Por que razão gostamos de nos mascarar?

Aproxima-se esse tempo em que nos podemos disfarçar por brincadeira, evadindo-nos para ensaiarmos novas personas e invertermos a ordem normal do dia a dia. É Carnaval, ninguém leva a mal. Mas porque o fazemos de verdade?

De onde vem esse gosto que leva tantos a quererem colocar uma máscara e transformarem-se durante o Carnaval? Afinal, metemos ou tiramos, aproveitando uma época de evasão sem censura? O que diz de nós a escolha do que usamos para tapar o rosto? A celebração da folia a coberto do anonimato tem séculos, mas não perdeu o seu papel.

“O uso de máscaras é velho como o Mundo”, diz o sociólogo francês Jean-Martin Rabot, docente na Universidade do Minho, explicando que, nas sociedades primitivas, eram usadas nas cerimónias rituais e era através delas que, por exemplo, os vivos estabeleciam relações com o mundo dos mortos, dos espíritos. Em todas as civilizações antigas, da egípcia à grega e romana, as máscaras tinham um lugar.

“No teatro, a máscara servia para figurar inúmeras personagens diferentes. Nos carnavais, a máscara generalizou-se”, adianta Rabot, apontando que há carnavais muito antigos, como o de Veneza, que tem origem no século XI.

O Carnaval, refere ainda o sociólogo, é um ritual que, à semelhança de outros, “tem como função o retiramento da ordem social e de regeneração dessa mesma ordem”. As máscaras são essenciais nestes processos, já que “garantem o anonimato das pessoas” e esbatem barreiras.

A máscara “permite quebrar a barreira social, torna as pessoas intercambiáveis, acaba com a identidade de género, de status, classe, permite inverter os papéis sociais, aniquilar as hierarquias”. No passado, insiste o académico, era pelo meio das máscaras “que os povos contestavam de forma ritual as hierarquias e as regras sociais”. E hoje, a avaliar pelas sátiras que acompanhavam vários corsos, a contestação parece continuar a desfilar.

Jean-Martin Rabot enfatiza que “o homem é plural, não tem uma identidade fixa”. Aliás, a palavra “persona”, em latim, significa máscara. E a grega “prosopon”, aquele que se apresenta à vista dos outros, também remete para a máscara, para a pluralidade de aparências.

Mais recentemente, o psiquiatra Carl Gustav Jung “definia a persona como alguém que não é em realidade, mas que é o que ele próprio pensa que é, o que os outros pensam que ele é”. A persona é a mascara, “a pessoa não é una, é múltipla”, sumariza o docente da Universidade do Minho.

Rumemos a essa festa, que está marcada para domingo, dia 11 de fevereiro, e terça-feira gorda, dia 13. Telmo Baptista, psicólogo e psicoterapeuta, realça que esta que se avizinha é uma época de “folia controlada e autorizada, com data e hora no calendário, para quem gosta poder ensaiar outras personas diferentes”. A pessoa explora outras formas de estar durante aquele tempo, “experiencia uma espécie de novo papel na sua vida”.

Nesta altura “há muita coisa que é aceite sem censura social, faz parte do relacionamento, do provocar a folia, a galhofa, é uma forma de escapar ao funcionamento do dia a dia, ter uma evasão durante alguns dias que permite tudo isto e depois dá lugar à vida como de costume”, acrescenta o também diretor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.

E se para alguns é um momento de pausa apenas, para outros é fundamental haver “espaço para este lado importante da vida, do gozo, da festa, da folia”. E, já agora, de se fazer crítica social e política através dos carros alegóricos e desfiles, de forma “muito clara, pública, muito participada”.

Para Telmo Baptista, a escolha da máscara pode dizer muito sobre quem a põe. A escolha “não é à toa” e cada um decide o que quer “encarnar”, pese embora por vezes haja algum condicionamento pelos disfarces mais disponíveis ou comuns. Pode ser de um personagem de ficção favorito ou alguém com poder, o que é certo é que “traduz aquilo com que a pessoa se identifica naquele momento”. Não quer dizer que seja algo que permaneça no tempo, mas “a vontade de encarnar aquela personagem” pelo menos uma vez, está presente.

