Margarida Rebelo Pinto

O essencial é invisível aos olhos


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Há 25 anos, meses antes de conseguir publicar o meu primeiro romance, trabalhava como animadora cultural numa livraria de referência da capital. Embora fosse um part-time, fazia parte do meu contrato organizar eventos culturais à tarde e à noite. Vivia com o meu filho de três anos e, como nem sempre conseguia arranjar baby-sitter, levava-o comigo. Num desses serões frios e chuvosos de inverno, nos quais sair de casa se torna um sacrifício, peguei no miúdo e levei-o ao primeiro McDonald’s que abriu em Lisboa, perto da livraria. Não gostava de lá ir porque era no mesmo lugar onde em tempos brilhara uma pastelaria fina com cadeiras de veludo e empregados apessoados que serviam ducheses e outras iguarias à minha querida avó Henriqueta, uma burguesa de olhos azuis e cabelo pintado de loiro que adorava o marido, as filhas, os netos e as pastelarias de Lisboa, por esta ordem. A minha avó morrera no verão anterior e tinha muitas saudades dela. A pastelaria chamava-se Caravela, depois do seu desaparecimento muitas outras sucumbiram. Hoje, do outro lado da avenida, subsiste ainda a bela Versailles, onde gosto de ir buscar uma caixa de croquetes quando calha.

Na fila para o pedido, reparei num rapaz invisual que estava à nossa frente. Chamava-se Manuel. Pediu um filete de peixe e um hambúrguer de frango.

– São mil escudos. – disse a rapariga de farda e de boné ao receber uma nota de quinhentos escudos.

– Desculpe, – respondeu – tenho aqui outra.

Estava vestido de escuro, com uma gravata onde se viam pequenos barcos. Quando recebeu o troco, apresentei-me e convidei-o a sentar-se connosco. Perguntou-me em que trabalhava e pôs-se a conversar com o miúdo que comia com voracidade, enquanto brincava com o boneco de peluche que era o brinde da sua refeição.

– Olha, Manel, olha o meu brinquedo novo!

– Que giro! – respondeu ele com ternura – o que é?

– Olha, olha! – continuou o miúdo, agitando o boneco no ar.

– O Manuel não vê, tens de lhe explicar como é o boneco.

– Não vê? – perguntou o pequeno Lourenço com um ar perplexo.

– O Manuel é cego. Os olhos do Manuel não vêm.

O miúdo demorou algum tempo a processar uma realidade que lhe era estranha. Com três anos, a boca serve para comer e os olhos servem para ver. Porém, foi rápido a resolver o assunto.

– Pega nele, pega! – disse ao Manuel.

O rapaz acariciou o peluche com um grande sorriso e devolveu o brinquedo.

– Espero não o ter sujado.

Contou-me que perdera a visão por volta dos 4 anos. A mãe contraíra sífilis do pai durante a gravidez. Disse-me que ainda se lembrava do bolo dos anos, todo branco, coberto de açúcar. E também se lembrava do azul infinito do mar, que conseguia voltar a imaginar, sempre que ia à praia. Nessa mesma noite, na livraria, conheci o meu primeiro editor com quem publiquei o livro que mudou a minha vida.

Gostava muito de voltar o ver o Manuel. Talvez o nosso reencontro tivesse em mim o efeito mágico de enganar o tempo e apaziguasse as saudades que por vezes ainda sinto da minha avó e do seu sorriso feliz frente a uma mesa cheia de bolos, enfeitada com netos e muita alegria.

Quem sabe, a memória possui uma lente que aumenta tudo o que vivemos aos olhos do nosso coração, para que as pessoas mais importantes nunca sejam esquecidas e a sua imagem viva em nós para sempre. Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.