Seca. O deserto não está tão longe assim

Um país que vai sendo consumido pela seca, a sul sobretudo, no Interior também. Searas e searas a mirrar, animais por alimentar, agricultores desesperados, a ter de vender o efetivo, a atirar a toalha ao chão. Dedos apontados, críticas e mais críticas, à agricultura intensiva, à água que não sabemos aproveitar, à falta de uma reforma estrutural que permita uma verdadeira gestão eficiente. Enquanto isso, o ministro do Ambiente vai garantindo que este ano não faltará água nas torneiras. Mas o prognóstico é claro: se nada for feito, lá chegaremos.

Carlos Sequeira deambula esmorecido por entre as searas de aveia, é uma imensa mancha de um dourado pálido, a seca levou-lhes o vigor e a ilusão de uma produção profícua, a paisagem é hoje uma réplica mortiça e triste do que foi outrora. “Era suposto isto ser tudo denso, dar-me pela cinta, não se ver as botas sequer.” Mas isso era dantes, quando a chuva caía generosa, quando ainda havia quatro estações, quando não chegavam a meio do ano com a terra já devassada pela aridez. Agora, os cereais dão-lhe pelos joelhos, as pernas continuam bem visíveis por entre a seara, a densidade é pura utopia. Estamos em Santa Bárbara de Padrões, freguesia de Castro Verde, sub-região do Baixo Alentejo, está um dia abafado e seco como os campos à volta, o céu está pintalgado de nuvens, mas a chuva – pelo menos a chuva a sério – há muito não mora aqui. “Choveu bem em novembro, qualquer coisa em outubro, qualquer coisa em dezembro.” E depois nada, o deserto. “Recentemente, aqui perto, houve sítios em que caíram 30 litros num curto espaço de tempo, mas esta chuva agora não é nada, só vem estragar”.

Carlos Sequeira tem uma propriedade de 640 hectares em Castro Verde. Estima ter perdido 90% da produção de aveia por culpa da seca

Já o velho ditado que anuncia que “em abril, águas mil” é hoje pouco mais que miragem. Se dúvidas havia, os últimos dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) ajudaram a confirmá-lo. Segundo estes, só em abril houve três ondas de calor, tendo sido registadas temperaturas médias e máximas “bem acima do normal”. Mais: segundo o índice Palmer Drought Severity Index (PDSI), no final de abril houve “um agravamento da intensidade de seca em relação aos meses anteriores”, com cerca de 40 municípios na classe de seca severa e 27 na classe de seca extrema. Uma superfície equivalente a cerca de 40% do território, note-se. Com o sul do país, e o Baixo Alentejo em particular, a ser particularmente afetado. E é preciso lembrar que o ano ainda vai a meio, que isto ainda há de piorar, que agosto é, por estas bandas, um pequeno inferno. Logo aqui, onde a agricultura de sequeiro (sem regadio, leia-se, e por isso dependente da chuva) domina a paisagem, são hectares e hectares a perder de vista, só Carlos tem 640, é o equivalente a 640 campos de futebol, tudo mirrado pela falta de água. Ele vai passando a mão ao correr dos cereais à cata de sementes, num ano normal ficaria com a mão carregada delas, agora sobram duas, as outras leva-as o vento. “Isto é o pouco que resta. É quase zero. A gente passa a mão e desfaz-se tudo.” Num ano bom, conseguiria aproveitar 2500 quilos por hectare. “Este ano se der 200 quilos é muito, perdi 90% da produção”, estima, desalentado.

O prejuízo não acaba aqui, são os fenos e a palha que não há, as forragens que não se fazem, a alimentação dos animais (650 ovelhas e 75 vacas) que fica severamente comprometida, os gastos que se tornam incomportáveis. “Já no ano passado foi difícil, mas nessa altura ainda tínhamos reservas de alimentação animal. Este ano já não temos. E praticamente não há pasto. Para já os animais ainda comem o que há no campo, mas não dá para muito mais. A quantidade de alimentação no terreno assemelha-se ao que costumamos ter no final de setembro, início de outubro.” A partir de julho, a única alternativa é, portanto, comprar palha e ração. E esse é outro bico de obra. “Custa tudo pelo menos o dobro em relação ao que custava há dois anos.” Neste quadro desolador, Carlos não viu alternativa a recorrer à banca. “Mas se isto continuar assim, fecham-nos a torneira. Não sei como vai ser.” E a angústia agiganta-se no silêncio, aqui o futuro é tão frágil como a chuva que rareia.

