Virgílio Castelo: “Os criadores olham para a RTP como um banco”

Virgílio Castelo é ator há quase cinco décadas. Faz teatro, cinema, televisão. Jamais se deixou fascinar pelo poder - e já teve muito. A representação é um modo de vida improvável, um acaso feliz. Poderia ter sido um aventureiro, não se imagina sem poesia. Tem três filhas e duas netas. Fez 70 anos no passado domingo, dia 26 de fevereiro, e juntou a família. Parabéns.

Em 1978, uma bolsa da Gulbenkian permitiu-lhe estudar representação em Estrasburgo, França. Era já um ator profissional, conhecia o caminho da emigração – nascido numa família humilde, com 17 anos fora trabalhar nas obras do aeroporto de Orly, em Paris. Reconhecido, escolheu a Fundação para cenário da entrevista. Três da tarde, sol e muito frio, dia de folga da novela “Sangue oculto” (SIC). Muito longe de parecer ter 70 anos, vem preocupado com Portugal. “Esta discussão sobre os palcos do Papa é tão infantil. Este país intriga-me muito.”

Foi para a representação com 21 anos, por razões circunstanciais. Calhou ter sido desafiado por uma amiga, a Helena Isabel, para fazer uma audição. Porém, hoje, aos 70 anos, quando olha para o caminho, pode dizer que sempre foi ator?
Sempre fui poeta. Porém, há um pensamento que me lembro de ter desde os quatro anos. Sempre que pensava em mim, sempre que me imaginava, via-me sentado no centro de um cubo preto. Só muito mais tarde, depois de anos e anos disto, coloquei a hipótese desse cubo poder ser um palco. Um palco é um cubo preto. Se calhar isto esteve sempre comigo e a vida acabou por me levar para onde queria que eu fosse.

O destino, portanto.
Acredito que por vezes há sinergias que nos conduzem em determinadas direções. A sorte está em as sabermos identificar. Mas se perguntar o que é que eu sempre fui, a resposta é poeta. Quanto mais velho fico, mais chego a essa conclusão.

Sabe de cor o último poema que escreveu?
Há um que comecei há dias. Tem um mote – Portugal, último enigma da razão – e ainda não está acabado. “Portugal, sim ou não? É? Ou não quer ser? É? Ou só sabe parecer? Luta? Ou apenas se arrasta? Sonha? Ou bacalhau basta? Transcende e sonda mistérios? Ou depende sem norte ou critérios? Portugal, fúria ou anemia? Sageza ou cobardia? Portugal, paraíso por ser? Ou inferno a acontecer?”.

Escreve prosa, está publicada. A poesia não. Por que razão escreve poemas?
Com 19 anos fiz a primeira aproximação ao universo da poesia, procurava esse mistério. A poesia representa para mim uma tentativa de adivinhação. Novalis dizia que a poesia é a realidade mais profunda. Quanto mais poético mais verdadeiro. Lidar com o real nunca me entusiasmou por aí além. Com o desconhecido, sim. O que mais me fascina na vida, desde sempre, é o que não conheço. E escrever poesia é uma tentativa de decifrar o que não conheço.

No poema que cita, há dúvida e esperança, ou é apenas uma declaração pessimista?
O meu primeiro romance foi uma tentativa de reflexão sobre Portugal. O segundo, sobre o amor. E o que estou a escrever é sobre a morte. As três questões que interessam, o resto são derivados. No caso de Portugal, ainda nem sonhava escrever e já o país me intrigava. Porque tendo todas as características para funcionar e vencer nunca soube ultrapassar as limitações. Por um lado, vivemos na lamúria, por outro, vemos os estrangeiros acharem que somos a última maravilha do Mundo. Há uma realidade que não conseguimos equacionar e esse é o nosso mistério, o enigma.

