Margarida Rebelo Pinto

Duas divas, uma amizade para a vida


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Já que a estação estival pede histórias bonitas, aqui vai uma. Vinicius de Moraes dizia que os amigos não se fazem, reconhecem-se.

O que tinham em comum Marilyn Monroe e Ella Fitzgerald? Ella nasceu no estado de Virgínia e foi registada como mulata. Durante a sua infância mudou várias vezes de cidade e perdeu a mãe aos 15 anos num acidente de viação. Começou a cantar aos nove anos na Igreja Metodista que a família frequentava. Depois da morte da mãe, é possível que tenha sofrido de abusos do padrasto e foi viver com uma tia para o Harlem, em Nova Iorque. Marilyn era filha de uma mulher que sofria de esquizofrenia. A partir dos seis anos começou a viver em orfanatos e em famílias de acolhimento onde, pelo menos em duas delas, a questão do abuso também esteve na ordem do dia. Os caminhos das duas lendárias estrelas cruzaram-se quando Marilyn começou a ouvir Ella por recomendação do pianista Hat Schaefer que lhe ofereceu uma coleção de discos para ela escutar repetidamente até aprender a técnica vocal para o seu papel em “Os homens preferem as loiras”. E a loira com cara de boneca e formas esculturais encantou-se com o talento de Ella e foi sua fã antes de se tornarem amigas. Pessoas com talento admiram, sobretudo e acima de tudo, o talento de outras pessoas. O talento brilha acima do dinheiro e do poder. Pode ser ofuscado pela fama, mas continua a ser um dos mais belos atributos da raça humana. O talento é como o amor: não se compra, não se fabrica nem se inventa. Pode ser cultivado, aperfeiçoado, mas ou está lá, ou não está. E Marilyn desde cedo brilhou como atriz de comédia, com uma aptidão especial para papéis de loura burra. Como disse Arthur Miller, com que foi casada entre 1956 e 1961: “Marilyn não só sabe fazer o papel da loira ingénua e burra, como se diverte a fazê-lo”. Arthur foi o seu terceiro e último marido.

Foi graças a Marilyn que Ella fez uma temporada no famoso Clube de Jazz Mocambo, em Los Angeles, um dos mais populares na década de 1950. A atriz telefonou ao dono Charlie Morrison e praticamente ordenou-lhe que contratasse Ella. Depois das atuações no Mocambo, Ella nunca mais tocou em clubes pequenos. Por entre as lendas populares de Hollywood, conta-se que Marylin assistiu aos espetáculos no Mocambo, mas não corresponde à realidade. Em março de 1955, a atriz vivia em Nova Iorque e foi vista a dançar com o escritor Truman Capote na véspera da estreia de Ella. No entanto, é verdade que Judy Garland e Frank Sinatra assistiram e aplaudiram. Mas a amizade já existia entre as duas e Marilyn continuou a dar provas. Quando viajou para o Colorado, para ouvir a sua amiga cantar, apercebeu-se que a diva do jazz não podia entrar pela porta principal. Marilyn recusou-se a passar a porta até ter Ella do seu lado e ambas fizeram uma entrada triunfal.

“Tinha um coração de ouro. Sempre acreditou em mim e ajudou-me a quebrar barreiras numa indústria nem sempre justa. Era uma pessoa fora do comum, à frente do seu tempo, sem ter consciência disso”, disse a rainha do jazz acerca da sua amiga. A amizade une pessoas que, à partida, parecem ser não só diferentes, por vezes até opostas. Contudo, existe um eterno e indestrutível que as mantém ligadas. São os laços fortes e puros, à prova de todas as balas da vida, que no seguram nos momentos mais difíceis.

Do aplauso nasce o amor e a amizade é talvez a forma mais nobre e pura de amor, porque perdura no tempo, não faz cobranças nem tem prazo de validade.