António Aires, presidente da Associação de Agricultores do Campo Branco (AACB), cuja área de intervenção engloba os concelhos de Almodôvar, Aljustrel, Ourique e Castro Verde apela, por isso, ao reforço das ajudas. A começar por um aumento das verbas atribuídas no âmbito do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC). Tanto mais quanto a região é abrangida pelo Plano Zonal de Castro Verde, medida agroambiental que visa compatibilizar o uso da terra com a preservação da avifauna. Apela também à atribuição de apoios concretos para fazer face à seca. “Submetemos agora o pedido para o apoio relativo ao aumento dos fatores de produção, por causa da guerra na Ucrânia, mas em relação à seca ainda não há nada. Se não for com ajudas não sabemos como vamos sobreviver.” A propósito, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, solicitou, no fim de maio, o acesso a um pacote de 250 milhões da Comissão Europeia, mas ainda aguarda aprovação. E será a dividir por quatro países. Enquanto o fumo branco tarda, o retrato que António traça é inquietante. “Está a ser um dos piores anos e está a pôr em risco tanto a atividade agrícola como a pecuária extensiva da região. Há pessoas a abandonar a agricultura tradicional e outras a ter de vender uma parte dos animais, para conseguir alimentar os restantes. Temos até criadores a acabar com o efetivo, de bovinos, sobretudo.”

Face aos custos, António Eduardo Mestre acabou com o efetivo. A foto antecede o momento em que vendeu os últimos bovinos

É o caso de António Eduardo Mestre, 74 anos, residente em Ourique. Trabalhou uma boa parte da vida num banco, mas depois o pai adoeceu e ele tomou conta das terras, hoje são perto de 200 hectares. De início, as coisas corriam bem, tinha 94 bovinos, 80 suínos, “os preços estavam bons”, o clima era outro. “Até há dois anos costumava colher 600 rolos de feno, no ano passado já só colhi 100, este ano, por causa da seca, já nem semeei, tive de comprar palha, a 14 cêntimos o quilo.” Sendo que, para alimentar os animais que tinha, precisava de quatro rolos por dia, com cerca de 150 quilos cada. Seiscentos, portanto. Que multiplicados pelos 30 dias do mês são 18 mil quilos (ou 18 toneladas). E que por sua vez se traduzem numa despesa mensal superior a 2500 euros. Até que a matemática se tornou impossível de suportar. “Vendi 40 e tal vacas para abate em junho, anteontem mais 46. E agora estou à espera que venham buscar as últimas oito. Os preços são muito caros, a gente não aguenta. Só as casas muito grandes, com muitos anos, é que poderão sobreviver. E mesmo assim estão em dificuldades. Os pequenos não se aguentam. Só resta acabar com tudo”, atira, pungente. Ainda por cima vai fazer 75 anos, ir à banca já não é opção, tem pena de se desfazer dos animais, a rotina de ir ao monte vê-los já estava entranhada, mas o lado racional falou mais alto. Agora o plano é vender as pastagens e viver da reforma, para quem é mais novo é que não augura nada de bom. “Não vejo futuro nenhum aqui. A falta de água é uma desgraça. Quando era novo, tínhamos as quatro estações, agora temos duas. Dizem há muitos anos que isto vai ser um deserto. E vai.”

Barragem do Monte da Rocha apresentam níveis de abastecimento preocupantes

António Banza, também agricultor, também membro da direção da AACB, avança com outro prognóstico arrepiante. Para ele, para Carlos, para todos. “O plano? A primeira coisa é dizer aos filhos para fugir daqui. Antes dizíamos aos filhos para ficar, agora dizemos-lhes para fugir.” E a sentença de Banza fica a pairar no ar pesado, às tantas já não se sabe se é do tempo, se é do tema. Bem perto, uns dez quilómetros a noroeste de Ourique, a albufeira da Barragem do Monte de Rocha conta outra parte da mesma história. A água nas lonas, o imenso poço de descarga totalmente a descoberto – há uns quantos anos, quando a barragem recarregava por completo, era usado para escoar a água -, o boletim semanal de albufeiras, divulgado pela Agência Portuguesa do Ambiente, a verter em números a realidade confrangedora que é óbvia até para os leigos na matéria. Segundo o documento mais recente, divulgado na última segunda-feira, dia 5 de junho, a albufeira do Monte da Rocha está com um armazenamento de 10%, são escassos dez mil litros de água, a percentagem mais baixa do país. Note-se que está neste momento a decorrer um concurso público para uma obra de 27 milhões que terá por objetivo fazer chegar a água do Alqueva a esta barragem, mas os trabalhos levarão, no mínimo, dois anos a estar concluídos.

