa’, ‘peço desculpa’, peço imensa desculpa’…” E nós rimo-nos também, porque todos sabemos que é verdade – e mesmo ele, que é francês, não está imune.

De onde vem a culpa? Integrámos todos os pecados que levaram Jesus a ser pregado na cruz, coitado, que tanto lhe deve ter doído? Estamos todos a pagar pelo esforço dos nossos pais para nos proporcionarem uma oportunidade, sacrificando as suas próprias vidas e voltando para ajustar contas com isso? Tivemos todos mães neuróticas e egocêntricas, mais ou menos competitivas, empenhadas em fazer da chantagem o supremo instrumento de manipulação? Tudo isso junto?

Não sei. Sei que, desde antes até do Artur nascer, nunca falámos tanto de nada como da culpa, a Marta e eu. Somos escravos dela, os dois, e nem podia ser de outra maneira: daí vêm os livros, como os filmes, as cantigas, as maiores invenções, as grandes descobertas científicas, a própria economia. E talvez não tenhamos outra consciência como temos disso: de que o nosso filho, os nossos filhos serão tão completos e felizes quanto forem capazes de escapar à culpa, ou pelo menos de rechaçarem os seus efeitos.

E, claro, também é um gesto de arrogância, a culpa. Até uma cobardia. Partimos do princípio de que somos capazes daquilo tudo, que um simples gesto nosso pode produzir todo aquele efeito, e ao mesmo tempo protegemo-nos de confrontar os verdadeiros responsáveis, de enfrentar quem quer (e o que quer) que seja. Mas a virtude já será ambição em demasia. Quem nos dera, por ora, conseguir ensinar a liberdade.