Da Inteligência Artificial ao Metaverso: o futuro da moda já chegou

Há campanhas hiper-realistas totalmente feitas em Inteligência Artificial, que até já ajuda os designers a criarem coordenados. Semanas da Moda no Metaverso. Marcas que lançam coleções apenas com recurso a ferramentas digitais e que vendem não só peças físicas, mas o NFT do produto em 3D. Há provadores virtuais em lojas online. Têxteis inteligentes que mudam de cor à luz do sol, vestidos com LED que se acendem ao ritmo da dança, leggings que ajudam na recuperação muscular ou tecidos com propriedades anticelulíticas. Sim, está tudo a acontecer no presente e em Portugal.

Estávamos a 2 de março e o Portugal Fashion anunciava mais uma edição, gritava ao Mundo que as ruas do Porto estavam prestes a vestir-se novamente de moda nacional com uma campanha feita de imagens que, de tão realistas, poucos imaginariam terem sido totalmente criadas com Inteligência Artificial (IA). Aquelas pessoas não existem, nem sequer as roupas que vestem. É uma autêntica caixa de Pandora a abrir-se – ou melhor, é uma porta que já está escancarada – para um sem-fim de possibilidades. Foi Pedro Caride, o diretor criativo, à frente da empresa Por Vocação, quem fez a sugestão arrojada ao Portugal Fashion. Depois, pôs-se a improvisar, a escarafunchar as mil e uma hipóteses de um mundo que ele próprio desconhecia. “Ainda tentei contratar duas pessoas francesas, mas ficava muito caro, então comecei eu a explorar e, para minha surpresa, consegui criar imagens hiper-realistas.” A ideia era simples, recriar fotografias de street style que se fazem às portas das Semanas da Moda, de gente a entrar e sair dos desfiles. Usou a plataforma Midjourney e o resto é o futuro a acontecer.

“As coisas já estão num patamar em que me foi relativamente simples conseguir este resultado. Eu dava as coordenadas (uma descrição textual) e, como queria imagens de pessoas de diferentes idades e estilos, tive que encontrar um fio condutor. Então pedi sempre o mesmo tipo de fotografia, com a mesma câmara fotográfica, a mesma lente, a mesma abertura. E em 15 segundos tinha uma imagem”, relata. Foi evoluindo, chegou a pedir o Porto como cenário, “e o programa deu”. Para um diretor criativo, o fascínio é óbvio. “Normalmente, tenho que contratar stylist, fotógrafo, maquilhador, modelo, que a dada altura em Portugal são sempre os mesmos. E de repente tinha ali uma modelo asiática, uma negra, uma loira, o que quisesse. E tanto podia ter uma imagem no Taj Mahal como em Gaia. Isto é um brinquedo para um diretor criativo.” Na verdade, sempre ouviu dizer que os criativos tinham uma profissão segura, afinal a IA nunca seria criativa. Será mesmo? Pedro tirou a prova dos nove e a resposta é não. “O programa até inventa roupa. Deu-me coordenados que nunca tinha visto, chapéus, casacos.”

Pedro Caride, diretor criativo da campanha
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Há uma certeza inevitável, o futuro já está a morder-nos os calcanhares. Além do Portugal Fashion, Pedro Caride é diretor criativo de algumas marcas portuguesas e a bola de neve está a agigantar-se. Uma delas vai provavelmente fazer a campanha de verão 2024 em IA. “Os departamentos de marketing estão entusiasmadíssimos. Estamos a começar a esgravatar.” Só que do outro lado está um buraco negro de receios. Fotógrafos, stylists, maquilhadores, cabeleireiros “estão todos muito preocupados”. Ainda ninguém sabe muito bem que postos de trabalho podem estar em risco e o Mundo corre acelerado. Em fevereiro, a Moncler lançava a primeira campanha em IA, levada a cabo pela Maison Meta, agência de Inteligência Artificial de Nova Iorque. “Já fazem coisas que não consigo fazer. Fazem o upload de coordenados da marca e criam tudo o resto em IA.” Perigoso? “Claro, mas não é possível empurrarmos isto para debaixo do tapete. Fazermos de conta que não está a acontecer. Para já, estou a desfrutar. Claro que isto ainda está no início, é a pré-história da IA, tenho essa nítida sensação. Aliás, quando comecei a trabalhar na campanha do Portugal Fashion, de dia para dia o programa melhorava, para imagens com mais tamanho, para vídeo.”

