Famílias que mudam de vida para acompanhar os filhos no sonho do futebol

Os pais de Simão chegaram a acampar em Braga. O dinheiro era pouco, mas faziam questão de andar 800 quilómetros para o visitar todos os fins de semana. Os de Rodrigo vão-se habituando aos poucos à ausência. Não abdicam de ir duas vezes por mês ao Seixal. Nem de acompanhar o filho mais velho, que joga a 300 quilómetros. Os de Gonçalo tinham esta ideia por certa: onde ele for, nós vamos também. Hoje, vivem os três em Alcochete. Os miúdos mudam-se para as academias de futebol cada vez mais cedo. E os pais correm atrás. De uma forma ou de outra.

Entre o final de julho e o início de janeiro, Ricardo e Rita perderam a conta aos quilómetros, ao gasóleo, ao número de vezes que se enfiaram no carro para irem de Alcochete a Braga e de Braga a Alcochete, quase 400 quilómetros para cima, outros tantos para baixo, umas oito horas ao volante e nem sequer estamos a incluir paragens. “Em cinco meses, só houve três fins de semana em que não fomos”, frisa o pai. Tudo pelo filho, Simão Ribeiro, 13 anos, médio ofensivo promissor que brilha nos sub-14 do Sporting de Braga. Ainda por cima apanharam a subida do preço dos combustíveis, até tiveram a sorte de trabalhar sempre, mas o dinheiro não estica, não dava para tudo. E então acampavam, acamparam várias vezes, lá arrancavam eles às quatro da manhã, só com “uma daquelas tendas que se montam sozinhas, sandes de torresmos e dinheiro contado para o gasóleo”. Ricardo lembra-se até de ter só meia dúzia de tostões no bolso e uma escolha para fazer: ou bem que iam ao bar comprar algo para a viagem de regresso, ou bem que investiam na primeira foto oficial do garoto no novo clube e num porta-chaves a condizer. “E claro que escolhemos a foto”, completa o pai, a rir, ele que há uns anos, quando o talentoso Simão se mudou do Alcochetense para o Vitória de Setúbal e passou a treinar “mais cedo”, até mudou de trabalho, só para poder acompanhar o miúdo. “Só eu é que tenho carta”, justifica.

Por ele, até se tinham logo mudado todos para Braga. Mas a mãe estava receosa, levou tempo para processar a ideia, mesmo que logo no dia em que deixou o rebento na residência do clube, com um rasto de lágrimas à mistura, tenha sabido que, mais dia menos dia, teria de ir para junto do filho, que não saberia viver naquela angústia, porque “casa é onde estamos todos”. E só de se recordar volta a ficar com os olhos mareados, baixa a cabeça, pede ao marido que continue. “A primeira coisa foi desfazermo-nos da casa, era alugada, isso facilitou. Mudámo-nos durante três, quatro meses para a minha sogra, o que também nos permitiu ter dinheiro para vir cá todos os fins de semana.” Depois, foi resolver as questões profissionais, arranjar casa em Braga, trazer uma vida inteira às costas. Foi em janeiro, não parece mas só lá vão três meses. Rita não tardou a arranjar novo trabalho, como gestora de clientes, Ricardo continua com subsídio de desemprego e, para já, dificilmente poderia ser de outra forma. Por mudar de escola a meio do ano, o filho mais novo (Matias, nove anos, também já joga no Braga) ficou sem prolongamento do horário e cabe ao pai acompanhá-lo durante uma boa parte do tempo. Recuando àqueles cinco meses de vaivéns incessantes, essa era outra parte dolorosa da equação. Por serem viagens tão longas, dias tão estafantes, por dormirem numa tenda, por comerem qualquer coisa a despachar, optavam por não trazer o mais novo. E então os irmãos “quase nunca estavam juntos”, era uma família permanentemente marcada pela distância.