O que tem em si dos portugueses?
A grande facilidade de viver no irreal. Portugal é um país de poetas precisamente por termos enorme dificuldade em lidar com a realidade. Os outros são práticos, pragmáticos, consequentes. Para nós, o real é um fantasma. Somos o povo que melhor teoriza sobre a derrota, e temos uma grande capacidade de lidar com o que não é evidente. Tenho muito disso.

Em que é que se manifesta na sua vida?
Isto é quase anedótico, mas é sintomático em mim. Há uns anos havia um concurso na TV em que figuras públicas ajudavam concorrentes a adivinhar uma palavra. Calhou-me ter de explicar ao meu par a palavra janela. Poderia ter falado em vidro, até em porta, em caixilho. Pois o que me ocorreu foi Hitchcock. Lá está, em vez do pragmatismo, a minha primeira tendência é fazer um filme. A minha primeira impressão de tudo é sempre muito misteriosa. Por outro lado, talvez seja a capacidade de viver com o desconhecido que me foi mantendo na profissão. Saber viver em insegurança.

Que mais o foi mantendo na profissão?
Há duas características que temos de ter se quisermos ser atores – saber viver em insegurança e saber lidar com a rejeição. São coisas que sei fazer bem. Tenho propensão natural e muito treino. (ri)

A representação foi então um acaso feliz?
Posso dizer que foi. Permitiu lidar com o desconhecido. Ao mudar de personagens, estou a partir do zero.

Diz que representar é tirar férias de si. Não há contaminação entre ator e personagem?
Há, com certeza. Há contaminações. E já as senti. Em 1989, fiz “A rua”, uma peça muito violenta. Sexo, drogas e rock and roll. Aquilo excitava-me, perturbava-me de tal maneira que não conseguia dormir. Ia dançar, beber, para poder ir para a cama cansado. A este ponto, foi a única vez.

Nesses casos, deixa mais nos personagens ou elas deixam mais em si?
Sou uma esponja. As personagens permitiram-me aprender sobre as pessoas e sobre mim próprio. Levam-me a esses lugares desconhecidos. Mas ainda hoje não sei bem o que é ser um bom ator. O que deve ter.

Inteligência, desde logo, ou não?
Essa é outra discussão. Nos anos 1970, alguns colegas defendiam que quanto mais inteligentes eram os atores mais se afastavam do público. Criavam personagens que o público não apanhava. Arrisco dizer que a característica essencial a um ator é a empatia. Não concebo atores que o público não entenda. Um escritor, um pintor, um escultor pode demorar 100 anos a ser compreendido. Um ator, não.

“Portugal é um país de poetas precisamente por termos enorme dificuldade em lidar com a realidade”

É essa empatia que faz com um ator seja mais desejado de que outro, independentemente do talento?
A Eunice (Muñoz) dizia uma coisa muito interessante. Um ator pode ter muita inteligência, pode ser muito culto, pode ter uma voz fantástica, pode ter uma figura fantástica, pode ser e ter isso tudo, mas nada explica o fator sorte. Diziam os antigos que há atores que não passam o fosso da orquestra. Fazem tudo bem, aquilo está tudo certo, mas o público não pega neles. Porque é que um ator cai no goto e outro não consegue é do domínio do misterioso. Não tenho explicação.

O que acha que o distingue?
Também não sei dizer.

Como acha que é visto pelos pares?
Quanto mais velhos ficamos, mais acarinhados somos. Em Portugal a antiguidade é um posto. Talvez me vejam como um ator que gosta de arriscar. Que não se acantonou numa zona de representação. O Zé Pedro Gomes, o António Feyo e eu fomos os primeiros atores freelancers. A maior parte estava em grupos independentes ou no Teatro Nacional. Nós queríamos essa liberdade. E na altura não foi fácil.

Ao fim destes anos todos, entrar em palco ainda atemoriza?
Quanto mais a experiência me foi dando ferramentas, mais fui arriscando. E aprendi uma lição: de todas as vezes em que achei que sabia o que estava a fazer, de todas as vezes em que tinha a certeza do resultado, enganei-me. Portanto, parto para as coisas com uma frescura primordial, replicando a primeira vez. E isso provoca respeito, reverência. Medo.

