Serpentes a bordo
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Faz agora 20 anos, as minhas semanas começavam com um voo de avião entre Lisboa e a Terceira, onde em apenas 24 horas eu passava uma tarde de botas-de-cano a plantar coisas pelo jardim – ou pelo patético, mas ainda assim esperançoso, simulacro daquilo que este jardim é hoje -, jantava lautamente com a malta, gravava um programa de televisão, bebia copos até às cinco da manhã no Stuart (ah, o Stuart Blazer, ainda há uns anos o vi em Providence: estava igual), dormia um nadinha, sorvia três cafés, fumava dois cigarros com cada um deles e voava de novo para Lisboa. Estava a matar-me aos poucos, como era próprio dos jornalistas do meu tempo, mas ao menos aquelas duas horas e quinze de silêncio em cada voo ninguém me tirava. De modo que pedia sempre à Lisete do check-in:
– Dá-me um lugar o mais atrás possível, sim? Imagino que tenham posto os bebés todos à frente outra vez.
Era uma besta, claro, e já então o sabia. Perguntassem-se se tinha consciência de que viria (por exemplo) a desenvolver relações de afecto com cães, relações de amor, e depois disso de saudade – da mais inesperada e arrebatadora e dolorosa saudade, como ainda sinto do Melville e da Jasmim -, e rir-me-ia. Uma infame crónica em que desdenhava do amor aos cães, e que tantos ódios me granjeou, pode ter sido algo exagerada, mas aquela em que dava a mão à palmatória e denunciava a minha própria arrogância foi sincera. Já com os bebés, não. De bebés, eu sempre gostei e tive a certeza de que, quando os tivesse, gostaria mais ainda. Simplesmente, e trabalhando de mais, achava-me no direito a uma medida de cinismo, mesmo estando na idade em que o meu pai já era pai de dois. Além de que fazia parte do boneco: um tipo moderno, com cartão de passageiro frequente, programa na TV e Macintosh na pasta não tem tempo a perder com mundanidades do tipo bebés, pelo menos enquanto se tratasse das mundanidades dos outros.
Quis o destino que há dias, num regresso de Lisboa, me confrontasse com a minha figura de então, personificada agora numa senhora sentada na última fila da classe executiva, não mais de duas à frente de um bebé que começou a chorar na descolagem e pouco se calou até ao desembarque. Estava incomodada e, sobretudo, queria que nós soubéssemos que estava incomodada. Bufava, atravessava os olhos, torcia-se, levantava-se, e eu repetindo para mim mesmo: “Que estúpido és, Joel”. Entretanto, a Marta falou-me numa série de vídeos recentes em que diferentes passageiros, clientes de diferentes companhias aéreas, fazem ainda pior do que ela e eu: protestam, berram, queixam-se às hospedeiras, ameaçam pancada. E, como se isso não bastasse, ainda me dei conta de que várias dessas companhias começam agora a criar zonas “livres de crianças”, ou mais diplomaticamente “exclusivas para adultos”, nos seus aviões.
E não é que eu queira transformar-me directamente de citadino mauzão em pai neurótico. Juro. Mas, caramba, “zonas livres de crianças”? Que espécie de progresso foi esse que nos deixou neste ponto em que a existência de um bebé pode ser invocada, sem qualquer género de censura, como uma pedra no sapato?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)