Insolvência pessoal: perder tudo para voltar a viver

O desespero para pagar as prestações e as despesas correntes. Os bens penhorados. Os créditos para tapar buracos. São bolas de neve de dívidas, onde se cai quase sem se dar por isso. E a vida a ficar de pantanas. No meio da aflição, a insolvência pessoal é a única saída para muita gente. A última crise fez disparar o número destes processos. E a pandemia, a inflação e a subida das taxas de juro são ingredientes que antecipam que os casos vão aumentar.

Fernando já não tem vergonha. Diz o nome todo, assim sem medos: Fernando Pedro Moreira. A humilhação, a mágoa de perder tudo por que tinha lutado uma vida inteira ainda é uma mochila pesada, mas vestiu a capa de quem sabe restar-lhe a dignidade. Dois filhos catraios, dez e sete anos, que bem tentou despistar. “Dizia-lhes que íamos viver para uma casa mais perto dos avós. Que ia trocar de carro. Tive que os tirar do futebol, da natação. É de uma impotência total para um pai.” A pandemia foi um vendaval sem aviso. Fernando tinha dois empregos, perdeu um em 2020. A mulher, que trabalha a recibos verdes como ama, viu-se sem trabalho e sem rendimento durante meses. Os confinamentos foram uma sentença. “De repente, estávamos num buraco. De três ordenados ficámos com um. E as contas a vir. Não me sobravam nem 20 euros para comprar leite para os meus filhos. Tive que pedir dinheiro ao meu pai para comprar comida.” O crédito habitação, o crédito automóvel, a água, a luz, o gás, uma soma a parecer infinita. Tentou renegociar, tentou um empréstimo para tapar buracos.

Um dia bateram-lhe à porta para lhe levar o carro. O caminho ficou esguio. Agosto de 2020, a bola de neve a agigantar-se – “cheguei a pensar cometer erros, roubar para comer, o desespero é tanto que nem se imagina” – e uma pesquisa na Internet por um advogado. “Encontrei o doutor Pedro Meira, que não foi um advogado, foi um amigo. Que nos conseguiu dar esperança.” Fernando e a mulher avançaram para um processo de insolvência pessoal. E veio a dor de ver o tanto que construíram a voar, como um penso rápido arrancado à pressa. “Perdi tudo o que tinha. Tudo. A casa, o recheio. Virem tirar-me tudo, ali perante a minha mulher e os meus filhos, é humilhante.” Os sogros cederam-lhes um andar-moradia para morarem. Um amigo emprestou-lhes um carro que não usava.

Estão a reerguer-se. O tribunal definiu que, além da casa, tudo o que recebam de salário acima de três ordenados mínimos têm que entregar – o casal não chega a isso nos rendimentos. Até 2024, o ano em que a família vai conseguir a exoneração do passivo restante, que é como quem diz que ficam totalmente libertos das dívidas. É um começar de novo previsto na lei. Um renascer das cinzas. Mesmo que o estigma os possa perseguir. “Sentimos muito. Mais de familiares até. O julgamento típico de que foi má gestão nossa. Eram críticas em vez de uma palavra amiga. É tudo muito doloroso, estávamos muito bem e de repente perdemos rendimentos e ficámos completamente frágeis. Se eu e a minha esposa não nos tivéssemos unido tanto, o nosso casamento não teria durado.”

Insolvência pessoal e o “fresh start”

Pedro Meira, advogado, admite que o filme da última crise (em 2013 bateu-se o recorde das insolvências de pessoas singulares, com 10 717 processos) pode estar prestes a repetir-se. Depois de uma pandemia, chegou a inflação, as taxas de juro a disparar. “Já se começa a sentir. Agora há uma legislação nova, os chamados cuidados paliativos, que obriga os bancos à renegociação dos créditos, o que atrasa os incumprimentos. Mas isto é uma bola de neve. É um conjunto de ingredientes que vai ter consequências a médio prazo.” Lá iremos.

Afinal, o que é isto da insolvência pessoal? “É não só ter um passivo superior ao ativo, mas também uma impossibilidade efetiva de cumprir com as obrigações”, explica Zita Medeiros, advogada. Isto é, acontece quando não há recursos suficientes para cumprir o pagamento dos créditos, bem como para fazer face às despesas mensais correntes. Por exemplo, quando já não se consegue cumprir com o crédito habitação podemos estar perante uma situação de insolvência. Se ainda se consegue cumprir, mas já há dificuldade em pagar, podemos estar a falar de uma insolvência iminente. Aliás, um dos maiores indícios de insolvência é precisamente a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações – seja crédito habitação, automóvel ou outras.

