Joel Neto

Brincar: mesmo


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Se eu vos contasse como o meu filho trata dos cães ao acordar, ou lhe chamavam conversa de escritor, ou lhe chamavam hipérbole de pai. E, no entanto, é assim. Trocada a fralda, o Artur dispara na direcção da cozinha, a pensar – como sempre – em comida. A meio do corredor, lembrado dos cães, estaca. Levanta a ponta do cobertor sob o qual a Colette dorme. Baixa-se para lhes dar uma festa a cada um, ela e o Gauguin. E, antes de comer ele próprio, vai tratar deles.

Primeiro, devolve as malgas aos dois lados da porta que costuma dividir os comensais, para evitar quezílias. Depois avança pelo corredor fora, em busca da estante onde se aninha a caixa da ração. E, entretanto, estica-se até conseguir deslocar a caixa sobre a prateleira. Leva com a caixa em cima, caindo ao chão com ela. Passa um minuto inteiro a tentar levantá-la entre as mãos. Atravessa de volta todo o corredor, com a barriga esticada e a mesma determinação do início. Abre a caixa com dificuldade, os dedinhos lutando contra o aperto da abertura. Acocora-se frente às malgas, de um lado e do outro da porta. Verte a ração com dificuldade. Apanha pacientemente cada grão caído sobre a tijoleira, acomodando-o na malga onde devia ter-se aninhado. Faz todo o caminho inverso até a caixa lhe cair mais duas ou três vezes em cima. E, quando enfim consegue repô-la na prateleira, sacode as mãos uma na outra, a celebrar a tarefa cumprida. “Ahhh…”

Podia ser um cartoon cómico, que me faria rir sem dificuldade. E também podia ser um vídeo épico, que era capaz de fazer chorar de enlevamento os calhaus do passeio mais anónimo. Mostra um bebé de 16 meses que tardou a andar sozinho, ainda fala muito pouco, mas come uma sopa inteira com uma colher na mão direita e, por ora, não gosta de mais nada como gosta de tratar dos seus cães (coisa que, aliás, volta a fazer à tarde, entre o jantar e o banho). E eu, porque sou o pai dele, mas também porque tudo em mim, até hoje, gritou autonomia e responsabilidade, sempre a autonomia e a responsabilidade como únicos únicos caminhos para a liberdade, sinto-me um pouco mais orgulhoso do que devia.

Mas, mesmo abusando, persisto em acreditar nisso: brincar ao trabalho também é uma maneira de brincar. Talvez nem sequer haja nada de realmente mais formador do que isso, e a verdade é que, quando olho para a minha própria infância, também não houve nada mais divertido.