Tem algum ritual?
Exorcizo esse medo com uma mistura de técnicas vocais e disparate. Tanto posso cantar árias de ópera como fados. Dar gritos ou contar anedotas a mim próprio. Sempre a andar e um lado para o outro. A minha concentração é no movimento.

Uma personagem que gostasse de fazer?
Não tenho isso.

É mais fácil representar a maldade, a vilania ou a normalidade?
O vilão porque pode fazer tudo o que lhe vier à cabeça. O vilão é um homem ou uma mulher de exceção numa situação normal. O difícil é o contrário, fazer de homem normal numa situação de exceção.

Em que medida foi evoluindo a maneira de representar?
Nos primeiros anos estava muito ciente do que fazia. Estudava a personagem muito consciente do processo. À medida que fui envelhecendo, o processo foi ficando mais integrado. De tal maneira que quase me parece uma segunda natureza. É como se me atirasse para a improvisação com a rede escondida. No resto, continua igual: a necessidade de perceber a personagem. Porque é que aquele tipo faz aquilo e se comporta desta e daquela maneira.

Quando chora em cena, chora mesmo?
Não sou um ator que chore com facilidade. Mas ultimamente consigo chorar melhor do que chorava há uns anos. (ri)

Os mais novos, como lidam consigo?
Usam uma delicadeza no trato. Mas não me sinto bem com essa deferência. Sei que tenho uma contracena limpa, generosa. Tenho uma boa relação com os mais novos.

E com os realizadores?
Isso é mais complicado. É mais difícil abdicar do meu olhar de ator e de quem trabalhou por detrás das câmaras. Se são coisas sem grande importância, não ponho em questão a autoridade do realizador, se são, ponho.

Como gere esse conflito?
Não chega a haver conflito. De um modo geral, a visão que trago é acolhida.

Até porque é um homem poderoso na indústria.
Fui.

O poder transforma. Deu por isso?
O poder nunca foi uma procura. Foi-me oferecido pelo Nico (Nicolau Breyner), que um dia se cruzou comigo e me disse que gostava que o substituísse na Direção-Geral da produtora NBP. Foi inesperado. O poder em si não me fascina. Para mim, é um instrumento. Usei-o para mudar algumas das características da produção de séries e novelas em Portugal.

Houve quem passasse a relacionar-se consigo de maneira diferente?
Sim, sim. Percebe-se logo.

Por exemplo…
Os colegas olham para nós com uma expectativa. Acham que temos uma obrigação. Mas aí sou pouco português. Nunca usei o poder para beneficiar amigos ou familiares. Um dia ouvi a minha filha mais velha dizer à minha mãe “avó, o pai nunca me daria emprego”. Sei que as minhas passagens pelo poder criaram não digo inimigos, não vou tão longe, mas alguns anticorpos. Sobretudo na passagem pela RTP.

Porquê?
Os produtores, realizadores, criadores não olham para a RTP como uma emissora de televisão. Olham para a RTP como um banco. E não aceitam nenhuma opinião. Se antes de passar o cheque se pedir para ver o guião, ficam muito zangados porque estamos a interferir na liberdade criativa. A RTP tem de dar o cheque e ficar calada. Não aceitei isso. Daí os anticorpos.

“[Nas novelas] Ainda estamos muito longe do que se faz na Globo, mas aí não é uma questão de talento, mas de dinheiro. De falta de dinheiro”
Como lida com a crítica?
De uma maneira emocional. A crítica pode magoar imenso ou pode insuflar o ego. A minha relação com a crítica tem sido muito temperada: nunca tive nem críticas más nem críticas fantásticas. Sou daqueles atores de quem nunca se diz muito bem, mas também nunca se diz muito mal.

