Valter Hugo Mãe

Conceição Queiroz


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Ontem mesmo, entrando no meu café de sempre, ouvi alguém dizer que existem duas filosofias distintas no movimento Skinhead, uma que se assume racista e outra que acredita que a cabeça rapada potencia o pensamento, desocupa o corpo de seus afazeres biológicos para se esmerar numa dimensão imaterial que leva a uma maior profundidade das ideias.

No meio da discussão, ouvindo com seu habitual jeito alegre, uma amiga negra procurava avançar na noite, beber uma cerveja sem debates intrincados, rir do novo ano, que o costume é levarmos todos nas trombas. Na verdade, a minha amiga tem mais de meio século de força, uma vida toda erguida de procurar não ouvir, procurar não perguntar, porque se o fizer sabe bem que a comunidade branca é maioritariamente detentora de preconceitos torpes, ignorâncias graves, uma cansativa propensão para o louvor colonialista que cabe os negros num folclore e os brancos na esteira da imediata erudição.

São poucas as pessoas negras com quem me vou deparando numa terra como Vila do Conde, mas suficientes para lhes sentir essa espécie de apagamento perante as conversas. Uma certa fuga por dentro que se torna a única maneira de criar paz numa realidade que lhes é adversa. As pessoas negras estão como que convidadas à branquitude. Obrigadas a fazer como os brancos, pensar como os brancos, para serem brancas, postiças, “curadas de suas origens”.

Conceição Queiroz, jornalista que todos conhecemos do mundo da televisão, tem sido um rosto raro na elite estreita da informação nacional, e publica agora uma meditação a que chamou “Racismo – Meio Século de Força”. Neste livro, a jornalista estabelece uma espécie de diálogo onde todas as vozes da agressão são convocadas. Cria a impressão de uma fantasmagoria em torno da pessoa negra, o que tem que ver com a radicação estrutural dessas vozes de ataque, proibindo as pessoas negras em sociedades brancas de herança colonialista. Trata-se de um diálogo furibundo, à altura do quanto o racismo representa de matança, tortura, desumanização, exclusão.

Perante um sistema que, no mínimo, escolhe o silêncio e a perpetuação do costume branco em cima de qualquer identidade, creio que não posso sequer imaginar quanto se agridem as pessoas negras constantemente secundarizadas, mandadas calar ou mandadas ir embora, como se não houvesse Portugal para elas, como se não houvesse Europa para elas. Vamos necessitar de mil anos de escuta para podermos passar perto de entender. E julgo que apenas com mil anos de redenção poderemos começar a sentir que algo sana dentro das pessoas, das que adoecem por serem predadas, das que são doentes por predarem.

Este é mais um testemunho que, com sua nitidez, e até violência, tem de vir a debate. Só o debate nos pode levar a conhecer o abismo acarinhado pelo preconceito tácito, dominante, que Portugal mantém.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)