Joel Neto

A tangerineira


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Tenho uma foto da Marta em cima dela. Empoleira-se como uma menina, esticando a mão em busca de tangerinas frescas, e de repente há um momento em que já não é uma recém-chegada, insegura e assustadiça, mas a jovem mulher por quem esta casa esperava há mais tempo do que sabia. E tenho mais, sobretudo memórias. Das tardes em que me pus a olhar para ela com o meu pai. Dos dias em que trouxemos cá o Ti José Nogueira, a podá-la como deve ser. Do alívio do meu avô ao saber que ao menos ela tinha sobrevivido à salmoura com que secámos o resto do pomar, para fazer um campo de futebol. Dos domingos em que, terminado o trabalho do quintal, atravessei o Bacelo com dois sacos e um gancho na mão, para a tosquiar com pormenor.

Vi-a ontem pela última vez, arrancada e largada a um canto pelo caterpillar com que o novo vizinho alisou o terreno. Nunca foi minha: era só uma árvore de que eu cuidava, reinando indisputável sobre a única parcela das propriedades de José Guilherme que acabaria por não conseguir resgatar. Doeu-me, porque não estava preparado para vê-la assim. Passou-se toda uma geração em que foi a única velha árvore desta quinta a produzir fruta. Recebeu-me com reverência, quando voltei de Lisboa, e ainda este Inverno a trepei semanalmente, a colher-lhe as tangerinas. Acho que nunca me passara pela cabeça que quem comprasse aquele cerrado poderia arrancá-la. Na minha alucinação, ainda seria a primeira árvore a que o Artur treparia.

E suponho que sim, que fizesse sentido cortá-la. Era só uma tangerineira: apenas mais uma planta com que o novo proprietário nem sequer tinha uma história. Mas também era o que restava desse tempo de descoberta e intimidade a que chamei regresso.

Entretanto, o meu pai já não mora na ilha. O Melville morreu. O Chico retirou-se da jardinagem: há toda uma galeria de personagens que eu julguei que me ajudariam a cuidar do meu filho e com as quais, afinal, não posso contar. Uma delas era aquela tangerineira. Às vezes penso em tudo o que tenho de transmitir e sinto que não serei capaz sem eles. Mas a certa altura olho para a Marta, para o modo como se relaciona com este lugar, e depois para o rigor como se ocupa da livraria e das suas alunas da ginástica, e para a precocidade com que o Artur aprendeu a comer sozinho, ou a levar um pente ao cabelo, ou a meter uma chave a uma porta, ou a soprar a sopa quando está quente – todas essas novidades que me traz a cada cinco minutos que passa só com a mãe -, e não há uma só das minhas velhas personagens cujo contributo ele não possa obter de outra forma.