Lágrimas de terror. Crianças e adolescentes aprendem a viver sozinhos em Cabo Delgado

Não há, para o cosmopolitismo de Maputo, nenhum longe mais distante do que Cabo Delgado. Extremo setentrional de Moçambique, é uma província há muito à mercê de fúrias diversas. Ali, onde já houvera combates na Primeira Guerra Mundial e alguns dos mais sangrentos recontros da Guerra Colonial. Ali, onde, em 2021, se abateu a fúria do ciclone Kenneth. Ali onde, desde 2017, ataques diários de grupos terroristas associados ao Daesh semeiam a morte e colocam as populações em fuga, tantas delas crianças ou adolescentes que se viram sozinhos no mundo. Estas são as suas histórias, incluindo as que os rostos contam melhor do que as palavras.

Pemba foi rainha. No tempo colonial, a capital de Cabo Delgado chamava-se Porto Amélia em homenagem à mulher de D. Carlos. A poucos quilómetros do centro da cidade, deixando a estrada de alcatrão, entramos no bairro de Mahate. Somos intercetados pelos sons das brincadeiras das crianças. Gritam e fogem em todas as direções no recreio da Escola Primária Completa de Mahate.

Saltam e rebolam pelos poeirentos caminhos de areia em que as bicicletas sofrem para passar as minúsculas dunas formadas pelos ventos do Índico. São milhares. A vegetação é dominada pelo verde das mangueiras com fruto ainda verdoengo e salpicos de coqueiros. Aqui vive Culsomi Alifo, uma menina de 14 anos que conviveu com a morte em 2017, à chegada do grupo terrorista do Daesh à aldeia onde nasceu, em Macomia. Na casa de duas águas de pau a pique, construída com estacas, terra barrenta e capim, uma entre tantas junto à mesquita, reside a família Alifo, oito pessoas distribuídas por três divisões. A cobrir o chão de terra vermelha, as esteiras de capim onde adultos e crianças dormem as noites quentes da época seca. No exterior, uma fogueira, com paus cruzados, dá calor à panela de alumínio polido e reluzente que vai servir a refeição de xima (puré à base de farinha de milho), aconchego diário de todas aquelas barrigas. O hijabe, riscado a preto e cores quentes, esconde-lhe parte do rosto de pele lisa, meigo e sofrido. Os olhos grandes e negros derramam lágrimas grossas quando recorda o terror vivido na sua terra natal há quatro anos. “Vi o meu pai morrer. Foi degolado com a catana dos terroristas. Chegaram fogo à nossa casa quando a minha avó cuidava da minha irmã mais nova, da minha tia e do meu primo. Morreram todos”, conta em voz baixa, enquanto enxuga as lágrimas com os dedos compridos que logo embrulha no lenço. Alifo Chale, pescador de 42 anos, era o amparo da família. Do mar trazia peixe para o sustento de Culsomi e dos irmãos: quatro meninos, com quatro, nove, dez e 12 anos, e uma bebé, que morreu engolida pelas chamas. “Quisemos fazer o funeral do meu pai, mas o corpo não apareceu”, termina, soltando agora os braços em gestos de revolta.

Metade da família ficou para trás, Culsomi e os sobreviventes dispersaram-se pelo território. “Fugi com a mãe, o avô, a tia e os quatro irmãos para o mato. Ficámos alguns dias escondidos, caminhámos centenas de quilómetros até chegarmos a Pemba” – ao repisar este momento, tudo nela se calou. Até os olhos amargurados se fecharam num silêncio sepulcral, de que demorou a sair. Em novembro, quando tudo parecia calmo, os terroristas regressaram. “Mataram, destruíram casas e levaram a minha tia, irmã da minha mãe, que regressou a Macomia. Deu à luz duas meninas gémeas. Foram levadas e ninguém sabe do seu paradeiro.” As gémeas eram a sua companhia e divertimento, e é ao recordá-las que solta as últimas lágrimas, assumindo a derrota e a descrença. Busca os chinelos que afastou enquanto falava, levanta-se e segue ligeira para casa, agitando a saia estampada e rompendo entre as cambalhotas dos mais novos. É hora de vestir o uniforme que usa na escola, onde estuda para “quando for grande trabalhar nos computadores”.