Os pais de Simão (ao meio, a sorrir) mudaram-se de Alcochete para Braga em janeiro. Tudo para acompanhar o filho e o ajudar a realizar o sonho de ser futebolista profissional

Agora não, vivem os quatro em Braga, a cidade é “muito bonita” e foram “muito bem recebidos”, estão todos sentados no sofá de um apartamento simpático num prédio antigo, próximo da Cidade Desportiva, a casa-forte do futebol de formação dos minhotos. Falam daqueles primeiros meses insanos, da mudança, do “sabor agridoce” do convite que lhes tirou o filho do ninho mas não os fez vacilar. “Quando o meu pai me disse, tinha acabado de sair do treino, primeiro fiquei meio em pânico, mas depois soube que tinha que vir”, partilha Simão, aparentemente mais à vontade com a bola do que com entrevistas. O pai também foi jogador (“mas foi meio a brincar, só cheguei à segunda divisão”, ressalva), ele cresceu com o bichinho, desde pequeno que só queria saber da bola, foi até das primeiras palavras que disse, lembra a mãe. Com dois e três anos já passava tardes infinitas no jardim a jogar à bola, com quatro anos começou a jogar futsal no Núcleo Sportinguista de Alcochete e já “fintava os meninos todos”, orgulha-se o pai, que ainda guarda vídeos dessa altura.

Desde então, “poucos torneios fez em que não tenha sido o melhor jogador”, aponta Ricardo. E desde os 12 anos que tem empresário. “Porque, embora eu conheça um bocadinho este meio, o futebol evoluiu tanto que sentimos necessidade de ter alguém que nos ajude.” Por ter crescido em Alcochete, lado a lado com tantos garotos que, em nome do sonho, vinham de longe para ali treinar, o pai sabe bem que o talento não basta, que pode haver uma lesão, que “acaba rápido”, nada é garantido. “Em tantos miúdos que jogavam e foram meus colegas, só o Rui Patrício é que deu jogador.” Também por isso, procuram constantemente sensibilizar o filho para a importância da escola. “Em Alcochete, estava no quadro de excelência”, envaidece-se a mãe. Este ano, baixou um pouco as notas, mas mantém-se nos quatros, o que de alguma forma a descansa. Por falar em inquietações: e se, ao cabo de tantos sacrifícios em prol do filho, a aposta não dá certo? A ideia não parece apoquentá-los. “Sempre sonhámos vê-lo concretizar o sonho dele. Se podemos acompanhá-lo, vamos fazê-lo, vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance. Não lhe vamos cortar as pernas.”

Um pé no Porto, outro em Lisboa

Simão é um entre dezenas de garotos que, todos os anos, abdicam do aconchego do lar para rumar às academias dos principais clubes de futebol. Do Benfica, do Sporting, do F. C. Porto (a “Notícias Magazine” contactou o clube azul e branco para incluir uma jovem promessa dos dragões neste trabalho, mas tal não foi possível), do Sp. Braga, do Vitória de Guimarães. E fazem-no cada vez mais cedo. Com 13 anos, com 12, por vezes com 11. É o caso de Rodrigo Moreira, guarda-redes que chegou ao Seixal em agosto do ano passado e desde então integra a equipa de sub-13 do Benfica. Encontramo-lo na cantina do Benfica Campus, são quase duas da tarde de sexta-feira, acabou de chegar da escola e prepara-se para almoçar, a rotina já se entranhou nos dias, mora cá faz mais de meio ano. Primeiro pousa o telefone na pequena mesa que se encontra à entrada (no Seixal, todos os atletas estão impedidos de usar o telemóvel durante as refeições), aguarda sereno na fila, escolhe o que vai comer, senta-se com os colegas, quase sempre calado, é muito educado e parece pouco confortável com a exposição mediática. Já num espaço mais calmo, sem os olhares todos postos nele, faz o balanço da experiência. “No início foi mais complicado, estava habituado à minha família, somos muito apegados, tinha saudades. Mas falo todos os dias com os meus pais e os meus irmãos e tenho amigos aqui, estamos sempre juntos. É uma academia muito boa e é muito bom estar aqui.”

Rodrigo começou a jogar futebol com seis anos, no Rio Tinto (freguesia de Gondomar), passou anos como jogador de campo, só foi parar à baliza com nove anos, quando o guarda-redes faltou e ele se ofereceu para o render. Correu tão bem que daí em diante já não conheceu outra posição, para desespero do pai, que já tinha visto as cenas daquele filme (lá iremos). Entretanto, passou pelo Salgueiros, mas só de fugida, pois não tardou até que o departamento de scouting do Benfica o sinalizasse. No início da época 2021/22, mudou-se então para o Centro de Formação e Treino de Aveiro, parte integrante de um projeto lançado em 2008 pelos encarnados com o objetivo assumido de “potenciar a capacidade de recrutamento e fidelização de jogadores até ao escalão sub-12, em zonas longínquas de Lisboa”. E não tardou até que se anunciasse uma mudança bem mais colossal.

