Como proteger as crianças das notícias de guerra

À medida que o tempo vai passando, as crianças crescem, fazem-se adolescentes e o desafio fica mais e mais difícil para os pais

Primeiro, a Ucrânia, depois a Palestina e os noticiários e redes sociais carregados de retratos de horror, repetidos infinitas vezes. O impacto nos mais pequenos é óbvio, até porque não percebem o porquê, nem onde está a acontecer. Há sintomas de ansiedade que podem saltar à vista. E sim, há estratégias para evitar a exposição constante. Acima de tudo, é importante falar sobre o assunto, sem esconder a realidade.

O dia era 24 de fevereiro de 2022, a memória não deixa esquecer. A invasão da Ucrânia às mãos da Rússia, uma guerra em plena Europa, mudou o Mundo e desde então que enche noticiários com retratos e relatos de horror. Mais de um ano depois, em outubro de 2023, o conflito israelo-palestiniano, no Médio Oriente, escalava sem perdão. Nas televisões, nos jornais, nas redes sociais, por toda a parte a moldura do sofrimento humano, dezenas de milhares de mortos, a passar constantemente à frente dos nossos olhos. As imagens repetem-se infinitas vezes e se isto é perturbador para os adultos, para as crianças mais ainda.

“Claro que estas imagens, as horas consecutivas, os diretos das televisões, têm impacto. Com uma agravante, é que as crianças não percebem o que está a acontecer, o porquê e nem sequer sabem onde é que está a acontecer. Os adultos sabem que Israel é longe, mas as crianças não têm esta noção de espaço. Ao verem estas imagens, não sabem se é à porta delas ou do outro lado do Mundo.” Há sempre o risco de uma interpretação desajustada pelos mais novos, do medo até de que a guerra também os afete a eles e lhes bata à porta. Segundo Catarina Lucas, psicóloga e diretora do Centro Catarina Lucas, “obviamente que isto pode gerar quadros de ansiedade, nomeadamente pesadelos, dificuldades em dormir sozinho, medo do escuro”. Os mais pequenos podem ficar confusos, assustados, tristes, irritados, fazer mais birras, manifestar uma série de sintomas ansiosos. Sim, devemos tentar proteger as crianças da exposição repetida a imagens traumáticas, mas esconder por completo a realidade também não é o caminho.

Comecemos, pois, por aí, por não tapar o sol com a peneira. Até porque, avisa Sofia Ramalho, especialista em psicologia da educação e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, “mesmo que os adultos queiram controlar, é muito difícil que as crianças no seu dia a dia não tenham acesso a estas imagens, na televisão, na Internet, em conversa com os amigos”. Por isso, mais vale trabalhar a informação. Ou seja, “os pais e cuidadores devem falar sobre o assunto com as crianças, antecipar dúvidas, preocupações, perceber o que é que elas estão a sentir”.

Esse talvez seja o primeiro passo de todos, aproveitando a circunstância de uma pergunta ou o momento em que uma notícia passa na televisão. “Os adultos devem começar por explicar o que se passa, com uma linguagem adequada à idade, e permitir que a criança ou jovem expresse o que pensa e sente sobre o assunto, para tentar também aceder aos seus pensamentos e ideias. É importante escutar e validar o que as crianças estão a sentir, que pode ser um medo real, mesmo a guerra estando longe. Daí ser relevante explicarmos que não está perto e que não corremos perigo, também para tranquilizar”, sugere Sofia Ramalho. Mas, atenção, há que evitar as confabulações. “Devemos responder sempre com a verdade ou com parte dela”, aponta Catarina Lucas. “Claro que tem de ser uma verdade ajustada, parcial, devemos dar apenas a informação estritamente necessária.”

Não esconder o Mundo, mas tentar controlar

Aqui chegamos a um ponto relevante, o de não mentir. Uma coisa é não expor de forma constante as crianças a imagens de pessoas mortas ou mutiladas (e lá iremos, a estratégias para o evitar), outra coisa é “proteger demasiado”. Catarina Lucas chama a atenção para isso mesmo. A guerra na Ucrânia, o conflito entre Israel e o Hamas, tudo isso é a realidade. E quando se explica o que está a acontecer, o melhor é simplificar, mas sem mentir. “Para que as crianças percebam, de forma educativa, o que é uma guerra, o que significa, que impacto tem, até para as sensibilizar e trabalhar a empatia.” De modo a que não cresçam numa bolha, alheadas da realidade, e “entendam que o Mundo não é perfeito”.

A também psicóloga Sofia Ramalho tende a concordar. “Não podemos proteger as crianças de tal forma que as impedimos de ter acesso àquilo que faz parte da experiência do Mundo.” Aliás, dar informação fidedigna, diz, pode ser uma oportunidade para “educar a geração futura para a não violência e para a paz”. “Para trabalhar a cidadania das crianças, para as ajudar a mostrar empatia pelos outros, para desenvolverem formas de resolver situações de conflito e tensões, competências de não violência”.