Portugal na Metaverse Fashion Week

A história pode estar nos princípios, mas está a escrever-se à velocidade da luz. Assombra e deslumbra ao mesmo tempo. E está a deixar toda a indústria em alvoroço. Lui Iarocheski, designer de moda, sabe que a revolução está a chegar. E que vai afetar profissões de várias camadas. Desde logo, a criativa. “Já é possível fornecer inputs à IA e ela gerar ideias. Nós, os designers, que aprendemos a fazer brainstormings, a pesquisar tendências, vamos ter que nos adaptar, porque a IA está a gerar resultados impressionantes e que podem acelerar muito o processo criativo.” Mas será que se vai substituir aos designers e criar coleções? Lui não acredita. “Vamos sempre precisar de alguém a dar o input, que continuará a ser o designer, a guiar, a criar a narrativa, o conceito. A IA ainda terá que ser guiada pela capacidade humana por muito tempo.” E Lui vê vantagens, muitas. Nomeadamente na gestão de dados em relação a unidades fabris disponíveis, à capacidade de mão de obra, à matéria-prima. Além disso, poderá ainda ajudar as marcas a prever os desejos do consumidor, ao rastrear o comportamento online, ao mapear histórico de compras, “o que vai permitir tomar melhores decisões”. E serem mais ágeis a “antecipar tendências e a reagir rápido”.

Desafiámos Lui Iarocheski, designer de moda que trabalha na startup tecnológica PlatformE, a criar coordenados com recurso à Inteligência Artificial para a “Notícias Magazine”
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Lui há muito que está mergulhado neste universo. Foi eleito, em 2017, um dos cinco melhores designers de moda masculina no Brasil por uma revista de moda. Chegou a ter a própria marca até que se deu um ponto de viragem. “Há uma série de problemas na indústria, que é muito suja, muito poluente. Ainda é tudo testado manualmente, com amostras, o que gera muito lixo. E percebi que a tecnologia podia ajudar a moda a ser à prova do futuro.” Aventurou-se no universo 3D e daí veio tudo de arrasto. Criou um novo modelo de negócio: criar as peças digitalmente em 3D, trabalhar com softwares que permitem até testar o comportamento dos tecidos, e só produzir a peça física a partir do momento em que tivesse uma compra. Trabalhava sem stock, sem inventário, “o que também permitia trazer o cliente para o processo criativo, trabalhar com as medidas do cliente, adaptar a estampagem, o comprimento, tudo isso em ambiente digital e só depois produzir a peça física”.

O conceito levou-o aos quatro cantos do Mundo, para ensinar como a tecnologia pode entrar em vários processos de moda, uma trajetória que culminaria em Portugal, onde já está há três anos. Agora, é responsável pela área do marketing na PlatformE, startup tecnológica do Porto que opera na indústria da moda e que ajuda marcas de luxo a digitalizar-se, a revolucionarem o modelo de negócio. Não é só. Há pouco mais de um ano esteve na génese da Valaclava – lá iremos -, a única marca portuguesa presente na Metaverse Fashion Week.