A história é retomada por Ricardo e Solange, os pais, a mais de 300 quilómetros de distância, no Porto, mais precisamente na casa onde moram com os outros dois filhos, Fábio, de 16 anos, também futebolista, também guarda-redes, mas do F. C. Porto (sub-16), e Lucas, quatro anos, até ver não joga, mas já anuncia ao mundo que gostava de ser guarda-redes como os manos. O pai torce para que não, mas a verdade é que já torceu uma vez e de pouco lhe serviu. “Quando o Rodrigo ficou como guarda-redes, foi um bocado contra a minha vontade, porque já tinha tido essa experiência com o Fábio e é muito inglório. Os guarda-redes estão sempre muito expostos e ouvem-se coisas horríveis nas bancadas.” Solange, a mãe, reforça o “horríveis”, fazem até por se distanciar para não ficarem de nervos em franja. E ainda assim Rodrigo agarrou o lugar, chegou a marcar um golo de baliza a baliza, mostrou que tinha potencial e foi por aí fora, até àquele dia de janeiro do ano passado em que foram “convocados” para ir ao Seixal, falar com os responsáveis pela formação do Benfica. “Fizeram-nos uma visita ao campus, mostraram-nos os quartos, explicaram-nos tudo, disseram-nos que gostavam que ele fosse para lá.” Rodrigo, para surpresa dos pais, da mãe sobretudo, que sempre achou que ele “não ia ter coragem”, disse logo que queria ficar, estava “deslumbrado” com as condições. Os pais tremeram, ainda por cima era tão novinho, Solange começou logo a chorar. “Isto em janeiro, quando ele só ia em setembro”, frisa Fábio, enquanto atira um olhar carinhoso à mãe. Choros à parte, quando de lá saíram já tinham acedido a deixar a cria voar. “Há pessoas que ficam muito chocadas por o termos deixado ir, que julgam, que dizem ‘comigo não ia’. Mas também não queríamos um dia arrepender-nos por o termos impedido de ir.”

Seguiram-se meses de uma angústia em surdina, em que tentavam nem tocar no assunto. “Mas no último dia em que ele cá esteve foi uma choradeira horrível, chorámos todos, até o irmão, que é o insensível da família”, diz Ricardo, e depois olha para o filho, como quem espera uma resposta à provocação. Para Solange, não foi aquele o pior momento, nem sequer quando se despediram dele no Seixal e ela voltou a desmanchar-se. O que mais lhe custou foi mesmo o regresso, chegar a casa e não o ver, sentarem-se à mesa nos lugares de sempre e estar um por preencher.

Já para o jovem craque, a adaptação parece ter sido mais natural. “Ele estava muito entusiasmado, já conhecia muitos dos torneios, dão-se todos bem. Depois ainda teve ali um período mais difícil, porque se magoou e esteve quase um mês parado, mas adaptou-se bem, parece que já lá está para aí há dois anos”, admite o pai, como quem respira fundo.

Formar homens

Há vários fatores que terão o seu peso nisso. Desde logo, o facto de terem um horário hiperpreenchido, que lhes encurta a margem para se darem à tristeza e às saudades. Pouco depois das sete da manhã têm de acordar, às 7.30 horas já estão a tomar o pequeno-almoço, às oito vão para a escola, às 13.30 horas regressam, almoçam, vão para a sala de estudo e às 17 horas já estão a entrar no autocarro para rumar ao treino, que nos sub-13 ainda decorre nos Pupilos do Exército, em Lisboa. Regressam ao Seixal já tarde, quase só para jantar e recolher – às 22.30 horas, as luzes dos quartos têm de estar apagadas. Neste calendário apertado, ainda conseguem encaixar outros afazeres, da dança à motricidade, da canoagem ao bubble football, entre outras atividades de lazer. Tudo sob o olhar atento dos tutores, espécie de segundos pais, ainda mais no caso de miúdos recém-chegados. “Acompanhamo-los ao longo de todo o dia. Conversamos, damos ‘colinho’, controlamos a alimentação, parabenizamos quando é caso disso, castigamos quando é preciso”, explica Sandra Castro, tutora de dois escalões (o de Rodrigo incluído) e responsável pela área social. Os castigos – perdão, os planos de recuperação, como lhes chamam – vão das cópias às multas. Nos casos mais graves, os jovens craques podem mesmo ter de dar uma ajuda na cozinha. A ideia é formar homens, não apenas jogadores. Por isso, é obrigatório fazerem a cama diariamente. Há até um quadro onde diariamente está plasmada a pontuação de cada quarto. “Para os incentivar a ter tudo arrumado.”