Culsomi frequenta agora a Escola Comunitária de São Carlos Lwanga, em Mahate. Como ela, ali estão centenas de crianças de todo o território de Cabo Delgado fugidas do pavor espalhado pelos terroristas, não só moçambicanos, mas também estrangeiros, da Tanzânia e da Somália. A ação dos insurgentes provocou quase um milhão de deslocados, segundo a Organização Internacional para a Migração. Na vizinha Escola Primária Completa de Mahate, a diretora, Fátima Sunate, conta 3194 estudantes, divididos por três turnos e distribuídos por 33 turmas. “Temos alunos da 1.ª à 7.ª classe. Não há instalações, faltam materiais e equipamentos, coisas básicas como mesas e cadeiras. Metade das crianças está a ter aulas na rua, em salas improvisadas”, lamenta a responsável, assustada com a proximidade da época das chuvas. Estacas de madeira sustentam as chapas de zinco onduladas, revestidas a ferrugem, que cobrem cinco salas. Por baixo, uma grande mancha azul, formada pelas crianças de uniforme vestido. Escuras as calças e saias, embora já gastas pelas brincadeiras, de azul-celeste as camisas, desbotadas pelo sol, formam um conjunto contrastante com o chão de areia onde alguns se sentam, pois não há cadeiras para todos. Sem qualquer outra proteção, a turma do 7.º ano tem aula de Ciências Sociais ao abrigo de uma mangueira, a um canto do descampado. Só metade da turma tem direito a sombra, a outra está à mercê dos 38 graus marcados nos termómetros, ao início da tarde. No quadro de ardósia, escrito a giz: “África, o berço da humanidade”. Neste canto, o berço foi destruído. E esquecido.

No bairro nasceu o Projeto Karibu. A palavra “significa ‘bem-vindos’ em swahili, língua falada em Moçambique, no Quénia e na Tanzânia, pelas mãos da organização não-governamental HELPO”, explica Carlos Almeida, de 48 anos, coordenador nacional da ONG. Tudo começou, à passagem do ciclone Kenneth, em 25de abril de 2021, que deixou grande parte de Cabo Delgado destruída. Em pânico por causa dos insurgentes, os deslocados começaram a descer para sul, em busca de zonas mais seguras, e “nas aldeias onde a Helpo trabalhava houve um aumento de 20% da população, nomeadamente em Silva Macua”. “Hoje já contamos 30%. Sentimo-nos na obrigação de fazer algo pela população, o nosso foco é a educação e a nutrição maternoinfantil, melhorando as instalações, contribuindo com materiais escolares e alimentação. É uma forma de cativar as crianças e promover o ensino”, salienta Cázé, como é conhecido carinhosamente entre a população. Estêvão Maurício, 24 anos, completou o 12.º ano de informática, com a esperança de fazer o curso superior na mesma área. É ativista e voluntário do Projeto Karibu. “Aqui faço o cadastro do bairro, para conseguirmos integrar todas as crianças na escola, principalmente as deslocadas, e contamos já 600 crianças”, diz o futuro engenheiro informático, enquanto consulta a sua base de dados. “A escola já existia, mas com a chegada de centenas de deslocados criámos o Projeto Karibu. Procurar apoios nem sempre é fácil, para intervir contribuindo na reconstrução, com materiais escolares, kits para as meninas, produtos alimentares e de higiene. Estamos a trabalhar em 16 escolas, através do programa de apadrinhamento de crianças à distância e contamos como principal financiador de projetos o Instituto Camões e a Galp”, nota Carlos Almeida, aludindo à dificuldade em conseguir parceiros para a causa. As sucessivas campanhas criadas pela HELPO levaram vários livros e manuais às escolas do bairro, mas faltava um espaço para guardar e consultar os compêndios. “Quando fui contactado para colaborar na construção da biblioteca, não hesitei: a Construsoyo Moçambique aliou-se à ONG e criámos um edifico de raiz. É importante apoiar e fortalecer o projeto pedagógico da escola e da comunidade, além de promover a leitura e proporcionar condições”, esclarece Nuno Saraiva, 43 anos, diretor-geral da construtora, a trabalhar há dez anos na região.