O que já se escreveu sobre si que o magoou?
Na peça, “Hedda Gabler” (Henrik Ibsen), com a Graça Lobo no Maria Matos, tive uma crítica em que fui desancado. Dizia esse crítico que não se percebia o que estava eu a fazer num elenco maravilhoso como aquele. Reagi mal, bastante mal, mas nunca falei com o autor sobre o assunto.

E o que de melhor já se escreveu?
A mais simpática foi seguramente esta: “Este tipo é de tal maneira convincente que, se o pusessem a apresentar o telejornal, acreditava”.

A liturgia do teatro está a desaparecer? A pateada por exemplo.
A pateada devia regressar. Mas se isso acontecesse iria ter de imediato uma conotação política. Hoje em dia, temos um teatro muito panfletário. Muitos textos politicamente enfeudados e poucas peças de teatro. Como se os clássicos não tivessem já tratado de todas as questões pertinentes da atualidade.

Quais são as linhas vermelhas na aceitação de trabalhos?
Tenho alguma dificuldade em aceitar textos estúpidos ou fáceis. Gargalhadas fáceis.

Produzem-se muitos textos estúpidos em Portugal?
Imensos. Tem a ver também com a realidade que temos. E um público com algum grau de iliteracia.

Começou a trabalhar sem formação. Só mais tarde estuda, em França. Recusava trabalhos, mesmo quando não tinha estatuto?
Sempre foi complicado para mim. Há na representação uma diferença entre o simples e o básico. Nada contra as coisas simples, mas contra as básicas tenho tudo. Adoro as comédias italianas e não há nada mais simples. Muito diferente são textos ou programas de televisão que têm apenas a ver com o riso fácil e imediato, dirigido a um público com pouco critério.

As telenovelas empobrecem o tecido cultural, disse há uns anos. Mantém?
Mantenho. A razão é simples: um filme, uma peça de teatro, uma série, a narrativa tem de ser concentrada, de maneira a provocar no espectador um sobressalto. A telenovela é a negação disto tudo. É um folhetim. Nada contra a telenovela, mas não passa disto.

Somos competentes a fazer novela?
Ainda estamos muito longe do que se faz na Globo, mas aí não é uma questão de talento, mas de dinheiro. De falta de dinheiro. Precisávamos de ter uma dimensão de exportação.

As telenovelas estragam os atores?
As telenovelas, independentemente de todos os problemas, permitem ao ator uma coisa que o cinema e o teatro não permitem – trabalho de ginásio. Tenho 15 cenas para fazer por dia. É um treino permanente. Dito isto, há todo um processo à volta das novelas – revistas de televisão, presenças nas discotecas, os Facebook e Instagram com as visibilidades que dão dinheiro – que desvirtua bastante a profissão.

Começou na revista.
Chamada “Pides na grelha”. Como vê nada tenho contra o teatro de comédia. Mas, artisticamente, ao fim de três anos estava farto. Fui para um grupo independente ganhar metade do salário que ganhava na revista. E aí apareceu a possibilidade da bolsa da Gulbenkian. Fui estudar para uma escola que estava nos antípodas da revista, uma escola muito intelectual e snobe, para tentar perceber até que ponto isto era para a vida. No meu tempo, os mais velhos diziam que um ator leva dez anos a fazer. De facto, comecei em 1974 e o meu primeiro trabalho com alguma projeção pública foi em 1983. A novela “Origens”.

Antes da bolsa, tinha estado em Paris, emigrado, a trabalhar no aeroporto de Orly. Já então se interessava por cinema?
Para mim, com 17 anos, era absolutamente normal ir ao cinema ver os filhos do Bergman e do Visconti.

Era um rapaz ambicioso?
Nunca fui. Uma única ambição que tive e tenho é a de ter dinheiro para pagar as contas, coisa que em minha casa não existia. Sofri bastante em miúdo. Apercebia-me muito das dificuldades dos meus pais.

