Estes professores não largam a luta

Anabela Magalhães está em greve desde 9 de dezembro, sem parar. Carla Gomes e José Santana mobilizaram uma escola inteira, em que os docentes se revezam na paralisação e até alugam autocarros para manifestações. Filomena Novais está perto da reforma, mas está ativa nos protestos por convicção. Daniel Nunes é contratado e nem por isso abdica do direito de contestar. Estão mais unidos do que nunca e prometem não desistir.

O GPS indica Amarante. São dez da manhã e Anabela Magalhães está em frente à Escola Básica Teixeira de Pascoaes. No casaco preto traz um sem-fim de pins com frases de ordem. E no gradeamento há uma faixa esticada com um pedido óbvio: “Investir na Educação, Valorizar os Professores”. A professora de História do 3.º Ciclo está em greve desde 9 de dezembro. Sim, desde 9 de dezembro. “Tenho 61 anos e nunca pensei na minha vida fazer isto.”

E isto de que Anabela fala é uma greve por tempo indeterminado marcada pelo sindicato S.TO.P. – em que está sindicalizada, e que vai manter-se pelo menos até 16 de abril -, que começou com os professores e mais tarde se estendeu aos restantes profissionais das escolas, desde psicólogos a assistentes operacionais. É ir a todas, mesmo todas as manifestações – e têm sido muitas. É dar um murro na mesa, um grito de desespero. Anabela sempre quis ser professora, é vocação. Nunca concorreu ao país todo, tinha uma filha bebé quando começou a carreira, concorreu sempre para ficar suficientemente perto de casa. E tinha já perto de 50 anos quando vinculou ao agrupamento de escolas onde está hoje. “Só tive uma escola a que chamasse minha quase aos 50. Até aí, andei a saltar de escola em escola, todos os anos.”

A luta que está a travar não é de agora. Já no tempo da ministra Maria de Lurdes Rodrigues se havia envolvido em grandes manifestações que contestavam o polémico modelo de avaliação docente, que depois foi sendo simplificado. “Mas que ainda é injusto. É mais ou menos o mesmo que, numa sala de aulas, dizermos aos alunos que se podem esforçar muito, mas que só podemos dar nota 5 a um deles, independentemente de haver mais alunos a merecer 5.” Em 2018, foi ainda uma das proponentes da Iniciativa Legislativa de Cidadãos que visava a contagem de todo o tempo de serviço dos professores, chumbada no Parlamento. Andou de luta em luta, porque a profissão, lamenta, “foi sendo sucessivamente atacada, precarizada, proletarizada”. O copo encheu e transbordou. E a 9 de dezembro entrou em greve. Dias seguidos na angústia de uma batalha que sabe ser justa.

Começou por fazer greve à componente letiva, ou seja, às aulas. Longas horas a segurar cartazes à porta da escola, à vista dos pais dos alunos que muito apoio lhe deram. A ela, foram-se juntando outros professores e pessoal não docente, chegaram a conseguir fechar a escola dois dias. E assim Anabela se manteve até janeiro, até ao dia em que ouviu o ministro da Educação, João Costa, dizer que os professores estavam a interpretar mal a questão da municipalização do recrutamento de professores. A já aprovada (contra a vontade dos sindicatos) criação de Conselhos de Quadro de Zona Pedagógica, compostos por diretores escolares, para gerir necessidades temporárias. “São conselhos que vão ser escolhidos vamos ver como pelas autarquias, em vez de ser um processo democrático dentro da escola. Aí, fiquei tão furiosa. Achei aquilo um insulto e entrei em greve ao tempo todo.” Que inclui a componente não letiva, nomeadamente tutorias, aulas de apoio, reuniões. “Não lancei notas aos meus alunos, não fiz reuniões, nada.” E só quando foram decretados os serviços mínimos, a 1 de fevereiro, a professora voltou à sala de aula. “Neste momento, estou em greve à componente não letiva.” Ainda assim, na última paralisação da Função Pública, fez greve o dia todo, incluindo aos serviços mínimos, numa espécie de cavalo de batalha.

Aos 65 anos e já no escalão máximo, Filomena Novais, professora de Inglês em Braga, tem sido ativa na luta, mesmo estando prestes a reformar-se. Fá-lo por convicção. Adere às greves, vai a manifestações pelo país, e critica a precariedade dos docentes mais jovens
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Entre vigílias em Amarante, manifestações no Porto, em Lisboa, a professora tem corrido o país e não pára. “A esmagadora maioria dos meus colegas não consegue fazer uma luta destas, greve tantos dias seguidos, porque está a contar os tostões ao final do mês. Eu consigo, porque tenho suporte financeiro para isso.” Diz, por graça, que tem um fundo de greve chamado “marido”. Não tem os números de cabeça, mas recorda-se que num dos últimos meses chegou a levar para casa 400 euros de salário (está no 7.º escalão – já não há de chegar ao último, o 10.º, antes da reforma -, o ordenado anda à volta dos 1500 euros). Faz apenas um pedido, na verdade: “Respeito”. “E isso não está a acontecer. Basta ver a minha situação. Em 2008, estava a ganhar menos 99 euros do que ganho em 2023. E há colegas em pior situação. Isto é inacreditável.”