Dito isto, e feita a ressalva, como é que podemos evitar que os mais novos sejam permanentemente bombardeados com imagens violentas? “No caso do noticiário televisivo, tentar fazer uma dieta no acesso à informação, porque é muito repetida, ou se possível assistir às notícias em conjunto com as crianças”, sugere Sofia Ramalho, para assim haver a hipótese de contextualizar. Quando refere “dieta no acesso à informação”, no fundo, é evitar ter a televisão ligada nos canais informativos quando a criança está presente, o que implica que os pais vejam as notícias num horário em que não estão com os filhos.

Já no que toca às redes sociais, a coisa muda de figura. A Internet é um canal em que o controlo é muito mais difícil. E também aqui a vigilância parental, a monitorização é indispensável, não só para evitar a exposição excessiva a este tipo de notícias e imagens, como para qualquer outra coisa. “Este é um grande desafio. Obviamente não controlamos tão bem o que eles veem na Internet. Até determinada idade, é possível supervisionar o telemóvel ou o tablet, perceber os conteúdos a que acedem”, aponta Catarina Lucas. Mas quando os miúdos começam a crescer, sobretudo a partir da pré-adolescência, “invadir os equipamentos eletrónicos, vasculhar os dispositivos deixa de ser aceitável, porque mina a relação pais-filhos”. Aí, o segredo está em dialogar, “tentar que o filho diga que conteúdos é que vê, sem invadir a sua privacidade, conversar sobre isso, responder a dúvidas”.

Televisões e browsers, os bloqueadores não intuitivos

Olhando para a televisão e para os dispositivos eletrónicos, também se pode recorrer aos bloqueadores de conteúdos, formas de impedir que as crianças acedam a canais que os pais consideram perigosos. Mas Henrique Santos, professor da Escola de Engenharia da Universidade do Minho, que trabalha em cibersegurança há mais de 20 anos e acompanha a evolução das normas internacionais, ressalva que é preciso os pais quererem (e muito). “Curiosamente, recordo-me que quando era jovem havia horários predefinidos nos noticiários da televisão. Imagens de guerra ou outras mais violentas só passavam à noite, só que hoje temos canais noticiosos 24 horas abertos, os pais têm de ir ativamente definir mecanismos de proteção. E ultimamente tenho-me deparado com muitos pais que não o sabem fazer.”

Começando pelas boxes televisivas, “as instruções estão lá, mas são muito pouco evidentes, podia existir um vídeo explicativo mais intuitivo, é preciso ter o cuidado de as procurar e de perder duas horas a perceber como é que aquilo é feito”. De qualquer forma, há sempre a alternativa de recorrer à secção “Ajuda” da box para chegar às instruções dos bloqueadores. “É possível criar dois perfis na box, um para os adultos protegido por um pin e outro para as crianças. No das crianças, podemos aplicar filtros, bloquear uma série de canais, nomeadamente os canais de notícias”, explica.

Também na Internet se podem criar contas para crianças e para adultos nos browsers, e aplicar filtros consoante o utilizador. “Porém, não é algo fácil de se fazer. É possível, mas exige um conhecimento mais profundo. Além disso, muitas vezes, as imagens no Youtube e no Tik Tok não têm aquilo a que chamamos de metadados, e sem isso fica difícil aplicar filtros”, refere Henrique Santos. A solução “seria existir uma lista abrangente de IPs proibidos, haver regulamentos, normas, e teria de envolver operadores, reguladores, fornecedores de conteúdos”. Porém, acredita, “não parece haver vontade”. “A verdade é que os conteúdos que hoje aparecem no ciberespaço estão quase indiscriminadamente disponíveis para toda a gente. E aos olhos das crianças, muitos deles serão difíceis de entender e podem até causar alguma ansiedade se não forem devidamente contextualizados e explicados. É uma faceta da Internet que devia estar mais acautelada”, defende o docente.

À medida que o tempo vai passando, as crianças crescem, fazem-se adolescentes e o desafio fica mais e mais difícil para os pais. “A educação é essencial aqui. Hoje vivemos numa sociedade que depende das tecnologias de informação de forma quase exclusiva. E, infelizmente, não há uma disciplina de educação para o ciberespaço.” Para que as crianças e jovens cresçam conscientes de que “a Internet é uma ferramenta excecional, mas tem os seus perigos”. “Atualmente, não adianta ir para as escolas explicar o Excel ou o Word. Educar em tecnologias já não é isso. Trata-se de ensinar a usar o ciberespaço com segurança e efetiva utilidade”, alerta Henrique Santos.

Mas essa é uma discussão para outros carnavais. Por enquanto, cabe aos pais o controlo e a educação, sem proteger em excesso. O caminho estará sempre numa boa dose de bom senso.