Barragens num “ponto dramático”

Há outros casos preocupantes. Como a barragem de Campilhas, no concelho de Santiago do Cacém, que está nos 11%. São pouco mais de 2800 litros de água, sendo que uma boa parte dela nem sequer pode verdadeiramente ser contabilizada, há que ter em conta o lodo que se vai acumulando. Uma bota que ali jaz ao abandono rente à água, porventura desvendada pelo baixar acentuado das águas, parece falar-nos disso mesmo. A situação é preocupante há mais ou menos uma década, mas nos últimos três anos tem atingido “um ponto dramático”, admite Ilídio Martins, diretor-adjunto da Associação de Regantes e Beneficiários de Campilhas e Alto Sado (ARBCAS). Tanto que a entidade gestora desta e de outras albufeiras, Monte da Rocha incluída, viu-se obrigada a voltar a cancelar a campanha de rega para este ano, que deveria ocorrer entre abril e outubro. “Estas albufeiras enfrentam particulares dificuldades porque vivem de um regime torrencial [de chuvas mais intensas], que não tem ocorrido. Antes chegavam à capacidade morta um ou dois anos em cada dez, agora entrámos num período de seca sistemática e acabam por não conseguir recuperar.” O que não deixa aos agricultores ali à volta grandes soluções. “Os que são rendeiros ainda se deslocam para as zonas onde há água. Outros vão dispensando funcionários, desmantelando a atividade e, por vezes, já não conseguem voltar.”

Barragem de Campilhas

Almerindo José Pereira, 78 anos, natural do Grândola, mas fixado nas imediações da barragem do Monte da Rocha vai para uma data de tempo, ainda não chegou a esse ponto, mas admite que a seca o tem deixado “com os cabelos em pé”. É dono de uma propriedade com cerca de 700 hectares, dedica-se sobretudo ao milho e ao gado, tem 1400 ovelhas, mais 300 vacas. “Há quatro meses que não chovia aqui. Aliás, na semana passada choveu mais do que em muitos meses.” Foram uns 25 litros ao todo, mesmo assim “não veio ajudar muito”, garante. Os grandes pivôs de irrigação que tem espalhados pela propriedade estão parados há uma eternidade, só este ano abdicou de semear 100 hectares de milho, sem poder regar seria puro tempo perdido. Entretanto, vai bombeando água do rio Sado para os animais, mas “já estão a comer à mão”, o que por si só representa uma despesa imensa. Para conseguir “manter a exploração e os postos de trabalho”, viu-se obrigado a arrendar terras abastecidas pela barragem do Alqueva, a gigantesca estrutura construída em 2002 que vai servindo de tábua de salvação a uma parte do Alentejo (mas só a uma parte, note-se).

Almerindo José Pereira, de 78 anos, teve de arrendar terras na zona do Alqueva para manter a exploração e os postos de trabalho

Está sentado numa cadeira de plástico num anexo da propriedade que lhe diz tanto, tem um sentido de humor cativante e um sorriso gentil, mas não esconde a insatisfação. Com a ministra da Agricultura, sobretudo. “A nossa ministra ou não conhece a realidade ou não tem interesse.” Mas as críticas cruzam outros ministros e Governos, prolongam-se no tempo. “Há dez anos que andamos a pedir para que o Alqueva abasteça aqui a albufeira do Monte da Rocha e só agora é que vai ser concretizado. É muito tempo. As pessoas desesperam. Se continuar assim vamos todos para a reforma.” O pior, diz, não será para ele, que já não vai para novo, mas para o filho, já nem uma palavra de otimismo tem para lhe dar. “O pior será para todos, será para o país. Um país que não tenha uma agricultura e uma indústria fortes será sempre um país pobre”, vaticina.