Uma escola inteira na rua em protestos

“Quem não luta pelo que quer, aceita o que vier.” É um dos lemas da luta dos professores, que despertaram e se uniram como nunca neste ano letivo. A opinião pública está com eles, as últimas sondagens mostram que a maioria dos portugueses está a favor da greve dos professores. E eles prometem não parar. À greve contínua do S.TO.P. juntam-se as greves da plataforma de nove organizações sindicais agendadas para dias específicos. E a rua, tantas vezes a rua coberta de cartazes e de marchas aos fins de semana.

As lutas são muitas. É a contagem integral do tempo de serviço “roubado”, graças aos períodos de congelamento na carreira. São as vagas e quotas de acesso a escalões, que deixam injustamente muitos para trás na progressão e na tabela salarial. É a precariedade e a promessa do Ministério de vincular mais de dez mil professores contratados em setembro “com o senão de ficarem obrigados a concorrer a todo o país, numa espécie de Coreia do Norte, como se não tivessem família, filhos e não pudessem escolher ir ou não para longe”, e que vai levar, garante Anabela Magalhães, muitos a desistir da profissão. É o facto de professores já vinculados, que estão nos quadros de uma escola como ela, passarem a poder ser chamados a dar aulas também noutra escola da mesma zona pedagógica (incluindo noutros concelhos, a largos quilómetros, numa espécie de professor Uber) para “tapar buracos” e até lecionar disciplinas que não as suas. São turmas gigantes e uma carga burocrática que não acaba.

À semelhança de Anabela, milhares de professores pelo país estão agarrados aos protestos como última réstia de esperança, alguns a resistir à pressão e ao assédio das direções das escolas. Rumemos a Leça do Balio, em Matosinhos, na Escola Básica e Secundária do Padrão da Légua, uma das mais ativas na luta. É quarta-feira, são sete e meia da manhã e há dezenas de docentes junto ao portão em cânticos de protesto. Estão ali sempre às quartas e sextas, antes do arranque das aulas. Desde dezembro que assim é, chegaram a fazê-lo todos os dias, até debaixo de chuva. Uma faixa amarela gigante e cartazes sempre renovados pelas mãos dos professores de Educação Visual. O sumário é simples: “Em defesa da escola pública”. Há outros mandamentos: “Governo que usa a lei do chicote leva dos professores um passaporte” ou “Professores a lutar também estão a ensinar”.

Todas as quartas e sextas, às sete e meia da manhã, os professores da escola do Padrão da Légua, em Leça do Balio, Matosinhos, estão em protesto junto ao portão. Carla Gomes e José Santana fazem parte da comissão de greve do agrupamento e têm mobilizado dezenas de docentes
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Carla Gomes, professora de Matemática de 55 anos, anda frenética, acabou de chegar de Bruxelas – uma comitiva de 140 docentes foi, no início da semana, expor as reivindicações aos eurodeputados. Trinta anos de serviço, está no 6.º escalão, devia estar prestes a entrar no 9.º. “Quando surgiu a greve do S.TO.P., um pequeno grupo de professores decidiu aderir e, ao mesmo tempo, estar em protesto no portão da escola.” O grupo foi ficando maior e maior e maior, numa espécie de contágio. No WhatsApp, já são 240 elementos. E, em janeiro, o pessoal não docente também se juntou em força.

Mas vamos à logística. Para não penalizar muito uma carteira já esganada, foram-se revezando, numa gestão cuidadosa. Combinavam que cada professor fazia greve a um ou dois tempos por semana, e iam girando, também para não prejudicar sempre as mesmas turmas. Todas as semanas, uma reunião online para discutir ações de luta. As manifestações entraram na agenda “e sentiu-se um crescendo na adesão”. Chegam a alugar autocarros para irem a Lisboa, a fazer concentrações em frente à Câmara de Matosinhos, a participar em marchas no Porto. “O nosso agrupamento esteve em todo o lado com bastante peso. Somos muito unidos e tornámo-nos conhecidos nesta luta”, diz Carla Gomes, que ficou à frente da comissão de greve do agrupamento. “Não estamos a seguir um sindicato, criámos o nosso próprio ritmo. Tanto participamos em ações da Fenprof, como em reuniões do S.TO.P.” Aliás, conseguiram fechar as seis escolas do agrupamento na greve por distritos, em março, convocada pela Fenprof.

