Joel Neto

O meu Cristiano Ronaldo


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Ontem à noite, num daqueles zappings com que uma pessoa se refastela quando a casa se aquieta e começam os seus dez minutos de descanso, parei no Porto Canal. Jogava-se algo que me pareceu chamar-se Torneio das Lendas, competição de futebol que não cheguei a perceber exactamente a que escalão se destinava (nem pus som no televisor), mas devia ser qualquer coisa tipo caga-tacos. Tive vontade de ficar ali até às cinco da manhã, a ver os garotos que jogavam. O Estádio do Dragão dividia-se numa série de campos pequeninos, com balizas igualmente menores e um treinador a fazer de árbitro. A câmara apontava a um dos jogos, detinha-se lá uns minutos e depois seguia para o jogo seguinte. De vez em quando havia um grande plano, e era mais delirante ainda.

Miúdos de seis, sete, no máximo oito anos digladiavam-se ao monte em torno de uma bola que lhes dava pelo joelho. De vez em quando um deles conduzia-a por entre os outros, aos tropeções, e ao chegar à baliza desferia um pontapé na atmosfera, tombando de costas. Havia um mulatinho amoroso que chorava imenso. Uma série de defesas-centrais que distribuíam com autoridade e, acto contínuo, se curvavam a compor as meias, como os jogadores da televisão. Duas meninas loiras cujos cabelos se estendiam na horizontal ao correr. Um rapaz com ar de rufia que levava tudo à frente, num desejo a que um dia talvez chamemos “mística à FCP”.

Podia chamar-se Torneio das Lêndeas, e não estou certo de que não se chame realmente assim, numa ternura infinita, pelos gabinetes onde vai sendo preparado ao longo do ano. Apesar disso, é em lugares assim que bandos de pais se juntam para insultar o treinador porque o seu Cristiano Ronaldo foi posto a suplente; para ameaçar de morte o árbitro que deixou um penálti por marcar; para andar à pancada com o pai de um miúdo adversário pela simples razão de que o grandessíssimo cabrão é ainda mais palhaço do que o filho, e o melhor é engolir já quantos-dentes-tem-que-só-se-perdem-as-que-caem-no-chão-e-mais-a-puta-que-te-pariu-ó-boi!

Penso neles, nesses pobres diabos que na verdade são as pessoas mais perigosas do prédio, e volto a perguntar-me: também vais fazer do teu filho um ajuste de contas com os teus fracassos? Quero acreditar que pôr-me desde já essa pergunta será o primeiro obstáculo a fazê-lo. O desporto, inesgotável escola de virtudes, tem esse lado perigoso, que é a confusão entre competição e legitimação. Mas depois lembro-me daquelas conversas entre mães de que me pus à escuta no Jardim da Estrela, em Lisboa, ao longo das muitas horas que lá passámos nas últimas semanas:

– Ai, não, Aero-Om não, por favor!

– Meu Deus, tu dás chucha ao teu filho?!

– Ah, vocês ouvem-no chorar e vão logo… Pois, nós estamos a tentar que ele se habitue a resolver as suas frustrações sozinho.

Portanto, não é o desporto, nem sequer é a competitividade, e muito menos será a procriação em particular. Somos nós todos que nos sentimos mal na nossa pele – com quem somos, com o que fazemos, com o que representamos. E que, ao olhar em volta, já não vemos outra maneira de nos apaziguarmos um pouco a não ser pondo a pata em cima do pescoço do próximo.

A ver se, um dia destes, escrevo sobre a neurose também.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)