Joel Neto

Um postal da cidade


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Caminhando rua fora – do Fanal ao Monte Brasil, do Relvão à Marina e à Praça Velha -, vamo-nos tornando um postal de Angra. Um postal no sentido nortenho do termo, isto é: em Lisboa dir-se-ia um cromo. Quatro cromos: um homem com uma mochila às costas, um bebé dentro dessa mochila, abanando braços e pernas, e dois cães esguios em luta contra o impulso (sobretudo ela, a Colette) de desatar a correr com trela, saquinhos de cocó e o que mais se lhes pendure aos arneses. E não há pessoa que não nos sorria – quase não há pessoa que não nos sorria. Mas, se muitas sorriem no sentido do bebé, outras sorriem na direcção dos cães. E eu pergunto-me: em que é que isso as distingue?

Quer dizer: o que as trouxe até esse ponto em particular, a alegria ou a tristeza, o desejo ou o conformismo? O que conta sobre os seus trajectos pessoais – os seus grandes e pequenos momentos, as suas memórias e olvidos, as suas esperanças e angústias – a escolha do objecto a que sorriem? O que procuram com o sorriso que desferem, cada uma delas: a beleza, a inocência ou a esperança? E porque é que nem um só sorri em ambas as direcções, o bebé e os cães? Por distracção? Falta de visão periférica? Simples obstinação? Que significado poderia uma obstinação assim esconder? E que probabilidade terá cada uma dessas pessoas de, sorrindo hoje num dos sentidos, sorrir amanhã no outro?

Por exemplo: eu, há dois ou três anos, teria sorrido na direcção dos cães; hoje, não sei, talvez começasse pelo bebé. Não por preferências, que nem isso é maneira civilizada de ponderar a curva dos afectos, nem a psicologia de pacotilha – espero – tem lugar nesta coluna (a não ser por deslize, claro). Simplesmente, tenho tido a sorte de uma vida variada e ampla, a que ainda se proporcionam saltos quânticos quando, para tantos, tudo começa a aquietar-se para a travessia final. Mas o que significa alguém se rir para os cães depois de anos a rir-se para os bebés? Solidão? Desespero? E ao contrário, como provavelmente será o meu caso, o que representa de facto? Uma alucinação tardia? Uma senilidade precoce?

São bastante mais os que sorriem para os cães, e só para eles – isso parece-me claro. Talvez muitos nem se apercebam que também vai ali um bebé, tão raras são as pessoas a passear-se assim, de mochila, fazendo de si mesmo burro de carga ou do anjo de Deus (La Fontaine gostaria desta história) saco de batatas. Acontece que nenhum território nacional, além destas ilhas, tem três grandes hospitais centrais e mais de duas dezenas de centros de saúde sem que um só deles consiga reunir dois não objectores de consciência para realizar uma IVG. Um lugar assim tem de gostar de bebés – com certeza se eu subisse o assento dele, ou tirasse a pala com que o protejo do sol, ou soubesse pelo menos educar os cães em condições, o bebé seria mais celebrado.

Sobretudo, a mais ninguém parece ocorrer que há uma verdade que pertence aos bebés e aos cães, a ambos por igual e a mais nada ou ninguém como a eles. É a razão – nem mais – por que eu me passeio com os três e me sinto especial por isso.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)