Margarida Rebelo Pinto

Corações que batem para sempre


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Quando o meu pai partiu, os relógios deixaram de tocar. O meu pai adorava precisão, beleza e engenhos com muitas peças, por isso tinha uma coleção de relógios que foi crescendo com os anos. Imbuída do mesmo gosto por peças de coleção, comprei um num leilão, uma mimosa peça Art Déco que anunciava cada quarto de hora com uma badalada diferente. Nunca consegui acertar o passo às horas e às suas parcelas com o tempo real. Com o meu pai isso seria uma impossibilidade, pois ele via a beleza das coisas na sua utilidade, como se a mera função ornamental fosse uma futilidade, um desvio daquilo que é verdadeiramente importante. Em casa dos meus pais, não existiam máquinas ou engenhos avariados. As exceções encontravam-se na oficina do meu pai, à espera de reparação.

Acredito que o meu pai queria consertar tudo porque demorou a vida inteira a reparar o seu próprio coração. Era uma alma sensível, filho de um homem distante e depressivo e de uma senhora má. Sei que pode parecer politicamente incorreto dizer isto, mas infelizmente nem todas as pessoas nascem boas, ou escolhem o caminho da bondade ao longo da sua existência. A minha avó paterna encontrava maior realização pessoal na intriga e na discriminação entre filhos e netos do que em práticas de boa cristã, apesar de não faltar uma missa dominical. Tinha um belíssimo oratório, com um genuflexório com a trave forrada a veludo escarlate no qual se ajoelhava com frequência. Talvez usasse um véu preto de renda e segurasse um terço de madrepérola. Admito que tais pormenores possam ser fruto da minha imaginação de escritora, mas a maldade não vem da minha imaginação, embora não fosse imediatamente percetível, como é aliás comum no ser humano. Um cão mau vê-se logo que é mau, uma pessoa nem sempre. A verdade é que o meu pai, talvez o melhor homem que conheci, teve uma mãe má e toda a gente sabe que uma mãe má não faz bem a criança nenhuma. O amor encontrou-o cedo, nos braços da minha mãe, quando deu um trambolhão na praia de São Martinho do Porto a jogar ao Mata, um jogo com um ringue de borracha muito em voga nos anos 1950 que consistia em atingir elementos da equipa adversária com o projétil. Com um pé torcido, foi coxear para a farmácia da vila. A minha mãe foi atrás dele e nunca mais o largou.

Seis anos depois casaram, tiveram três filhos, sete netos e vários relógios. Quando adoeceu, continuou a fazer reparações na oficina. Mesmo nos anos em que viveu na cadeira de rodas e o distúrbio já lhe traía os movimentos precisos, nunca desistia de consertar alguma coisa. A sua doença não tinha conserto, foi tomando conta dos músculos e nervos, sem nunca lhe atrofiar a lucidez. Impedido de ir para a casa de campo, ali os relógios silenciaram-se, mas ninguém se apercebeu. Só depois da sua morte, a mudez das máquinas se abateu sobre nós.

Três anos depois, o meu irmão, tão parecido com ele nos modos e na grandeza de coração, voltou a dar vida útil às máquinas. Num almoço recente em família perguntou-me com os olhos a brilhar:

– Mana, não ouves nada de diferente? O relógio da casa de jantar, uma máquina complexa com dois mostradores, ressuscitara. E foi como se, ao fim de três anos de luto, o coração do meu pai voltasse a bater.

A vida ensinou-me que um grande amor demora três anos a esquecer, mas também me ensinou que o amor de pai nunca se esquece.