Carla olha para os últimos quatro meses. Faz as contas por alto, aponta para uma média de dois dias inteiros de greve por mês, descontados do vencimento. “No meu escalão, um dia são 85 euros. O meu raciocínio foi não gastar o subsídio de Natal para agora ter alguma folga e tentar aguentar-me.” Das “migalhas” que a classe tem recebido do Ministério, responde em três tempos: “O ministro caiu no erro de tentar dividir a classe, mas o que fez foi incendiar os protestos e vamos continuar na luta. Nunca nos senti tão unidos, não me lembro de um momento como este”.

José Santana, professor de Geografia na mesma escola, está ao lado de Carla a cantar letras que ele próprio escreveu. Dá aulas há 25 anos, 17 desses como contratado. “Como professor de Geografia, digamos que já percorri várias geografias do nosso país”, brinca. Do continente às ilhas – passou pela Madeira e pelos Açores nos inícios. “Moro no Porto, finalmente consegui aproximar-me à minha área de residência”, comenta. É casado com uma professora, a instabilidade é morada permanente. Houve tempos em que tiveram de pagar a renda de duas casas, ele a dar aulas no Barreiro, ela em Penafiel. A motivação para a luta é evidente e, como dizia Mário Soares, está em causa o direito à indignação. “Foi-se acumulando a frustração e um sentimento de revolta profunda. Isto é o culminar de anos em que os professores foram maltratados.” José sempre soube que os protestos não seriam um sprint, antes uma “longa maratona, que está para durar”. O impacto financeiro de fazer greve é grande. “Além das idas às manifestações, já fomos cinco vezes a Lisboa e isso tem peso. Há que ir gerindo as munições, até porque temos contas para pagar no final do mês.”

Sintetiza as negociações turbulentas numa metáfora: “É como se os professores precisassem de um automóvel e o Ministério estivesse a impingir-nos a todo o custo uma bicicleta, ainda por cima sem pedais.” Desistir? “Não, esta luta é justa e vem-nos do coração. A escola pública não pode ser vista permanentemente como uma despesa, é um investimento fundamental para a qualificação dos jovens, para o elevador social funcionar. Desistir agora seria morrer na praia.”

Aos 65 anos, uma luta por convicção

Curiosamente, dos professores de quadro na escola do Padrão da Légua, José, com 46 anos, é dos mais novos, o que espelha bem o grande envelhecimento da classe, que há muito se previa. E se subirmos no país até Braga, às portas da Escola Básica de Gualtar está Filomena Novais, de cabelos curtos e brancos, agarrada a cartazes. É professora de Inglês do 2.º Ciclo. Aos 65 anos, não só está na luta, como tem sido um motor para outros docentes da escola se juntarem a ela. “Os colegas mais novos estão a ser torturados, andar 20 anos com contrato, sem se estabelecerem em lado nenhum, sem poderem criar família, quando eu nessa altura já tinha escalado uns três ou quatro escalões, não está certo. Há colegas a viver em garagens e não é preciso ir para o Algarve para encontrar isso. Como é que podemos ser respeitados? Isto é um grito desertor.” Conta 40 anos de serviço, está no 10.º escalão, e mesmo assim não abdica da greve. “Não preciso de fazer esta ginástica toda. Mais um ano e reformo-me, mas faço-o por convicção.”

Tem anotado num Excel todos os dias em que fez greve, começados em novembro. Ora faz um dia inteiro, ora faz ao primeiro tempo, ora a dois tempos, na organização minuciosa de quem mantém a responsabilidade de cumprir o programa letivo. Manifestações? Vai a todas. Reuniões sindicais? Também está lá. Seja onde for. Às vezes, até arrasta o marido, que nada tem a ver com a área da Educação. É sindicalizada, no SPN, e, mais recentemente, também no S.TO.P., onde sentiu a genica e a vontade de mudança.

Mas esta luta também é por ela. Se recuar umas décadas, começou a lecionar em 1983, vinculou cinco anos depois, sinais de outros tempos, numa escola da Póvoa de Lanhoso. Em 2016/17, pediu mobilidade por doença para Braga, a cinco minutos de casa. Tem uma doença crónica, síndrome de Sjögren (e muito sofreu pelo caminho). “Só devia ter 14 horas letivas e estou a dar 15. Além disso, como sou mais velha, tenho redução de serviço e fico com tempos livres, então ainda tenho que dar aulas de substituição quando não há professores.”