Trata-se, na prática, de um processo judicial, que dá entrada no tribunal, por iniciativa da própria pessoa ou de algum credor. Simplifiquemos. Há a hipótese de insolvência com a apresentação de um plano de pagamentos judicial, que permite preservar o património. Ou a insolvência que implica perder todo o património (casa, recheio, carro, mota, bicicleta…) para que seja vendido e o valor entregue aos credores. Neste último caso, junta-se o pedido de exoneração do passivo restante, quando os bens não são suficientes para saldar as dívidas. “É um benefício que a lei concede ao devedor para conseguir um ‘fresh start’, um conceito importado dos Estados Unidos, que permite aos singulares ficarem presos ao processo durante três anos (até abril de 2022 eram cinco, a lei foi alterada para cumprir uma diretiva da União Europeia) e depois desses três anos fica-se liberto das dívidas.” É uma ficha limpa a partir daí, um começar do zero.

“De repente, estávamos num buraco. Dos três ordenados, ficámos com um. E as contas a vir. Não me sobravam nem 20 euros para comprar leite para os meus filhos”, conta Fernando Pedro Moreira

Durante esses três anos, o devedor pode ter que entregar parte dos rendimentos. Normalmente, o tribunal define um valor mínimo de subsistência, de acordo com a realidade de cada um – se houver filhos, será maior -, mas que normalmente corresponde ao salário mínimo. Partindo desse pressuposto, tudo o que o devedor receba acima do salário mínimo, tem de ser entregue. “Na maioria dos casos, não é entregue nenhum valor ou é muito residual”, aponta João Mota da Costa, advogado. O perdão, avisa, só não engloba as dívidas ao Estado, nomeadamente à Segurança Social, Autoridade Tributária, coimas. Essas são para a vida.

Certo é que antes da última crise, “ninguém conhecia muito bem o conceito de insolvências de pessoas singulares”. É Zita Medeiros quem o diz. “As pessoas hoje estão muito mais alerta para as consequências de não pagarem os créditos. E para esta hipótese quando entram em dificuldades. Já me chegam clientes a sugerirem eles próprios a insolvência.” Que é uma solução. “Imagine-se pessoas que perdem a casa e ainda andam dez, vinte anos a pagar dívidas. A insolvência é um mecanismo de recuperação, são três anos, é curto.”

A teia dos cartões de crédito

Fernanda Pereira é mãe solteira, trabalha numa fábrica. Fala acelerada, sem pudores. Viu-se enredada numa teia de dívidas de cartões de crédito. “Vivo sozinha com a minha filha, de nove anos. Não tenho casa própria, não tenho carro. Mas pago 420 euros de renda, ganho o ordenado mínimo e os cartões de crédito pareciam uma solução fácil. Usava para pagar a água, a luz.” A teia começou a ganhar forma em 2019. Abordagens em centros comerciais, por telefone, cartões de crédito à mão de semear. “Fiquei iludida a achar que era uma solução. Até que percebi que já não tinha controlo.” Os extratos chegavam e Fernanda não conseguia pagar. Os juros astronómicos a acumularem. O medo que lhe penhorassem o ordenado, o abismo a aproximar-se, o sufoco a apertar. Procurou um advogado. “A minha ideia era juntar os créditos todos num só.”

Mas a insolvência foi, afinal, a saída. “Ao início não sabia bem do que se tratava. E, claro, há a vergonha. Sobretudo quando tive de comunicar aos patrões. Mas o advogado tranquilizou-me. Como não tenho bens, não tive que entregar nada. E como recebo o salário mínimo, também não tenho que entregar parte dos meus rendimentos. Ao fim de três anos tenho o perdão das dívidas. Quando percebi, nem acreditei.” Está prestes a conseguir a exoneração do passivo restante. O alívio. Conseguiu, entretanto, um apoio à renda da Câmara de Vila Nova Gaia, que “tem sido uma ajuda grande”. “Tenho conseguido gerir. Há coisas que não compro no supermercado, sobretudo com o aumento dos preços. Privo-me muito, a mim e à minha filha. É complicado, mas nunca mais na vida me meto em cartões de crédito.”

Na verdade, cair num poço sem fundo é mais fácil do que se possa imaginar. Acontece a pessoas que tinham vidas completamente organizadas. Em regra, é o desemprego que precipita as dificuldades. “E isso pode acontecer a qualquer um de nós, mesmo a quem tem rendimentos altos. As pessoas vivem as vidas delas de acordo com as possibilidades que têm. Mas, de repente, mudando algo, caem numa situação difícil”, reconhece Zita Medeiros. A maioria dos casos atualmente, assegura, são as “chamadas insolvências legítimas”, ou seja, não culposas, “e precisamente por isso é que estas pessoas merecem o perdão”.