Na estrada para Montepuez, no cruzamento de Matuche, carrinhas de caixa aberta vindas de Ocua seguem na direção de Pemba. Carregam homens, mulheres e crianças, algumas de colo, apavorados, com olhares cruzados e céticos. Fogem da morte. Com eles levam colchões, alguns pertences e muito medo. Ao fim de 82 quilómetros, chegamos a uma vila com três nomes: Sunate, Salaué e Silva Macua, este o mais conhecido. Há muitos anos, estava ali estabelecido um português de apelido Silva, que falava a língua Macua, e assim se deu nome à terra. “Os insurgentes espalharam o terror no dia 8 de junho, varreram toda a região entre Nicunhete e Silva Macua”, testemunha o líder da aldeia, Guilherme Paulo Geremias, que tem 8636 habitantes sob a sua alçada: “Agora, vivemos normalmente e sem medo, mas no dia do ataque fugimos para o mato, para Pemba e para Nampula. Regressámos aos poucos. Os terroristas mataram dois habitantes e dois seguranças da empresa Grafite. Eu aguentei-me por aqui com meia dúzia de homens. Não dormia em casa, ia para o mato, era necessário vigiar a aldeia”.

Sentado à sombra do embondeiro e de três mangueiras de ramos entrelaçados, um grupo de anciãos aguarda boleia para chegar à capital. A poucos passos, sob a mesma sombra espessa e abraçada pelo calor tórrido, meia dúzia de crianças vende sacos de água congelada e chamam-lhes gelado de manga. Levantam a tampa avermelhada do balde branco com prontidão e oferecem bolinhos de farinha fritos. “É a nossa cantina”, desvenda o menino mais astuto, na esperança de trocar os sacos gelados por alguns meticais e rumar a casa no entardecer do dia.

As meninas trançam cabelos e colocam missangas coloridas. Dois edifícios construídos com materiais locais e quatro em alvenaria, divididos em três e duas salas, lembram casernas militares e “acolhem 1664 alunos da 1.ª à 8.ª classe; 649 (até ao final do ano) são deslocados vindos das aldeias vizinhas, e só no último mês chegaram 100 crianças de Nicunhet – foram atacados a 5 de junho e em setembro. A aldeia ficou despovoada. Foram chegando com timidez. Entretanto, com todas as condições reunidas, regressaram a Mocimboa da Praia 80 crianças”, detalha Clementino João Batista Muanahumo, 36 anos, diretor da escola, que, com os quatro novos edifícios, passou de sete para 16 salas. “Com as infraestruturas novas e as outras melhoradas, conseguimos aumentar os anos de escola até ao 9.º ano, alojámos mais turmas e prolongámos as habilitações das crianças. É uma forma de não desistirem”, acrescenta Carlos Almeida, responsável pelos apoios investidos na obra. Aos deslocados que não conseguiram casa perto, foram oferecidas bicicletas com que se deslocam para a escola.