A IA utilizada para criar elementos de inspiração (padrões, formas) para um design em 3D feito por Lui
(Foto: DR)

Olhemos, pois, para o Metaverso, onde já estão marcas nacionais como a Fly London, com uma loja onde se podem comprar skins (roupa, sapatos, acessórios) para o avatar – e sim, há quem gaste dinheiro em skins. Este é um mundo virtual imersivo onde podemos criar o nosso avatar e interagir, assistir a concertos, visitar museus, comprar bens físicos ou digitais. Na verdade, são muitos mundos virtuais, existem várias plataformas a que podemos aceder, desde a Spatial à Decentraland ou OVR. E foi precisamente aqui, nestes três metaversos, que, em finais de março, aconteceu a segunda edição da Metaverse Fashion Week, democrática, aberta a toda a gente, era só fazer login numa das plataformas e assistir. Longe vão os tempos em que as Semanas da Moda eram exclusivas das grandes capitais e de convites especiais. Durante quatro dias, a moda desfilou no mundo digital, com marcas consagradas como Dolce & Gabbana, Tommy Hilfiger, Coach, Adidas e DKNY, mas também com marcas nativas digitais. E muitas atividades à mistura, after parties, palestras, photo booths.

“A roupa está a ganhar possibilidades além do tangível. Se estes ambientes digitais existem, os avatares também precisam de ser vestidos. É uma extensão da moda física”, sublinha Lui. No Metaverso, houve marcas a replicar o desfile de passarela tal e qual no mundo real, mas também houve as que exploraram novas formas de apresentarem coleções. É essa, afinal, a beleza do digital. “Pode-se apresentar uma coleção no fundo do mar ou com modelos a flutuar no céu.” Da mesma forma, se havia marcas com coleções puramente digitais, criadas exclusivamente para vestir os avatares, outras havia que apresentaram peças que também existem fisicamente.

É o caso da Valaclava, marca de vestuário phygital, que é como quem diz que existe não só no mundo físico, mas também no universo digital. Com ADN do Porto, nasceu na PlatformE, e o futuro nas mãos. É de streetwear, todas as peças são unissexo, com forte inspiração no mundo do gaming. Calças cargo, sweats, hoodies. Ainda nem um ano tem e é “pioneira”. Maria Manuel Ribeiro, brand owner, não tem medo de o dizer. Comecemos pelo princípio. A Valaclava contraria o “modelo arcaico que a indústria ainda segue, que é feito de produção de stock e de tentar empurrar esse stock nas lojas”. Aqui, todo o design e modelação é feito em 3D, sem amostras nem resíduos, o que permite saltar muitas etapas do processo de criação tradicional, ser mais rápido, mais sustentável e ter criadores espalhados pelo Mundo – chamam-lhe coletivo anónimo. Depois, é a imagem em 3D que vai para a loja online, o que “dá uma visão hiper-realista da peça”. E só quando há uma encomenda é que a peça é produzida fisicamente, o chamado “made to order”, em fábricas do norte do país. Tecidos nacionais, confeção nacional. “Por isso, pode ser personalizável. Damos opções de diferentes padrões, bordados, um leque vasto, o cliente escolhe, faz a compra e depois começa a jornada física.” A marca quer ser tão exclusiva que até tem um limite de produção por peça.

Mas há mais. O cliente não compra apenas a dimensão física da roupa, compra a dimensão digital, uma extensão. Como? Cada peça tem uma “tag” única, espécie de código QR, que é possível digitalizar com a câmara do telemóvel e que carrega toda a informação digital. É o passaporte do produto, com informação sobre onde foi feito, quem foi o fabricante, qual é o material, como se faz para reciclar e até o NFT da peça em 3D. “Damos a propriedade e o comprador pode fazer o que quiser, personalizar, utilizar digitalmente, vender.”