Para a família Ribeiro, os dias escrevem-se com saudades e incontáveis videochamadas. Rodrigo Moreira, guarda-redes, foi para o Benfica Campus com 11 anos. E ainda têm outro filho guarda-redes, mas no F. C. Porto

O bem-estar psicológico é outra preocupação. “Se detetamos algum sinal de que algo não está bem, tentamos resolver, em uníssono com a família”, reforça a tutora. Reconhece que, nos primeiros tempos, sobretudo nos mais novinhos, é normal chorarem aqui e ali, mas realça que “regra geral, as experiências são positivas”. E que cada escalão tem um psicólogo que os acompanha, cuja porta está sempre aberta. Depois, há ainda o desempenho escolar, peça-chave na equação. “Todos os dias, têm obrigatoriamente de passar 45 minutos na sala de estudo, onde estão dois professores que cobrem todas as disciplinas. Se as notas estiverem a descer, passam mais tempo. E se tiverem negativas podem não jogar”, esclarece Catarina Santos, responsável pelo departamento escolar, que se orgulha da taxa de sucesso que têm alcançado – 99% dos atletas passam de ano, assegura o clube. Para os que se destacam pelas boas notas, também há prémios. E os atletas que se candidatam ao Ensino Superior são cada vez mais: na época 2021/22, por exemplo, foram 12. Resultados que são fruto da aposta do clube, mas também de “uma mudança de paradigma”. “Hoje os pais exigem cada vez mais que eles cumpram na escola, há essa consciência crescente de que estudar é importante, independentemente do resto.”

Até porque tanto pais como atletas são, desde início, alertados para a miríade de cenários que se colocam em cima da mesa. Rodrigo Magalhães, coordenador técnico da área de iniciação do Benfica, lembra isso mesmo. “Eu não vendo sonhos a ninguém. Isto não é uma fórmula matemática e todos os atletas são sensibilizados para isso. Há muitos miúdos que passaram por aqui que hoje em dia são treinadores, que constituíram família, que têm outras profissões. Essa é a nossa maior missão: prepará-los para a vida.” Os cuidados acima referidos são replicados nas outras academias, garantem-nos os responsáveis do Sporting e do Braga com quem falámos. Da prioridade aos estudos – Nuno Figueiredo, coordenador técnico das academias de formação dos leões, garante mesmo que “a escola é o plano A”, não o plano B – ao acompanhamento psicológico constante, passando pela gestão de expectativas que, asseguram, começa desde o dia zero. Já a adaptação às academias, é, regra geral, bem-sucedida, garante Rodrigo Magalhães, do Benfica. “Há entre dez e 16 atletas novos que chegam todos os anos e, até hoje, só dois ou três elementos é que regressaram à origem.” Um deles foi António Silva, que acabou por voltar ao Seixal mais tarde e hoje é peça-chave no onze da equipa principal das águias.

Para Rodrigo Moreira, voltar a casa nunca foi opção. Pelo menos, nunca ninguém o ouviu falar disso. Já para os pais… bem, a história é outra. “Ele nunca quis voltar, mas nós já pensámos muitas vezes em ir buscá-lo. Ainda hoje tenho momentos em que me pergunto se vale a pena tanto sacrifício, claro que isso nos passa pela cabeça.” Mas depois veem-no tranquilo, feliz, a dizer que que ser o melhor guarda-redes e o coração lá sossega. Para minorar as saudades, fazem questão de o visitar a cada 15 dias. “Mas é muito cansativo, claro. E passa sempre muito rápido. Tentamos ir logo na sexta e passar lá o sábado, mas temos que voltar ao fim do dia, porque o irmão [Fábio, o que também é guarda-redes, mas no F. C. Porto] tem quase sempre jogo ao domingo. E quando ele tem dois dias livres fazemos o esforço de o ir buscar para vir a casa, ver os avós, estar com os amigos, ir aos restaurantes preferidos dele.” Ricardo fala com a naturalidade de quem já se vai conformando com a ausência. “É estranho dizer isto, mas com o tempo quase começa a ser normal o Rodrigo não estar.” Solange não vai tão longe: “Mas pelo menos já conseguimos não chorar quando nos despedimos. Conseguirmos falar no computador, por videochamada, também é uma grande coisa”.