Estufas proliferam no litoral alentejano (e não só). Críticas ao consumo excessivo de água da agricultura intensiva são recorrentes

O setor da agricultura, que em 2021 gerou 3,5 mil milhões de euros (nos anos 1980 era mais do dobro), é um alvo particularmente crítico da seca. É também o rosto mais visível deste flagelo que faz murchar o território, a sul sobretudo. E no entanto há, nesta zona do país, hectares e hectares onde a agricultura intensiva se faz lei, onde as estufas proliferam, onde as novas instalações nascem a cada passo. Laura Cardoso e Cunha, do “Juntos pelo Sudoeste”, movimento de cidadãos de Odemira e Alzejur que se tem batido contra o “aumento galopante” da agroindústria, dá-nos conta disso mesmo. Estamos em São Teotónio, vila de Odemira, em pleno litoral alentejano. Há filas e filas de plantações de eucalipto ornamental, de frutos vermelhos também, mangas de plástico a perder de vista, estufas sem-fim. Tudo somado são quilómetros e quilómetros, ninguém sabe ao certo quantos, o “Juntos pelo Sudoeste” avança com uma estimativa de 13% da área do Perímetro de Rega do Mira “coberta por plástico, para culturas intensivas”. “E continuam a nascer novas instalações”, aponta Laura, que salienta o paradoxo de se tratarem de plantações que representam “consumos enormes de água” e de tudo isto acontecer em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Apontando o dedo ao Estado Português, que acusa de “total falta de zelo” e de “dar prioridade aos interesses dos grandes grupos económicos que operam na região”, o movimento repete um alerta, em jeito de ultimato: “Continua a predominar uma lógica de desenvolvimento económico à custa da degradação do território, que está esgotado. Tem-se vindo a gerar uma situação ambiental, paisagística e social insustentável e explosiva”.

Barragem de Santa Clara

Isto num momento em que a Barragem de Santa Clara, que abastece todo o Perímetro de Rega do Mira – vai de Vila Nova de Milfontes ao Rogil, já no Algarve -, está num nível particularmente baixo, com apenas 35% da sua capacidade total. E o verão ainda nem começou. Diogo Coutinho, coordenador do projeto “Guardiões do Mira”, dá conta de uma evolução preocupante. “A barragem tem vindo a perder 6% ao ano.” O que significa que, a este ritmo, chegará ao limite em breve. O problema, na perspetiva deste ativista, tem mais que ver com uma “má gestão da água” do que propriamente com a falta dela. “A água é considerada como um recurso económico e não como um recurso vital. Não é libertada para o rio e o rio vai morrendo. Há uma série de más práticas ligadas à perda da biodiversidade e à escassez da água. E a única solução que o Governo apresenta é a dessalinização, que vai tornar a água mais cara e o acesso mais injusto, porque nem todos conseguirão tê-la”. Tal como o “Juntos pelo Sudoeste”, aponta o dedo às novas plantações que se multiplicam nesta zona e que, garante, exigem grandes doses de água. “A Associação de Beneficiários do Mira tem cerca de 1200 associados e 90% da água é consumida por uma dezena de multinacionais.” Acusa até o Governo de ter exonerado a direção da associação, num momento em que tinham sido definidos cortes, “para permitir que as multinacionais continuem a receber água”. E deixa um alerta vincado, em jeito de ultimato. “Quando faltar a água, vai faltar para todos.”

O caso do sotavento e duas visões opostas

O problema estende-se ao Algarve. Aliás, logo no primeiro dia de junho, o ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, admitiu uma situação “assimétrica” no país, com o Alentejo e o Algarve a representarem as situações mais preocupantes. Anunciou, por isso, medidas que visam mitigar a falta de água no sotavento algarvio e que incluem a redução da cota para a agricultura e para os campos de golfe, a diminuição de 15% do consumo de massas subterrâneas e a criação de uma “task force” para rever a utilização deste recurso. Maria João Sacadura, algarvia, geóloga e gestora ambiental, explica o que faz do Algarve uma zona particularmente crítica. “Desde logo, o facto de termos um clima complicado, muito seco, com muito pouca pluviosidade, particularmente a este, no sotavento. Depois, o turismo de massas, que leva à existência de numerosos campos de golfe e que exigem enormes disponibilidades de água para rega. O golfe nasceu na Escócia e não foi por acaso. A Escócia é um país particularmente chuvoso. Associada ao turismo, há ainda a questão da construção maciça na orla costeira, que leva à impermeabilização dos solos.” Sendo que se os solos são impermeáveis, a chuva não se infiltra e os aquíferos (unidades geológicas onde se infiltra e armazena a água) não são recarregados. Somando tudo, o Algarve está, no seu entender, próximo de um ponto “catastrófico”. “Os solos estão cada vez desertificados e isto é uma bola de neve. Num solo deserto, a água é cada vez menor, portanto vai haver menos vegetação e isso vai fazer com que haja ainda menos água.”