Por isso emigrou.
O Portugal de 1970 era sinistro. Apesar de não ter formação política que me despertasse para a oposição, impressionava-me o cinzentismo. Passei a tarde do meu primeiro dia em Paris nos Campos Elísios, a ver as pessoas por causa das cores das roupas. Em Portugal era tudo a preto e branco. Em minha casa não se falava de política e o meu pai era, e ainda é, um homem de Direita. Mas a minha sede de conhecimento não era de Esquerda nem de Direita. Eu queria aprender. Conhecer, ver.

“Não me custa nada imaginar-me fora dos palcos. Mas aí sou como Ruy de Carvalho. Há sempre um papel de velho, de velhinho ou de velhíssimo. E depois há a poesia. Não me imagino sem escrever”

Nunca lhe apeteceu ir para a política?
Pensei nisso quando, há uns 20 anos, se colocou a questão dos círculos uninominais. Fazer parte de um partido, não. Pertenci ao PCP em 1974. Estive lá três meses. Não consigo integrar-me na realidade de um partido. Podia ter uma atividade política, se dependesse diretamente do eleitor.

É monárquico?
E de Esquerda. Acho até que há uma enorme falta de Esquerda em Portugal. Primeiro, desistiu da luta de classes. Depois transformou a luta de classe numa luta pelas chamadas causas fraturantes. A Esquerda trocou a sociedade pelo Estado. Ou seja, as lutas em Portugal são sempre contra o patrão Estado. Nunca contra o patrão, patrão.

Já agora, quem foi o último grande líder português?
D. João II.

Voltando à carreira. A partir de certa altura, planeou o caminho?
Nunca pensei ‘vou fazer tudo para conseguir este papel’. O único trabalho que quis fazer até hoje foi um texto que eu próprio escrevi, um espetáculo que se chama “O homem da Amália”. Apenas porque tem a ver com a minha paixão pela Amália Rodrigues. Que nunca conheci. Nem fiz nada para conhecer. Deixei que o destino decidisse. Com ela, não calhou.

De onde vem o fascínio pela Amália?
Não lhe sei dizer. Tudo nela me fascinava. Há duas mulheres que me fascinavam: Amália e Rita Hayworth. Se as tivesse conhecido, tinha-me apaixonado. Não tinham a nada a ver uma com a outra. Amália era pequena, morena e a outra era ruiva. Mas há um fascínio.

Tem a ver com quê?
Sexo. Um apelo sexual fortíssimo por ambas.

Fez com Alexandra Lencastre o primeiro casal mediático. Disputavam a atenção das revistas e trabalhos?
Estivemos seis anos juntos. E nesse período fizemos um pequeno filme do Sérgio Godinho e uma peça no Teatro Aberto. Nunca houve rivalidade.

Eram muito mediáticos.
Houve até um episódio desagradável. Combinámos que nunca daríamos entrevistas juntos, e as revistas de televisão andavam sistematicamente a insistir. Eu ia recusando, mas a Alexandra sempre teve dificuldade em dizer que não aos jornalistas. A certa altura, já cansado, resolvi matar o assunto: ‘Querem uma entrevista? Paguem’. A partir daí comecei a ter má imprensa, a Alexandra ficou incólume, eu o mau da fita.

É romântico?
Talvez não seja.

Como tem sido a relação com as/os fãs?
Quando fiz a “Origens”, recebia centenas de cartas na Edipim. Que tinham um denominador comum. Ou era parecido com um cantor favorito, ou com o ex-marido ou com o marido que morreu.

A boa aparência ajudou?
O físico preenche determinadas funções na representação. O que aconteceu comigo é que o facto de ter determinado aspeto físico calhou num momento em que os galãs não estavam na moda em Portugal. (ri) A consideração pelos galãs começou a partir dos anos 1990, com as telenovelas da TVI. Lá fora, sempre houve. Aqui, nos meus 20, 30, quase 40 anos, a ideia de sex symbol correspondia ao preconceito da loura burra. O público feminino achava-me graça logo não podia ser bom ator.