Fazem questão de falar todos os dias, duas vezes por dia, uma após o almoço e outra à noite. Têm até um grupo no WhatsApp para que quando Rodrigo liga e não estão juntos todos possam atender. E nisto vão todos para a frente do computador, há um compasso de espera para que a ligação se estabeleça e lá surge Rodrigo, com o polo do Benfica e o vermelho dos edredons dos quartos do Seixal como cenário de fundo, a sorrir tranquilo. Perguntam-lhe o que comeu, como correu o treino, Ricardo conta-lhe que o irmão ganhou 3-2 ao Benfica, que até um pontapé de bicicleta houve, as trivialidades de que se fazem os dias e que tanta falta fazem. Lucas, o pequeno, não esconde as saudades, tem o hábito de fazer um coração com as mãos para o irmão e ele responde lá do Seixal, ficam ali os dois num uníssono de amor que a distância não pode quebrar. E, já agora, como é isto de ter dois filhos guarda-redes, um no F. C. Porto e outro no Benfica? Ricardo não hesita. “Não há problema nenhum, eu sou portista, mas não me faz confusão nenhuma, só me preocupa que ele seja bem tratado.”

Mudança em peso para Alcochete

Casos há em que a mudança só é ponderada em conjunto. Foi assim para a família Gaspar, também natural do Porto. Gonçalo, hoje defesa-central da equipa de sub-13 do Sporting, começou a jogar futsal no colégio aos quatro anos, mais porque era preciso escolher uma atividade extracurricular do que por já ter uma queda indesmentível para a bola. Mas a relação não tardou a estreitar-se. “Com cinco, seis anos, quando o pai o ia buscar ao colégio, já queria sempre ficar lá a jogar com o pai”, realça Mónica, a mãe. Aos seis, trocou o futsal pelo futebol, o colégio pelo Gondomar. Às tantas foi fazer um estágio à Dragon Force. Não só ficou, como depressa fez um “upgrade” para a equipa do F. C. Porto. E os pais ainda algo confusos com aquela evolução fulgurante. “Nós no início até dizíamos: ‘Não sabemos o que é que eles veem no nosso filho’. Porque ele nunca foi aquele jogador de fintar todos. O que notávamos era que ele levantava muito a cabeça, que muitas vezes com um passe desbloqueava o jogo.” Sérgio, o pai, prossegue. “Nós próprios tivemos de ir tentar perceber o que é futebol hoje em dia. E é cada vez mais um jogo de equipa, muito psicológico. Sendo que o Gonçalo, além de comunicar muito bem, pensa muito bem o jogo. Ainda não recebeu a bola e já está a olhar em volta. Isso é algo raro, na idade dele.”

Mónica e Sérgio, pais de Gonçalo, souberam sempre que, a haver uma mudança, teriam de acompanhar o garoto. Hoje, vivem os três em Alcochete. E Gonçalo brilha nos sub-13 do Sporting

O que talvez explique que com nove anos se tenha tornado no primeiro jogador do escalão dele a ser agenciado, em toda a zona Norte. “Achámos que não tínhamos nada a perder, que podia ser um parceiro para as nossas dúvidas e angústias.” Ou que não tenha tardado a receber uma proposta do Benfica (que recusou). Depois, com 12 anos, o convite repetiu-se, garantem. Mas desta vez houve um outro, proveniente do Sporting. E a preferência pendeu para os leões. “Quando os meus pais me falaram nisso, comecei a chorar”, assume Gonçalo, sem amarras nem vergonhas. “Não queria ir para longe da minha avó, dos meus primos, dos meus amigos, do meu cão. E então disse: ‘Posso ir pensar?’.” No dia seguinte, apareceu com o veredicto: “Vamos avançar. Se vocês acreditam, eu também. Mas não me falem mais nisso”.

Pelo meio, passou um ano na escolinha do ISMAI, academia de formação com o selo leonino, o que lhe permitiu habituar-se à ideia pouco a pouco. E que deu aos pais o conforto necessário para prepararem uma mudança tão radical. “No fundo, ganhámos um ano. Não somos deslumbrados, teve de ser muito bem pensado.” Sérgio, delegado comercial em farmácia, pediu transferência, mas só pôde mudar-se em dezembro. Mónica, delegada de informação médica que por razões pessoais que nada tiveram que ver com o futebol, tinha deixado a empresa em que trabalhava, estava “livre”. E assim partiram numa aventura para Alcochete, primeiro a dois (Sérgio juntava-se todos os fins de semana), depois, a partir de dezembro, a três. “Foi tudo muito planeado e preparado com tempo”, sublinha Sérgio, destacando que tanto o Sporting como a Team of Future (empresa que agencia Gonçalo) tiveram um papel importante para que a mudança fosse serena.