As pessoas, continua, fazem a escolha de máscaras em função da maneira como olham para o mundo e como projetam os seus anseios, medos, desejos. Têm a máscara para poder fazer isso e para se protegerem ao mesmo tempo. “Com a máscara sou eu e não sou eu. Posso fazer aquelas coisas todas como se fosse, embora saiba que não sou. Estou protegido porque estou por detrás da máscara”, detalha, assinalando o facto de a tal máscara criar, por um lado, “anonimato” e, por outro, “a possibilidade de exercer um papel”.

Também para Mariagrazia Marini Luwisch, o Carnaval representa “uma ideia de liberdade para as pessoas e de liberação da rotina quotidiana e das regras sociais. Vestir uma fantasia permite que a pessoa se possa exprimir de uma maneira diferente e de experimentar novas personalidades e comportamentos. Podem sentir-se mais livres, sem censura moral, social ou religiosa para mostrarem uma outra identidade”.

A psicóloga clínica e psicoterapeuta de origem brasileira, uma terra onde o Carnaval tem uma grande expressão social, salienta que as pessoas podem ter “uma fantasia saudável”, levar na brincadeira. Ou, ao vestirem um disfarce e colocarem uma máscara, podem “exprimir alguma fantasia mais íntima, mais secreta, que tenham vergonha ou medo de mostrar, que não demonstrariam no dia a dia normal”.

A escolha do disfarce pode dizer muito sobre a “personalidade, problemas, medos”, mesmo que de forma “inconsciente”, adianta Mariagrazia Luwisch. “Dependendo da fantasia, podem exprimir coisas que não exprimiriam. Depende da personalidade, do seu mundo interno.” Um Robin dos Bosques pode ser apenas um Robin dos Bosques ou ser a escolha de alguém que “tem esse desejo interno de ajudar e ser útil” mas não o consegue fazer na vida real, exemplifica.

Há quem não goste ou tenha “problemas de timidez”, mas, para muitos outros, o Carnaval, que surge no final do inverno e começo da primavera, é, afirma Mariagrazia Luwisch, um “novo renascer” que as pessoas aproveitam para “soltar coisas reprimidas”. Ou, porque não, tirarem a máscara com que, no diariamente, se “apresentam ao mundo exterior”. Para alguns, o Carnaval permite serem “mais verdadeiros e mostrarem a sua parte interna que de outro modo teriam medo em mostrar” por receio de censura ou preconceito. O Carnaval pode ser esse tempo, o tempo em que a loucura é permitida.

A transformação da identidade que pode ocorrer neste período carnavalesco, às vezes, “ajuda a que uma pessoa descubra algumas facetas que, com a ‘máscara normal’, não conseguia descobrir” ou expressar, frisa, por sua vez, o psicólogo João Fernando Martins. Há todo um ambiente de interação social nestas festividades e as pessoas podem colocar de lado os “filtros” que usam com algumas pessoas e comunicar de outra forma. Dizerem “coisas que não diriam se não estivessem a usar uma mascara”.

Atos específicos de celebração, como este do Carnaval, que foram passando culturalmente de geração em geração, têm “utilidade também do ponto de vista psicológico ou cognitivo”, assegura João Fernando Martins. Não serão todos, mas para alguns pode haver uma “catarse, uma libertação do ponto de vista emocional”, pois há pessoas que vão contendo emoções e interações sociais e “acabam por extravasar nestes momentos de celebração”.

Voltemos a Rabot. A “forma” como se celebra o Carnaval ao longo dos tempos e latitudes tem mudado. Mas, afiança o sociólogo da Universidade do Minho, “a função é a mesma, é permitir a uma coletividade reencontrar-se, reforçar a sua unidade, simulando a introdução de um caos” e depois “regenerar a ordem”. Quando esta folia terminar, reza o calendário litúrgico católico que se segue o período da Quaresma, que é por norma de jejum e maior contenção.

Mas cessará realmente após três dias? Para Rabot, hoje em dia há “quase como uma carnavalização do mundo”, uma generalização das máscaras. “As identidades, que eram bem delimitadas, têm tendência a apagar-se. A máscara permite mostrar uma multiplicidade de aparências.”