Francisco Pedro, 11 anos, e Dinis Maurício, 13, fugiram de Nicunhete com a família, depois dos ataques de 5 de junho de 2022. Não perderam ninguém. Chegaram a Silva Macua pelo mato, assustados e sem chão. A língua portuguesa está ultrapassada pelos dialetos locais, macua é a língua predominante. Com o professor Geraldo Durão a fazer de intérprete, os meninos vão explicando com entusiasmo a importância da escola. Francisco quer estudar enfermagem, Dinis sonha ser professor de Português e viajar para Portugal. Na sala ouvem-se as lições de outras turmas. Os barulhos do recreio invadem as salas pelas janelas gradeadas, no quadro de ardósia a professora Reinata Remígio João escreve a giz a data – 3 de novembro – e a matéria de Português – perguntas de interpretação. Francisco e Maurício partilham a carteira com outro colega e frequentam a 3.ª classe da professora Reinata, também ela deslocada da mesma aldeia, que faz perguntas às quais a turma responde em coro. Esperam regressar quando tudo normalizar. “Até porque a nossa casa não está distante, são apenas 11 quilómetros”, desvaloriza a docente.

O forno lembra um formigueiro gigante. Revestido a lama seca e petrificada, liberta calores da última fornada por uma abertura lateral. A cobertura frágil, em bambu e capim, abriga Hassan Basílio Samule, de 21 anos, nas noites de chuva. Não nesta, em que o quarto crescente deu luz ao jovem padeiro durante a cozedura de 750 pães, para o lanche das crianças de Silva Macua. No habitáculo paralelo, com paredes de caniço, três adolescentes de cócoras barram com compota de frutas os pães que vão depositando em bacias plásticas. O chá é preparado no panelão encardido pelas labaredas, acesas entre os tijolos de barro que fazem de fogão. Crianças de tenra idade, que ainda não vão à escola, “sabem da novidade e aproximam-se do recinto, aguardando sobras”. “O lanche na escola é um programa introduzido por nós há praticamente dez anos. Trazemos a farinha de trigo, o fermento e a compota. O objetivo é fixar as crianças e dar-lhes algum alimento, porque a maioria vem de barriga vazia. O lanche é distribuído duas vezes por semana. Para muitos, é a refeição do dia” – partilha sorridente, apesar do desejo de alargar o número de lanches semanais, José Luís, diretor de programa da HELPO em Cabo Delgado.

Ouve-se um som cintilante e agudo. O professor bate um ferro, em movimentos sincronizados, contra uma jante pendurada na pequena e despenteada acácia plantada no centro do recreio. É a ordem de saída para os alunos das 1.ª e 2.ª classes, a 3.ª e a 4.ª responderão à segunda chamada. Correm a toda a velocidade, quase sem pousar os chinelos ou os pés descalços no descampado, formam nuvens de pó de areia que vão deslizando em direção à sala. Perfilam-se em pose militar, empunham a caneca e, das mãos dos adolescentes, recebem chá e pão com compota. Já servidos, sentam-se ao longo da sombra do jambalão, na extremidade da parada, e protegem-se das nesgas de sol que atravessam os ramos espessos da árvore. Bebem o chá e saboreiam o doce mastigando lentamente e com satisfação. Saciados, limpam a boca com as costas das mãos, lambem os dedos de olhos cerrados e guardam o perfume do doce num sentimento eterno.

Seguimos para oeste na Nacional 14, rodando no asfalto massacrado, com crateras profundas, pela passagem de camiões, “chapas”, carros ou motos, que circulam às centenas nas duas direções. Há negócios nas bermas: carvão, legumes, plásticos e camisolas com a cara de Cristiano Ronaldo e o número 7 do capitão da seleção nacional. No enfiamento de duas cordilheiras rochosas, entramos na segunda cidade da província de Cabo Delgado, Montepuez. A paisagem foi-se alterando com a exploração mineira do mármore e pedras preciosas. Os campos agrícolas, transformados em minas, perderam a vegetação e a fauna. Os jovens cedo abandonam a escola para trabalhar no subsolo.

