Valter Hugo Mãe

Amar


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Não é porque vem aí o dia de São Valentim – que julgo ser sobretudo uma folia comedora para favorecer restaurantes e floristas, e eu gosto mais de plantas vivas do que de flores decepadas a morrer à pressa – que me ocorre a ideia de amar. Deve ser da Primavera súbita, este Inverno que nos deu um sol que jamais veio tão fora de tempo. Deve ser de ter perdido a Isabel e andar a pensar que as almas punks me acabam, como se estivéssemos a acabar com quem foi do avesso das hipocrisias e, por isso, a favor de uma esperança sincera nos afectos. Estou como os colibris, como os bichos que se abeiram uns dos outros, fico atento aos amores como se nunca tivesse visto. Fico varado diante de quem beija, de quem segura a mão de outrem, de quem sorri sem máscara perante alguém. Gosto de quem gosta.

Quando me perguntam, digo sempre que sou contra o amor, tenho uma pedra no peito, quero ser indemnizado, deviam prender e punir quem insiste em usar o coração. É teatro. Digo porque troco tudo pelo riso, como fazem os que têm de acordar de novo e trabalhar, imitando indiferença para quanto falta e quanto agride. Contudo, verdade inteira, é que considero lindo o amor, mesmo que pouco higiénico e destrambelhado, um pouco aflito e meio emburrecido. Considero edificante, muito vitamínico, mudador. As pessoas que amam estão sempre em horas extras, como se vivessem para lá do dia, para lá do corpo, para lá do que há. São em duplicado.

Vamos ao café e o nosso café não tem engates. Julgo que por ser tão informal e costumeiro, ninguém se veste para lá ir. Vamos despenteados e de panos velhos. Não há empenho nem sedução. Refilamos muito contra sermos os idosos do café, quando a malta abundante tem 20 anos de idade e deve ter horror de nossas melancolias, o debate político, a cultura punk a sobrar. Refilamos porque o povo da nossa geração virou demasiado burguês e aparece às seis da tarde, essa hora horrenda que avia as conversas a correr porque é preciso ir ao fogão, escolher um vinho, ver a novela. O povo da nossa idade está na rotina da abnegação. Já não veste de preto, já não quer saber se o Peter Murphy vem dar concerto. É a derrocada de toda uma filosofia de vida, um paradigma humano, uma luz que explicava a noite, uma esperança, de facto.

Vem aí o São Valentim e nós certamente vamos estar a dizer mal de tudo, mas eu, com nostalgia punk e sempre de ar severo, vou calar mas adorar ver quem ama. Quero sempre ver mais gente que ama. É mesmo o sentido disto tudo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)