O rapaz do violino
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
A orquestra é grande, maior do que quando a vimos pela primeira vez, mas eu não tardo a notar a presença dele. Tenho uma prima entre os primeiros-violinos, um sobrinho no grupo das trompas. A certa altura, Tamila e Paul chegam-se à frente, para o Duplo Concerto Para Violino, Viola e Orquestra, de Bruch – ela no violino, ele na viola, como parece ser regra entre casais -, e fica claro que poucas vezes o auditório, mesmo sendo também casa de um festival de jazz respeitado, atingiu paixão evidentemente maior. Mas, mesmo assim, é aquele rapaz que vejo em primeiro lugar.
Está na esquerda baixa, e quase tudo nos aconselha a olhar noutra direcção. O papel de um segundo-violino raras vezes é reconhecido, e ademais comprimem-no (à frente) os primeiros-violinos, (atrás) a harpa e (ao lado, mas à boca de cena) uma adolescente aloirada a que aquele arroubo colectivo podia confundir se, na verdade, fosse rapariga de se confundir. Mas a certa altura começam as valsas, de que um concerto de Ano Novo não pode dispensar-se, e eu volto a olhar na direcção dele.
Contorce-se na cadeira, manobrando o arco num staccato. Sacode a cabeça nas tónicas, com os joelhos inquietos sobre os botins. Olha a loirinha num desafio: “Libertemos os segundos-violinos, chegou a nossa vez!” Olho-o e volto a olhá-lo, de propósito e sem querer – adolescente também, na recta final, uma farta melena escura, baixote -, e digo a mim mesmo: “Podia ser o Artur.” Digo-o, envergonho-me, mas dali a pouco já estou a dizê-lo de novo. “Um violinista ardoroso e bonito. Quantas horas de trabalho não estão ali, no delírio com que brande a seda sobre as cordas?”, pergunto-me. “Porque não hei-de eu ter um filho assim?”
Foi a primeira vez que pensei tal coisa, e, quando o confessei à Marta, ela arqueou as sobrancelhas: “O que estás a tentar fazer? Espalhar-te ao comprido?!” Ah, sim, eu lembro-me do efeito que tinham em mim as expectativas dos meus pais: se me queriam médico eu adoecia, se me viam missionário (não perguntem) eu virava ateu. Portanto, se digo ao meu filho o quanto me encantaria que ele se tornasse músico – um solista da primeira fila, um clarinetista do coração da orquestra, um rapaz dos membranofones lá de trás -, o mais provável é que ele vire pedreiro, ou agente de seguros, ou “senhora contina”, como lhe chamo quando se põe a arrumar as cebolas.
Mas, caramba, porque hei-de eu negar-me esse momento de desejar que o meu filho seja aquilo que não fui? Se não começamos já, como é que vamos conseguir traumatizá-lo em condições?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)