O descontentamento é transversal, “isto é pelo que está certo”. Está em vários grupos de WhatsApp, do agrupamento, de comissões de greve do distrito, envolve-se em tudo. Custa-lhe olhar para os mais novos numa situação precária. “Fui várias vezes sozinha às manifestações aos sábados. E compreendo. Os mais jovens têm filhos pequenos, mais turmas, testes para corrigir. E têm medo, porque estão em avaliação e querem subir de escalão.” Ainda há dias, numa visita do secretário de Estado da Educação a Braga, Filomena juntou algumas colegas e andou de carro a buzinar pela Avenida da Liberdade. Na sexta-feira, esteve numa vigília. “Temos que nos manter ativos, não deixar cair no esquecimento.” Só guarda uma esperança para si, que sabe ser improvável, a de que quando se reformar tenha todos os anos de serviço contabilizados – “perdi seis anos, seis meses e 23 dias”.

A batalha de um docente contratado

A esperança de Daniel Nunes é outra, a de ainda poder vir a ter uma carreira digna. Aos 33 anos, não tem aderido à greve do S.TO.P., mas cumpriu todas as da plataforma sindical e da Função Pública – foram cinco desde novembro. Está junto à escola Luísa Todi, em Setúbal. Um pano branco ao fundo onde se lê: “Até 2028 só neste agrupamento seremos menos 36 docentes! Quem os vai substituir? Como vai ser o futuro do seu filho?” É professor de História, dos 5.º ao 7.º anos, “embora não tenha habilitações para 5.º e 6.º, mas como há falta de docentes…”. Noutros anos letivos, chegou a lecionar TIC, Geografia, Cidadania. A explicação é instantânea. “Os professores mais novos e contratados apanham as sobras de horários. Se o meu horário de História, que devia ser de 22 horas, só tem 18 horas, e falta um professor de TIC, completam-me o horário com essas disciplinas.” No ano passado, tinha 280 alunos, 12 turmas e estava a dar seis disciplinas. O cenário é revelador.

A história até aqui é um clássico da profissão. Chegou a dar aulas nos Açores, na ilha mais afastada do continente, a das Flores. Depois, esteve em Lisboa a fazer substituições na incerteza de contratos renovados a cada mês e este ano foi colocado em Setúbal, a primeira vez com um horário completo e anual, “mas sempre a mais de 200 quilómetros de casa”. Daniel é de Montemor-o-Velho, Coimbra, concorre a todo o país, todos os anos à procura de casa, a conhecer uma nova escola. “O meu objetivo é efetivar numa escola. Se quiser que seja perto de casa, e digo num raio de 60 quilómetros, hei de demorar uns 16 anos. Portanto, isso não é hipótese. O meu plano é efetivar na zona de Lisboa e depois tentar aproximar-me.” Não é casado nem tem filhos, porque “com esta instabilidade é impossível”.

Daniel Nunes, 33 anos, é professor contratado. Já deu aulas na ilha das Flores, em Lisboa e está agora na escola Luísa Todi, em Setúbal. Este é o primeiro ano letivo em que conseguiu um horário completo. Mesmo assim, não se acanha na luta. Cumpriu todas as greves da plataforma sindical e da Função Pública – foram cinco desde setembro. Porque “já não se aguenta mais este estado de coisas”
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Nos últimos anos, tem participado em centenas de lutas da Fenprof, a que está filiado. Neste, mais ainda. Manifestações, vigílias, greves. “Se a greve for de um dia, perco um dia de salário, o que é significativo, principalmente para contratados que já têm custos enormes por estarem deslocados. Mas é um sacrifício pessoal.” Nos custos de um deslocado, além de um quarto onde deixa cerca de 300 euros (partilha casa com professores), soma-lhe quase 200 euros por mês para ir a Coimbra todos os fins de semana, o que nos últimos tempos tem sido regra “devido a um problema de saúde de um familiar”. “E os professores deslocados não têm qualquer apoio, qualquer subsídio”, lembra.

Mesmo assim, a greve vale a pena? “Claro. Há um grande sentimento de injustiça. Isto está a ultrapassar os contratados. Com as propostas violentíssimas do Governo, a revolta gigante já engloba todos. Os professores decidiram sair à rua porque já não se aguenta mais este estado de coisas.” Daniel não vai parar, é uma promessa, “está-se a defender a escola pública, o país do futuro”. E finca o pé em todas as lutas. “Um problema que não é meu agora pode vir a ser meu no futuro, a questão dos escalões, as quotas para progressão na carreira, tudo isso me vai afetar.” Por isso, a luta há de continuar. A de Daniel, de Anabela, de Carla, de José ou de Filomena. De todos os que têm sacrificado tanto em nome da classe. E o fim ainda não está à vista.