António Samuel, 22 anos, Félix Gabriel, 22, Joaquim Patrício, 20, e Sérgio Zito, 25, pararam em Montepuez depois do pânico vivido em Chinda, Mocimboa da Praia. A morte e a destruição foram companhia na estrada, no mato e pelas picadas ao longo de 400 quilómetros percorridos a pé. “Neste processo de integração, as crianças da escola secundária tinham de se deslocar 15 quilómetros, o que era impossível, então procurámos ajuda junto das freiras franciscanas, onde colocámos duas meninas adolescentes, e do seminário dos salesianos, onde pusemos quatro rapazes. Pagamos o alojamento, a alimentação e os gastos nas escolas”, diz Carlos Almeida, explicando como tudo foi conduzido pela organização.

Encontraram a paz no seminário dos Salesianos de Montepuez, mas não se libertam da tristeza. “Nunca mais vi Enchia, de cinco anos, e Eugénia, de sete”, suspira Félix, numa voz amargurada e com os olhos presos na areia. Lamenta o desaparecimento das irmãs, enquanto esfrega as sapatilhas Nike de cordões laranja uma na outra. Sonha juntar a família. Os pais escaparam à tragédia, mas vivem e trabalham na machamba (campo de cultivo), em Mapupulo. António viu o pai morrer “à facada, juntamente com outras pessoas amigas, pelas mãos dos terroristas; a mãe sobreviveu e continua em Chinda”, conta o jovem seminarista, que agora quer seguir os estudos sem esquecer o dia fatídico. Joaquim e Sérgio deixaram as casas destruídas, mas a família fugiu sem sofrer baixas. “Chegámos aqui com a ajuda da HELPO, entrámos no seminário e estudamos na Escola Secundária Dom Bosco, das irmãs”, revela Sérgio, enquanto abotoa a camisa cor de areia presa nas calças azuis do uniforme escolar.

Num edifício de construção colonial vivem as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria. A irmã Isabel Xavier tem a seu cargo Joaquina Patinho, de 17 anos, e Ana Samuel, de 18, ambas alunas da 9.ª classe. “Saímos de Mocimboa da Praia pela picada, a pé, até Mueda e, depois, chegámos de boleia a Montepuez”, descreve Joaquina, numa voz suave e doce, enquanto Ana acompanha a conversa sem mexer os lábios. “Da nossa família não morreu ninguém. Soubemos que atacaram a aldeia ao lado e fugimos era noite. Mas destruíram e queimaram as nossas casas.”

Irmã Isabel dá uma ligeira arrumação à mesa da cozinha e serve castanhas de caju, amendoins e água fresca. Só depois pormenoriza as tarefas que marcam estes dias: “Oferecemos apoio psicológico e falamos muito com elas. Chegam aqui traumatizadas. Dormem, comem e estudam como se fossem da família. Damos formação feminina: boas maneiras, ser, estar, costurar e cozinhar. É importante conquistarem a sua própria independência”. Ficam ali durante o ano escolar. Depois, vão para as famílias, mas regressam. Na região mais pobre de Moçambique, as meninas, obrigadas pelos pais, “casam cedo, com 14, 15 e 16 anos, na esperança de receberem o dote. É uma geração perdida e entregue à pobreza”, realça Carlos Almeida, condenando a mentalidade dos progenitores.

No regresso a Pemba, ainda em Mapupulo, uma acácia oferece a sombra a dezenas de pessoas que se protegem do sol abrasador. Mulheres, crianças e Cristóvão Damião. Saiu com a mulher e oito filhos no dia da destruição de Chinda, 8 de junho de 2020. O filho mais velho, Marcelino, de 17 anos, “ficou para trás com mais 20 homens assassinados a tiro de metralhadora pelos terroristas, sem direito a funeral”. “Nunca pensei ter uma desilusão assim aos 68 anos, depois de uma vida dura de trabalho”, desabafa, chorando a perda do adolescente, que ajudava no sustento da numerosa família e no cultivo das três machambas, com bananeiras e uma delas com “nove mil pés de caju”. “Construímos uma casa em pau a pique com cobertura de 70 chapas”, diz com orgulho, lamentando as atuais circunstâncias: “Aqui, vivo numa palhota de pau simples (casa em matope), as crianças já estão na escola e continuo a trabalhar na agricultura. Deixaram-me cultivar uma machamba e colhi duas toneladas de cebolas sem ‘moto-bomba’, mas ainda não consegui comprador”.