Desde logo porque, lembra Mónica, o clube ajudou a encontrar um colégio que estivesse de acordo com o padrão de exigência que sempre procuraram para o filho. “Isso era um ponto fundamental para nós. E está a correr muito bem. O Gonçalo é o único aluno do quadro de mérito no escalão dele. E não é nada fácil ter as notas que ele tem na St. Peter’s [St. Peter’s International School, em Palmela, o colégio que Gonçalo frequenta].” O pai explica a “fórmula” do sucesso. “O Gonçalo estuda muito, é muito aplicado, se tem um teste acorda às seis da manhã para rever a matéria, mesmo ao fim de semana aproveita o tempo para estudar.” Porquê? O miúdo prodígio tem sempre resposta na língua. “Porque eu digo sempre que vou conseguir [ser futebolista profissional] e acho mesmo que vou. Mas sei que os estudos continuam a ser importantes.” Os pais acenam afirmativamente, sorriem embevecidos, e lembram outro ponto que lhes parece fundamental. “A formação no Sporting não é para ganhar troféus, é para formar jogadores e seres humanos. E isso também é importante para nós.”

Nuno Figueiredo, coordenador técnico das academias de formação Sporting, também realça este ponto. “Aqui apostamos num modelo centrado no jogador, que passa por olharmos para o atleta e o desenvolver nas suas várias dimensões. É um trabalho multidisciplinar, que envolve reuniões constantes e várias equipas, desde o acompanhamento pedagógico aos psicólogos desportivos, da performance à nutrição, e que pretende que, ao fim de quatro, cinco anos de academia, o jogador esteja mais preparado para integrar a equipa principal.” Releva ainda que o modelo foi recentemente distinguido pela European Club Association, com o prémio de Youth Development Programme.

É mais um exemplo de como os departamentos de formação dos maiores clubes portugueses se têm transcendido na procura de estratégias que lhes permitam potencializar os melhores, cada vez mais cedo. Os próprios sistemas de prospeção de jovens jogadores estão hoje cada vez mais oleados, detetam talentos cada vez mais precoces, fazem questão de os acompanhar proximamente para lhes exponenciar o potencial desportivo e inculcar a identidade do respetivo emblema. Ao que a “Notícias Magazine” apurou, a rivalidade entre os clubes na caça ao talento é hoje de tal ordem que há já emblemas a abrir os cordões à bolsa, a oferecer incentivos financeiros aos pais, a arranjar-lhes trabalhos, quando há necessidade disso. E, sim, também há riscos à mistura, não há como negar. Jorge Silvério, especialista em psicologia do desporto, alerta para isso mesmo. “Claro que este desenraizar da escola, da família, dos amigos é um grande contra. Apesar de do lado de lá estarem coisas positivas, nem todas as crianças se conseguem adaptar, embora seja justo dizer que cada vez mais os clubes ajudam e tentam acompanhar.”

André Giesta, psicólogo do futebol de formação do Braga há mais de dez anos, sublinha isso mesmo, frisando que o apoio aos mais jovens se intensificou nos últimos anos. “Numa fase inicial, focávamos o nosso apoio constante nos mais velhos. Mas depois começámos a sentir essa lacuna com os miúdos. É difícil abordar uma criança quando somos um corpo estranho. E então, nos últimos anos, demos esse grande salto.” Ou seja, a partir dos sub-13, os psicólogos estão diariamente nos treinos, “há um acompanhamento próximo, em termos desportivos, escolares, sociais”. Até porque são várias as questões que os podem afetar, sobretudo quando há tantas expectativas envolvidas. Neste contexto, Jorge Silvério chama também a atenção para a questão das dispensas. “Nesses casos, os sacrifícios que foram feitos acabam por não ter a recompensa esperada. Isso leva a alguma frustração e até a alguma depressão. É extremamente importante que, além do acompanhamento dos clubes, haja referenciamento para profissionais de psicologia.” Até por causa do “número baixíssimo de atletas que conseguem chegar ao futebol profissional”. Entre 1% e 3% estima-se. “Convém que quando se toma uma decisão destas se tenha acesso a estes dados todos, porque de facto o funil é muito apertado.” Já para não falar nos pais que veem nos filhos “porquinhos-mealheiros”. “Felizmente, são uma minoria.”