Diogo Coutinho da Associação de defesa ambiental SOS Rio Mira

E apesar de Duarte Cordeiro ter garantido, quando anunciou as medidas de mitigação no sotavento algarvio, que este ano “não vai faltar água nas torneiras” – note-se que, no verão do ano passado, houve centenas de localidades e freguesias a terem de ser abastecidas por camiões-cisterna -, Maria João não encontra razões para estar otimista. “Até pode não faltar este ano, mas não tenho dúvidas que se nada for feito de forma consistente, para atacar os problemas de base, vai acabar por faltar. Aliás, neste momento já há gado a morrer no campo por falta de pasto e por falta de água.” Também ela aponta o dedo às culturas intensivas que vão proliferando no território algarvio, à imagem do que sucede no Alentejo. Citrinos, abacates, frutos vermelhos, são centenas de hectares. “Se tiver um abacateiro isolado, ele não precisa de muita água. Mas se tem as árvores muito juntas e quer que elas cresçam rapidamente, já é diferente”, pormenoriza, adiantando que cada abacateiro requer em média 60 litros de água por dia. No caso dos frutos vermelhos, há ainda um problema acrescido. E voltamos à desertificação dos solos. “Como as plantas estão em vasos, os solos tornam-se estéreis, não há comunidade ecológica.”

Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), discorda desta visão. Entende até que as críticas dirigidas à chamada agricultura intensiva têm por base uma série de “equívocos”. “Diz-se que são culturas intensivas porque têm mais árvores por hectare e utilizam mais água. Mas é preciso ter em conta que há uma maior eficiência no grama de produto obtido. E que muitas destas culturas utilizam sistemas de rega gota a gota, com sensores no solo. Vejo muitas vezes as pessoas criticarem as estufas, mas depois querem comer tomate de inverno, não é? Temos de ser coerentes.” E em relação às elevadas quantidades de água que o abacate requer? “Isso é outro equívoco. O abacate gasta tanto como o laranjal, por exemplo. Porque é que a gente há de ser contra o abacate quando quem vive na cidade pode lavar o carro e usar toda a água que quer à vontade?”, questiona.

Importante, entende, é “definir regras”. E apostar numa “gestão eficiente de água”, algo que, aponta, tem falhado em toda a linha. “É preciso ter consciência que a água é um fator prioritário para o país e que tem de ser pensada de forma integrada”. Dá exemplos concretos. “Há concessões a norte que são unicamente utilizadas para a produção de energia que têm de ser negociadas para passarem a ser concessões multiusos. E temos de ver o que realmente podemos utilizar tanto ao nível da água superficial [barragens] como da água subterrânea [poços, furos, aquíferos].” Sem esquecer os famosos transvases (transferências entre bacias hidrográficas). “Há tanto tempo que falamos da autoestrada da água, de a trazer de onde há para onde não há e depois não fazemos nada por isso. A água que cai no território português é suficiente, temos é de a gerir eficientemente. E em quase 30 anos não fizemos nada por isso.” Lembra ainda que, apesar de a situação dos agricultores ser particularmente gravosa no sul, a seca afeta “todo o Interior do país”.

Hirundino Fernandes, Inês Teixeira e João Choupina, da Associação de Criadores de Bovinos de Raça Mirandesa, ponderam vender gado

O desalento de Hirundino Fernandes, João Choupina e Inês Teixeira comprova-o. Estamos no extremo nordeste do país, em pleno planalto mirandês, terra onde a chuva chegou, por fim, nos últimos dias. Mas andou ausente durante demasiado tempo. Já no ano passado, o caso tinha sido crítico. Só em Trás-os-Montes, foram 50 as localidades que tiveram de ser abastecidas por camiões-cisterna, durante o verão. Este ano, a sina tende a repetir-se. “Choveu bastante em novembro e dezembro, mas depois disso praticamente parou.” E agora o mal já está feito. “Estamos praticamente sem forragem para o gado. A única alternativa é comprar palha e ração, mas a ração aumentou quase para o dobro e a palha triplicou em relação ao ano passado”, lamenta Hirundino, vice-presidente da Associação de Criadores de Bovinos de Raça Mirandesa.