Vamos a números. Até 2008, o número de insolvências pessoais rondava as centenas. Foi a partir daí que começaram a disparar de forma mais visível e cresceram até ao ano do pico, em 2013, com mais de dez mil processos. Desde então, tem vindo a cair, aos poucos. Em 2021, o último ano completo disponibilizado pelo Ministério da Justiça, foram 6143 as insolvências de pessoas singulares. E no ano passado, só até setembro, já havia 5161 processos.

A avalanche, a catástrofe, a cascata de processos da última crise ainda não chegou. Longe disso. Mas já há pessoas a procurarem advogados para se aconselharem. “Estão a tentar adaptar-se a esta nova realidade. Sabemos que para a maior parte das pessoas de classe baixa e média é impossível suportar aumentos de 300 euros na prestação da casa, mas hoje há mais informação e depois da última crise negoceiam com os bancos, têm mais cuidado com créditos. Sendo certo que o cenário pode vir a mudar de figura no final do primeiro semestre deste ano”, calcula Zita Medeiros. João Mota da Costa concorda. Prevê que a escalada inflacionista vá levar muitas famílias a uma situação limite ainda este ano. “E por isso é que importa dar a conhecer que há mecanismos preventivos, de renegociação, para evitar processos executivos e de insolvência, com a sempre dramática liquidação de património.”

Na maioria dos casos, assinala, as pessoas procuram ajuda numa fase já muito avançada da deterioração da situação económica e financeira. E deviam fazê-lo “logo que se verifiquem as primeiras dificuldades”. Também advogada, Rita Rola já tem sido mais procurada para processos de insolvência pessoal. “Ainda é muito cedo para tirar conclusões, mas acredito que os números vão disparar. Porque as pessoas estão com rendimentos parcos para o custo de vida.”

Investir em criptoativos, cair no endividamento

Recuemos a finais de 2021, inícios de 2022. Foi aí que Alfredo (nome fictício) começou a sentir as dificuldades financeiras. Divorciado, com um filho adolescente em casa, tinha investido grande parte do património financeiro em ações de criptoativos, nomeadamente na moeda digital Bitcoin e em NFTs. “De forma a realizar os investimentos, fui-me endividando.” Mas primeiro veio a pandemia, depois a guerra na Ucrânia, e o valor das ações caiu a pique, os ativos digitais idem. Vendeu alguns, perdeu cerca de um quinto do valor total que investira. Para se manter à tona, contraiu créditos pessoais na esperança de que “num curto espaço de tempo ganharia muito dinheiro de forma fácil”. Na crença de que tudo era passageiro. Abriu um buraco financeiro, uma queda vertiginosa.

“Vivo sozinha com a minha filha. Pago 420 euros de renda, ganho o ordenado mínimo e os cartões de crédito pareciam uma solução fácil. Usava para pagar a água, a luz”, reconhece Fernanda Pereira

“Tive, na verdade, muito azar, porque parte dos meus investimentos estavam numa corretora que faliu, a chamada FTX.” Ainda tentou renegociar os créditos, os bancos fecharam-lhe a porta. Entrou numa fase de depressão. Sentiu a dor de os pais quererem vender a casa onde vivem para lhe pagar as dívidas – não contou a outros familiares, vizinhos nem amigos. Pediu ajuda. “Procurei o advogado Dantas Rodrigues. Já estava a ser confrontado com os vários processos executivos para cobrança coerciva das dívidas. Na altura não tinha sequer noção de que a insolvência seria a melhor solução.” Não conhecia a figura jurídica, mas percebeu que “o prazo para conseguir o chamado ‘fresh start’ era agora de três anos, o que veio facilitar muito”. Vive numa casa arrendada, o carro que usa é de serviço, da empresa. “Entrego uma parcela do meu rendimento mensal ao administrador de insolvência.”

Famílias em aflição

De acordo com a Deco, nos últimos anos as insolvências pessoais ultrapassam largamente as insolvências de empresas, o que é revelador da maior informação e do estigma social a cair. Até 2010, o fenómeno era inverso. Mas esse desfecho não é imediato. “As famílias estão a sentir agora as dificuldades, a deixar de pagar alguns encargos, como cartões de crédito, créditos pessoais, só em última instância é que entram em incumprimento com o crédito habitação. E nessa fase é que pedem ajuda”, salienta Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira.

A Deco faz aconselhamento gratuito (sobretudo por telefone, por ainda haver muita vergonha), ajuda a apontar caminhos, sempre de forma extrajudicial. “A decisão é sempre da família. Mas é muito importante que esteja bem informada do que significa um processo de insolvência, que é doloroso, e em que não se pode entrar de ânimo leve.” Natália alerta que “muitas pessoas entram no processo com o atrativo de decorridos três anos se livrarem das dívidas, mas sem perceberem que até lá vão perder casa, carros, bens, que parte do seu rendimento tem que ser entregue, há muito desconhecimento”.