Estamos de volta a Mahate, o bairro de Pemba onde iniciámos a caminhada. Na única parede em blocos de cimento da sala improvisada com chapas estacadas e chão de areia lê-se: “Com a mente em paz, a gente pode mais”. É esse o sentimento com que Joaquim Pedro, 14 anos, assiste com atenção à chamada da professora que distribui as avaliações pelas dezenas de alunos da 7.ª classe. Saiu de Macomia, no mesmo dia de Culsomi, passando pelo mesmo desespero. Agora, só quer estudar e ser enfermeiro.

Assílo Zacarias, de 15 anos, tem estampada na camisola azulada Josina Machel, mulher de Samora Machel e ativista pelos Direitos Humanos (símbolo da mulher moçambicana). Não conhece a senhora, mas diz ter gosto na indumentária. Fugiu com Omar Assumane, que tem a mesma idade, e frequentam a mesma classe com o apoio do Projeto Karibu. “Quando os terroristas entraram em Muidumbe, vindos de todas as direções, gritavam em português e em kimwani (língua da costa): ‘Não sai ninguém!’. Começaram a disparar e a matar. Aos homens cortavam-lhes a cabeça”, vai contando, mas faz uma pausa, enquanto aperta a mão do amigo Assílio, que o olha fixamente, calado. Continua depois: “Fugimos para a estrada, com a mamã a tropeçar, a cair e sempre a empurrar-nos”. Assim foi, com Sónia Eduardo arrastando, também, os outros irmãos, de sete, 12 e 13 anos, no desespero de procurar um carro para os tirar do inferno. “Estudo para advogado e político, quero proteger o meu povo”, atira Omar, esboçando um sorriso na direção de Assílio, que estuda para enfermagem.

Luís Jonas, 15, e Meque Francisco, 14, chegaram de Mocimboa da Praia depois de levarem dias a caminhar até Macomia (146 quilómetros pelo mato), onde conseguiram uma boleia para Pemba. Luís sepultou o pai há dois anos. “Morreu de doença e a minha mãe abandonou-me, fugi com a minha tia”, zurze, enquanto puxa os fios das calças rasgadas e olha os chinelos rosa saídos dos pés. Meque é de menos palavras. Vai descrevendo o mesmo percurso de fuga com os pais e os quatro irmãos. “Em Mocimboa, queimaram casas, carros, a igreja e a mesquita. Os homens morreram de tiros de pistola, não sei se quero voltar. Estou bem na escola e aqui tenho ajuda para crescer”, vai murmurando, com os olhos aguados perdidos no rosto negro e sofrido. Luís gosta de estudar, mas sonha em fazer carreira numa força de segurança. Meque, à medida que se liberta, transforma o medo em raiva. “No futuro, quero ser militar e vingar-me dos terroristas”, exclama, dentes cerrados, soltando a angústia que lhe aperta o coração.

Ao final do dia, Culsomi já não enxerga a matéria escrita no quadro de ardósia. A professora carrega a filha nos braços, enquanto desfila pela sala e verbaliza uma ou outra palavra que a criança não descodifica. “Estou com um problema na vista, preciso do médico dos olhos”, remata, num gesto simpático mas com os olhos entreabertos acusando o cansaço. O final do turno é sinalizado pelo bater do ferro na jante. Como em Silva Macua. Já com o sol a esconder-se algures a oeste, Culsomi agasalha os livros debaixo do braço e calcorreia os gomos de areia formados nos caminhos pelo vento da tarde.