Aqui, como no Alentejo, o cenário é um beco sem saída. “Já há muitos animais a passar fome. E muitos criadores resolvem vendendo. Só este ano, na minha freguesia, já saíram mais de 100 animais.” Valter Raposo, secretário-técnico da associação, avança com uma estimativa alarmante. “Num livro que tinha à volta de 5000 fêmeas, já se perderam cerca de mil animais, só desde março do ano passado.” João Choupina também se prepara para contribuir para esta redução. Tem 70 bovinos, mas vai desfazer-se de uns 20, para poder sobreviver. Inês Teixeira igual. Tem 47. Pelo menos uns dez terá de vender. “Mas bem que me vai custar”, lamenta, cabisbaixa. João replica o pessimismo. “As previsões não são muito otimistas. Vai haver uma redução substancial do efetivo, vai haver falta de carne, vai ter de se mandar vir do estrangeiro. E os governos esquecem-se que são os criadores que mantêm o povoado vivo.”

Em Trás-os-Montes, também há dificuldades. João Barros tem a produção de amêndoa arruinada

Mais adiante, em Torre de Moncorvo, João Barros, de 49 anos, também se vê a braços com os efeitos da seca. É quase final de tarde, o céu está carregado de nuvens escuras, ameaça desabar a qualquer momento. Mas nem a iminência da chuva, nem a água que por fim caiu ao longo dos últimos dias, o vai livrar de uma produção claramente abaixo do que conseguiria num ano “normal”. Sendo que já 2022 foi o cabo dos trabalhos. “Costumamos ter 16 toneladas de amêndoa, no ano passado foram seis, este ano não sei como vai ser. Com a seca, a amêndoa não consegue vingar, o grão fica pequenino e não rende.” Bruno Cordeiro, da Cooperativa de Produtores de Amêndoa de Moncorvo, vai retirando cascas e cascas de amêndoas ressequidas das árvores, de semblante carregado. “Estas árvores são quase todas de sequeiro, têm estado sujeitas a um stress hídrico enormíssimo.”

“O que temos feito é acelerar processos”

Para lá da agricultura, Maria José Roxo, geógrafa da Universidade Nova de Lisboa que se tem debruçado sobre a questão das alterações climáticas, aponta vários dados que nos devem preocupar. “Associada a esta recorrência em termos de períodos deficitários em água, há outros indicadores problemáticos: temperaturas muito elevadas, ondas de calor sucessivas em meses inesperados, ventos muito fortes que aumentam a evaporação da água que há nos solos. A associação destes vários elementos do clima é uma catástrofe.” Sendo que os incêndios também têm um papel nesta história. “São mais um elemento para termos noção de que o mato está seco. Como não há humidade no solo, se houver uma ignição arde facilmente.” As próprias chuvadas que devastaram, na passada semana, várias áreas de Trás-os-Montes, têm que ver com isto. “Um dos fatores que leva a que haja uma grande quantidade de inundações e de destruição, como aconteceu em Murça, é precisamente o facto de no ano anterior ter havido incêndios. A água da chuva acabou por levar tudo o que estava no solo, por transportar todos aqueles materiais, causando cheias repentinas, com uma carga avassaladora. Está tudo relacionado. E nós o que temos feito é acelerar processos”, atira, consternada.

Para mudar o rumo desta história, sugere que se trabalhe essencialmente em três eixos. Por um lado, defende, é preciso “armazenar mais água da chuva”. Desde logo, limpando o fundo das barragens, para que se possa acumular mais água. Mas também renaturalizando alguns rios. Outro ponto crucial são os solos. “Esta é a minha grande batalha. Sem água não tenho solo. O solo é uma esponja que quando chove armazena água. Mas para isso tenho de ter um solo bom, o que significa ter matéria orgânica. Neste país, aquilo a que tenho assistido é à desidratação e degradação dos solos em função da cultura intensiva.” O terceiro eixo, refere, passa por as pessoas terem consciência de que a água é um recurso limitado. “O futuro tem uma palavra crucial e essa palavra é reduzir. Temos de perceber que este recurso é vital para todos os ecossistemas, para toda a vida no planeta, mas sobretudo para nós e aí, para além daquelas campanhas que se fazem mas depois desaparecem, isto tem de partir da formação de base. Há aquela noção de que as secas são um problema do mundo rural, mas não. São um problema de todos nós e temos mesmo de aprender a reduzir o consumo.”