Hoodies da nova coleção da marca portuguesa, que ainda não está à venda
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

De tão inovadora, bastou um piscar de olhos até que o popular videojogo “Call of Duty” reparasse na Valaclava. Nasceu assim uma parceria, uma coleção só dedicada ao jogo que quis ir além do clássico merchandising e entrar no universo da moda. São quatro modelos criados de raiz, inspirados no ambiente do jogo, e limite de 300 unidades produzidas para cada. A par dessa coleção, também está disponível a Infinity, além de uma nova, que foi apresentada na Metaverse Fashion Week e na London Fashion Week, e que ainda não está à venda. Aliás, foi a London Fashion Week que abriu muitas portas à marca, num desfile inovador este ano. “Foi phygital, acontecia na vida real e no Metaverso em simultâneo. Tínhamos modelos a desfilar em Londres e as suas versões digitais, os seus gémeos digitais, no Metaverso. Foi isso que nos deu a conhecer e nos levou à Metaverse Fashion Week”, comenta Maria. Os clientes da marca, para já, são sobretudo dos Estados Unidos. Mas “há muito terreno a desbravar”, num mundo completamente novo ainda a descobrir-se.

Provador virtual e imagens de IA na loja online

O conceito da Valaclava está já a levar marcas estabelecidas a quererem seguir-lhe as pisadas. O phygital não é só uma tendência, é o futuro. Só que as portas abrem-se em tantas direções, com a IA a sobrevoar o setor. Vejamos a Farfetch. Há muito que o unicórnio português de moda de luxo está a investir nesta área. A começar pelas imagens dos produtos na sua loja online geradas por IA. Sim, é verdade. Não são todas, mas já é uma percentagem crescente. “Há casos em que ainda usamos o processo clássico de as marcas nos enviarem a amostra, de contratarmos modelos, fazermos o photoshooting, retocarmos as fotos e disponibilizarmos no site. Mas uma boa parte das imagens já são geradas por IA. Ou seja, nem precisamos de ter a peça fisicamente, nem de modelos. O que acontece é que somamos a imagem digital da peça a imagens digitais de modelos que não existem ou que até existem mas que nunca sequer vestiram aquela roupa, através da IA”, explica Hélder Dias, responsável pela área de produto e tecnologia. Foram precisos muitos testes, a Farfetch começou a usar esta tecnologia há coisa de dois anos e chegou ao ponto em que já é indistinguível para o consumidor se um modelo efetivamente vestiu a roupa e foi fotografado ou se a imagem é de IA.

Em parceria com o “Call of Duty”, a Valaclava tem uma coleção totalmente inspirada no videojogo
(Foto: Nick Soland)

Outra aposta forte é o Virtual Try-On, o provador virtual que permite experimentar peças sem sair de casa. Batons, sapatilhas, joalharia, relógios. “É simples, estás no site da Farfetch e vês uns sneakers de que gostas, apontas a câmara para os pés e consegues ver através de tecnologia de IA o sneaker no pé. Ou os óculos na cara, o relógio no pulso, como fica o tom do batom na tua pele.” Não é preciso muito para perceber a dimensão de tecnologias como esta, basta ver que em 2021 a Walmart adquiriu por 200 milhões de dólares a Zeekit, plataforma de provadores virtuais que “permite ao consumidor no site de uma loja escolher o tipo de modelo com o qual gostaria de ver a roupa representada, magro, gordo, negro, chinês”, e com quem a Farfetch chegou a ter uma parceria. O valor é demonstrativo. Mas voltemos a pôr os pés em Portugal. O unicórnio português também lançou um “3D viewer” para malas de luxo, “porque tem muita adesão, quanto mais novo e nativo digital é o consumidor, maior a adesão”. E anunciou, no ano passado, que passou a aceitar pagamentos com criptomoedas no seu marketplace, “é inevitável que isto vá fazer parte do futuro”.

O “3D viewer” de malas de luxo
(Foto: DR)

Hélder vê muito potencial em todas estas novas tecnologias, que são “um salto enorme”. Tanto que a Farfetch tem um programa de incubação e aceleração de startups, o Dream Assembly Base Camp, em parceria com a Outlier Ventures, na área da Web3 da moda de luxo. Uma forma de se conectar ainda mais ao mundo das startups, de perceber o que está a ser feito, de investir em algumas delas e assim devolver ao ecossistema, até porque a Farfetch, que hoje vende para 190 países, já foi ela própria uma pequena startup. E os riscos que tudo isto traz? “Claro que os há. Mas se a história nos ensinou alguma coisa, com qualquer revolução tecnológica, é que, sim, alguns empregos vão desaparecer, mas outros novos vão ser gerados. E, apesar de todos os avanços, ainda nada supera para o consumidor a sensação tátil, o sentir o tecido, o pegar, o manipular a peça, ver como ela dobra. A tecnologia ainda não consegue dar essa experiência.”