O que é para si um homem bonito?
Paulo Pires. Albano Jerónimo. Alain Delon. Paul Newman. Brando, quando novo. Não me coloco a esse nível.

Divórcio e atores casam na perfeição.
Porque o nosso instrumento de trabalho é as nossas emoções. O envolvimento com uma colega de trabalho é a coisa mais fácil do Mundo. O problema está em distinguir se o relacionamento existiu porque tinha de existir ou se foi pelo facto de estarmos a trabalhar com uma ferramenta de envolvimento. Quando é assim, não dura muito.

Alguma vez sentiu paixões repentinas?
Pertenço àquele grupo de pessoas que teve muitos casos, de toda as vezes em que não estive apaixonado nem amei uma mulher. Mas nunca tive casos ao mesmo tempo.

Um caso de cada vez.
Completamente. O cometimento para mim é importante. Seja a nível pessoal ou de trabalho. Quando me entrego, entrego. Quando não me entrego sou um bocado selvagem.

Como assim?
Quando senti que havia em relação a mim uma expectativa que eu não podia alimentar posso ter sido cruel.

Já sofreu por amor?
Muito, muito, muito. E vou abaixo.

Não chora facilmente em palco. E na vida?
Aí sim. As ruturas com as mulheres que amei foram muito dolorosas para mim. Há uma sensação de falhanço, perda. Porque é que falhou?

Está a escrever um livro sobre a morte. O envelhecimento físico incomoda-o?
As rugas, nada. Preocupam-me as doenças, a decadência da saúde. Penso mais nisso porque tive filhas relativamente tarde. Preciso de mais uns anitos até elas ficarem tão preparadas para a insegurança quanto a mais velha.

A finitude deprime-o?
Tenho grandes discussões com a minha mulher sobre isso. Acredito que a finitude pode ser contrabalançada com a criação. Escrever, pintar, criar algo perene é uma maneira de fintar a finitude.

Como gostaria de ser recordado?
O tempo é como mar – deita fora o que não presta. Gostava que dissessem que contribuí nem que fosse com uma frase para ajudar a humanidade a compreender-se melhor.

Pensa no afastamento dos palcos?
Não me custa nada imaginar-me fora dos palcos. Mas aí sou como Ruy de Carvalho. Há sempre um papel de velho, de velhinho ou de velhíssimo. E depois há a poesia. Não me imagino sem escrever.

Porque não dá a conhecer a poesia?
Porque a minha poesia é muito clássica. Sou um poeta do século XVI. Muito raramente mostro a amigos. É uma coisa minha comigo. Comecei a escrever o poema que lhe recitei numa das minhas caminhadas. Quase três horas a andar, do Chiado até a Torre de Belém. Tempo para pensar e ditar para o Dictafone.

“As ruturas com as mulheres que amei foram muito dolorosas para mim”

É um flanneur. E faz no próximo domingo (hoje) 70 anos. Como vai festejar o dia?
Não há comemoração especial. Vou almoçar em família, com a minha mulher, as minhas três filhas e as duas netas.

Já sabe o presente?
Umas sapatilhas à prova de água. Para as tais caminhadas. Este ano comecei a caminhar à chuva. Foi um presente pedido. (ri)

O que poderia ter sido, se não fosse o acaso que o levou à representação?
Poderia ter sido um tipo de aventureiro. Alguém com uma profissão mutável. Mais uma vez o fascínio do desconhecido.

Pode dizer-se que só está bem onde não está?
Não tanto. Tenho uma herança genética. Da minha mãe herdei o sentido de liberdade total e absoluta. A minha mãe dizia “eu é que despeço os patrões”, atitude maravilhosa e corajosa ainda mais vivendo nós dificuldades. E eu tenho isso: sou eu que despeço os patrões. Quando não é para ficar, não fico. E aí posso ser cruel. Depois, tenho o lado do meu pai. O comprometimento. Se é para ficar num sítio, fico. Enquanto estou, estou.