E, apesar de o espírito da lei ser um “fresh start”, o recomeço pode ter alguns espinhos. “Já vimos bancos a recusarem abrir uma conta a quem foi considerado insolvente. Operadores de telecomunicações a não aceitarem celebrar contratos. Empresas de recrutamento a não contratarem pessoas que foram declaradas insolventes.” O objetivo da Deco é evitar que as pessoas cheguem a este ponto, “ajudar a reorganizar, a otimizar orçamentos familiares”. A olhar para as despesas, a reduzir gastos, a fazer planos de pagamento para cartões de crédito, por exemplo. “Nos últimos tempos, temos tido alguma pressão de contactos por causa do aumento da prestação do crédito habitação. E estamos a dar toda a informação. Um aumento de 200 euros, muitas vezes, é dramático e saber as alternativas que existem é bom.”

A queda à boleia de empresas

Ainda que a realidade atual esteja a massacrar muito as famílias, as insolvências pessoais também chegam, muitas vezes, à boleia de empresas. José, só José, 53 anos, foi carpinteiro a vida toda. Trabalhava para o irmão. Construiu a casa onde vivia com a mulher e os dois filhos à conta do trabalho. Uma vida estável, duas carrinhas, uma mota. O irmão sugeriu-lhe que comprasse a sua empresa de carpintaria, um presente envenenado. Confiou. E o resto é um novelo sem fim. A empresa chegou-lhe às mãos carregada de dívidas. Daí para as penhoras dos bens pessoais foi um instante. Mal teve tempo de piscar os olhos. Casa, carros, recheio. “Levaram-me tudo, só me deixaram a família.”

Mudou-se para uma casa arrendada – 360 euros já com despesas. Tudo o que a mulher recebia acima do salário mínimo era penhorado. José ainda tentou segurar as pontas com biscates de carpintaria e a pandemia aterrou que nem bomba. “O preço do material subiu. Tinha móveis encomendados, que fiz, mas depois os clientes já não queriam. Foi tudo prejuízo.” Estava a nadar em dívidas, a inflação a juntar-se à festa, acabou finalmente a pedir ajuda. Depois de um calvário de anos. A insolvência foi decretada em dezembro. Agora, espera encontrar um emprego. “A minha mulher está a receber o salário mínimo, temos que fazer muita ginástica. Vão ser três anos duros, ao princípio parece uma eternidade. Mas vamos a ver se ainda vou a tempo de reconstruir alguma coisa da nossa vida.”

Maria, só Maria, também viveu o semelhante. O cão, Fred, de volta dela. Um vira-lata adotado de um abrigo de animais, não é cão-guia mas é amor. Maria é invisual, cegou aos 21 anos. Conheceu o falecido marido, que também cegou tarde, num centro de reabilitação para invisuais. Casou, foi morar com ele para Coimbra, trabalhar como telefonista nas empresas do marido e do pai dele. O marido acabaria por falecer em 2007, vítima de cancro, e as dívidas de uma das empresas dele – que entretanto já tinham sido vendidas – viriam, anos mais tarde, cair-lhe no colo qual furacão. “Nos pedidos de empréstimo à banca para as empresas, eu também tinha que assinar por estar casada em comunhão de adquiridos, mesmo não sabendo o que estava a assinar.” As assinaturas, por ser cega e não terem sido feitas perante um notário, não eram válidas. O tribunal deu-lhe razão aí, só que já tinham passado os prazos para contestar.

“Levaram-me tudo. Só me deixaram a família”, testemunha José

Passou anos a pagar uma dívida que não era dela. Parte do salário penhorado. Primeiro, perdeu o apartamento que havia comprado depois de o marido falecer (antes vivia em casa do sogro). Depois o emprego. Mudou-se para o Porto, para uma casa que a mãe tinha para arrendamento. “Achava que era temporário, até que me caíram mais dívidas. Dívidas que não fiz. Uma catrefada que até me benzi. No fundo só confiei no meu marido e no meu sogro. Isto causa muito revolta.”

Num labirinto de angústia, não houve caminhos alternativos. Pediu insolvência, em outubro do ano passado. Tem 57 anos, nunca mais conseguiu voltar a trabalhar – ao facto de ser invisual somou-se a idade. Vive com uma pensão de invalidez, entrega subsídios de férias e de Natal e tudo o que recebe acima de um salário mínimo e um terço (valor estipulado pelo tribunal). “A minha mãe ajudou-me muito. O dinheiro que recebo é exatamente para cobrir tudo o que apresentei como despesas ao tribunal, se houver um imprevisto tenho que pedir ajuda. E agora com a inflação é horrível. Durante três anos tenho que viver assim, até acabar o processo. Mais três anos com a vida amputada.” Mas ainda guarda resquícios de esperança. “Espero conseguir viver os últimos anos da minha vida com alguma dignidade.”