Têxteis inteligentes, a tecnologia na roupa

E no que toca aos tecidos, o futuro também está a acontecer. As Semanas da Moda são o espelho disso. Em setembro, Bella Hadid desfilou com um vestido que foi pintado com látex diretamente no seu corpo, à frente de todos, momento que viralizou. E já em fevereiro foi em Paris, na apresentação da coleção outono-inverno 2023, que as roupas mudaram de cor em plena passarela. Pelas mãos da marca Anrealage, que revelou uma coleção de peças que começam por ser brancas e lisas, mas, graças a tecidos fotossensíveis, ganham cor e padrões. Depois do desfile, Kunihiko Morinaga, estilista da Anrealage, contou que as roupas podem reagir aos raios solares (ou a lâmpadas UV, como aconteceu no desfile) o que significa que pode sair de casa com um outfit branco e assim que chegar à rua, a roupa ganhar diferentes tonalidades e padrões.

Na verdade, a tecnologia não é nova, segundo Hélder Carvalho, investigador e professor de Engenharia Têxtil na Universidade do Minho, que pormenoriza que “são pigmentos sensíveis à temperatura ou à luz, que já existem há muito tempo, mas tem-se vindo a trabalhar para conseguir mais escalas de cor”. Neste campo da estética, há uns bons anos, ele próprio coordenou um projeto chamado “Lightness”, de um vestido com LED que convertia o som ou os movimentos da dança em cor e luz. “Tivemos duas versões, uma delas reagia ao som, outra reagia a movimentos. Pedimos a uma bailarina para o vestir e, conforme os movimentos dela, o vestido iluminava-se. Em termos estéticos e de espetáculo era bastante interessante. Mas são projetos conceptuais, uma experiência para estudar a forma de integrar a eletrónica em vestuário”, observa. E a aplicabilidade prática? O docente dá o exemplo da empresa londrina CuteCircuit, de tecnologia vestível e moda interativa, que faz várias peças com LED, “por exemplo, uns casacos que os U2 usam em concertos”, com mais de cinco mil LED. “Para lá da vertente artística, não sei qual será a utilidade. Talvez possa vir a ser interessante para ciclistas ou crianças, para sinalização.”

O provador virtual da Farfetch que permite experimentar peças sem sair de casa ¸Hélder Dias, responsável pela área de produto e tecnologia na Farfetch
(Foto: DR)

Hélder Carvalho reconhece que daqui a uns anos possa vir a ser normal ter roupa que muda de cor da manhã para a noite, “se houver recetividade do consumidor”. Mas para já, assinala, os desenvolvimentos nos têxteis inteligentes estão a focar-se em aplicações mais sérias. “Sobretudo na área da sustentabilidade. Ou na saúde e no desporto. Por exemplo, têxteis que permitem a medição de sinais vitais, que podem ser usados para monitorizar atletas ou bombeiros. Roupas que detetam o excesso de humidade, o aumento da temperatura do corpo, a atividade muscular, o ritmo cardíaco, está-se a trabalhar nisso.” Já esteve envolvido num projeto de um fato para nadadores, composto por sensores eletrónicos e têxteis integrados, para analisar parâmetros biomecânicos, fisiológicos e de desempenho. É o mundo dos sensores, da eletrónica, aplicado à roupa, seja através de dispositivos externos acoplados, seja com o próprio têxtil a servir de condutor elétrico e de sensor.