Fernando Alves é o responsável de Investigação e Desenvolvimento da Symingtone estuda o impacto das alterações ambientais na produção vinícola

Sara Correia, da associação ambientalista “Zero” e responsável pelo projeto “MedWater”, que tem como objetivos reduzir a procura de água, em especial no Alentejo e no Algarve, e garantir a segurança hídrica da área irrigada, não esconde a angústia. “Vemos serem aplicadas medidas localizadas, muitas vezes de forma tardia, mas não uma estratégia que possa fazer face a esta situação a longo prazo. Isso é aquilo que mais nos preocupa. Reagimos sempre como se fossem situações quase inesperadas. Quando na verdade já sabemos que isto vai acontecer. Não podemos continuar a aplicar este tipo de medidas. Não temos uma política nacional que permita gerir a água que temos disponível nem uma estratégia de longo prazo. E isso tem de mudar rapidamente.” Maria José Roxo reforça este sentido de urgência. Sob pena de chegarmos a uma situação-limite. “Há anos que falamos da evidência que é a mudança climática, temos um número cada vez maior de anos secos consecutivos, chove menos em algumas áreas do interior e do Sul e essa diminuição é significativa, tudo isso foi sendo dito, mas, na verdade, em termos de medidas estruturais, nada disso foi tido em conta.”


O futuro pode passar por aqui

Enquanto se adensa o rol de vozes que pedem medidas estruturais para fazer face à seca, vão-se gizando, num plano mais “micro”, possíveis estratégias que permitam mitigar a falta de água. Viajamos agora até à Quinta do Ataíde, da Symington, nas proximidades de Vila Flor, onde Fernando Alves, responsável de Investigação e Desenvolvimento da empresa, supervisiona há muito uma parcela experimental, com uma finalidade clara. “Vamos aplicando diferentes quantidades de água e vendo como a videira reage. A ideia é percebermos qual a quantidade mínima de água que será preciso aplicar, da forma mais eficiente possível.” Uma necessidade que se tem agudizado face ao progressivo aumento da temperatura. Segundo um estudo de 2012 de que Fernando foi coautor, a temperatura média no Douro aumentou 1,3º entre 1967 e 2010. E portanto a vinha teve de se adaptar. Neste sentido, desde 2019 que a Symington rega 25% das vinhas (95% das quais na região do Douro superior, consideravelmente mais seca). Mas a ideia de usar essa água de forma eficiente, está sempre presente, realça o responsável. “Apostamos numa irrigação deficitária.” Ou seja, além de usarem um sistema gota a gota, regam menos frequentemente e por maiores períodos de tempo, para que a água chegue às raízes profundas. Pelo país fora, há outras soluções a serem adotadas. É o caso da agricultura cintrópica. Marta Cortegano, da associação Terra Cintrópica, resume. “É uma agricultura baseada em processos, que imita a forma como uma floresta tropical funciona. Tentamos entender o lugar que cada planta ocupa num determinado ecossistema e desenhar uma agrofloresta baseada na sucessão ecológica, que maximize todas as interações positivas entre as plantas, as bactérias e os fungos, de forma a produzir e regenerar solos. A água também se planta.” No âmbito da ESDIME – Agência para o Desenvolvimento Local do Alentejo Sudoeste, Marta lidera ainda um projeto de pastagens regenerativas, assente em técnicas como o maneio holístico e o keyline. Em relação à primeira: “Se a aplicarmos na produção pecuária, podemos dividir as terras no maior número de parcelas possível e ir promovendo uma rotação. Isso dá tempo para recuperar o ecossistema e tem um impacto brutal ao nível da água e produtividade.” No caso da modelação em key line, a ideia que é que a água vá dos sítios que têm maior escorrência para os sítios mais secos. Dito de outra forma: “Ir às linhas chave que recebem mais água e começar a conduzi-la para sítios contrários.” Ou como a agricultura está longe de condenada.