Jorge Manuel Lopes

Estados Unidos de Beyoncé


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Mais do que um álbum dominado pelo country ou por outro género qualquer, “Cowboy Carter” (Parkwood/Sony) contém uma confluência de Américas tecida por Beyoncé. Canção de abertura e fecho, “American Requiem” é mais expectante do que afirmativa. O sotaque é texano, o som levemente psicadélico, californiano, hippie, gospel, barroco na cascata de vozes, espetral – e já contém as sementes do que vem logo a seguir, uma versão cúmplice e feliz de “Blackbird” de The Beatles; e “16 carriages”, difícil de definir, musical da Broadway reduzido ao osso, poeira do deserto no cabelo, guitarra slide lá longe e um ritmo invulgar, espaçado, duro, de labor físico. Quando há country mais explícito, ele pode chegar trajando a linguagem comum da pop, caso da efusiva “Texas hold ‘em” e da melancólica “II most wanted”, onde Miley Cyrus é uma voz gémea, imaculada.

Num disco com um pequeno exército de vozes convidadas, músicos, compositores e produtores, destaca-se a constância criativa de Raphael Saadiq na primeira metade, coroada pela fluidez solar de “Bodyguard”, animada por guitarras acústica e elétrica e por um motor rítmico de promessas fervilhantes de primavera. Seguido por um The-Dream quase tão camaleónico como Beyoncé, retornando ao universo sonoro de “Blackbird” em “Alligator tears”. Há momentos hip-hop em “Spaghettii” e “Tyrant”. Há uma alusão subtil às pistas de dança em “II hands II heaven”, o momento mais levitante e pungente do álbum. Há um cruzamento surpreendente com o footwork durante a rapsódica “Sweet honey buckin’”, que teve Pharrell Williams no laboratório.

A plasticidade da interpretação de Beyoncé, o modo aparentemente espontâneo com que consegue mergulhar em múltiplos estilos de canção, já eram dados adquiridos, mas que “Cowboy Carter” reforça e amplia. Um álbum que é um detalhado fresco americano, em múltiplos painéis. Não se procura a coesão sonora. O que aqui se forma é um puzzle de peças contrastantes que, ligadas sabe deus como, criam uma narrativa luxuriante. Visto de cima, este disco é uma nação – densa, imperfeita, diversa.