Aliás, o desporto é uma das áreas onde há muita coisa a fervilhar. O projeto Wear2Heal é o exemplo perfeito. Umas leggings amigas da recuperação muscular, que podem proporcionar eletroestimulação, aquecimento localizado, massagem, compressão. Os protótipos estão a ser finalizados, ainda não estão no mercado. O conceito foi desenvolvido em conjunto pelas empresas Tintex e Hata, os centros tecnológicos CeNTI e CITEVE e a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. “A ideia era criar um produto que pudesse ser utilizado tanto pelo atleta como pelo cidadão comum, no aquecimento ou no fim do exercício físico”, revela Pedro Magalhães, responsável pelo departamento de inovação da Tintex. As leggings têm um cinto, que tem incorporada a bateria, que é fonte de energia, e “as diferentes funcionalidades estão em revestimentos, em tintas condutoras”. Há uma app para ativar cada uma das funções, desde a compressão à massagem. “Tentámos diminuir ao máximo elementos estranhos ao têxtil.”

Hélder Dias, responsável pela área de produto e tecnologia na Farfetch
(Foto: DR)

Nos últimos tempos, a Tintex, muito associada à sustentabilidade, tem vindo a investir em têxteis inteligentes e soluções inovadoras, o que é revelador. Principalmente em tecidos virados para a área da saúde. “Muitas das características destas leggings também podem ser usadas de forma terapêutica, para lá do lazer.” A empresa também tem estado a trabalhar na área militar, em fardas resistentes a agentes químicos, biológicos e radiológicos. “Há muito caminho nesta área. E cada vez mais aquilo que é um nicho vai deixar de o ser. Basta ver que as pessoas já têm atenção, quando compram uma peça, a características como a secagem rápida, o controlo da humidade. E imagino, no futuro, podermos controlar o nosso telemóvel na nossa t-shirt. A Google já está a estudar algumas coisas. Passar a tecnologia para algo que está junto ao nosso corpo.”

Os tecidos que já não servem apenas para vestir e têm outras propriedades, outras aplicações são tema já abordado em aulas. Segundo Maria Azevedo, professora na Escola de Moda do Porto, “os alunos ainda chegam com uma ideia de que a moda é só estética, e não é”. Na sala de aula, entram temas que vão desde acabamentos que ajudam na psoríase até têxteis sustentáveis. Ainda há dias, lembra a docente, era noticiado que a portuguesa Inovafil, em conjunto com um consórcio de mais 11 empresas internacionais, está a dar forma ao projeto “New Cotton”, que reutiliza resíduos têxteis e os transforma numa fibra reciclada feita à base de celulose (de alta performance e biodegradável). Desde outubro que essas fibras já chegam ao consumidor por via da Adidas, nuns fatos de treino. Segue-se, agora, a produção de peças para a H&M. “As soluções que hoje existem não são meramente estéticas, e é importante sensibilizar os alunos que tem que se olhar para o design e para a moda como um todo.”

As leggings amigas da recuperação muscular do projeto Wear2Heal
(Foto: DR)

Um todo onde há muito a acontecer, todos os dias. A empresa Fitexar está a desenvolver, com um consórcio de investigação, têxteis com óleos essenciais, que têm várias propriedades, antimicrobianas, antiodores ou anticelulíticas, que é o grande foco. “Pegamos nos óleos encapsulados, introduzimos no fio, são impregnados na própria fibra, o que permite a libertação destes princípios ativos de forma controlada durante toda a vida útil do têxtil”, explica António Falcão, CEO da Fitexar, que diz que se trata de fibras naturais e que é possível aplicar a solução (chama-se Neo4Future) em peças justas, desde leggings para desporto até à roupa interior ou em meias de compressão. “Não há dúvida que a roupa tem cada vez mais duplas funções. E os têxteis técnicos têm mostrado que são eficazes.”

Do universo digital, que se desdobra entre a Inteligência Artificial e o Metaverso, ao plano físico, com tecidos cada vez mais inteligentes, o futuro da moda tem muitas formas e feitios. E caminha com urgência. Há um facto indesmentível: a indústria está a viver uma revolução.