Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço. Viagem ao princípio de tudo

No ano em que se assinala o centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, a “Notícias Magazine” foi no encalço das raízes do filósofo, percorrendo a Beira Interior em toda a sua extensão.

Muitos anos antes das glórias e do prestígio que a vida lhe trouxe, das jornadas literárias por diferentes países e até continentes, houve uma pequena aldeia onde tudo começou. Em S. Pedro do Rio Seco, Eduardo Lourenço (23 de maio de 1923 – 1 de dezembro de 2020) viveu “um tempo sem tempo, alegoria de uma eternidade onde tudo quanto importava já tinha acontecido”, como o próprio escreveu bastantes anos mais tarde.

Até aos nove anos, a infância de todas as infâncias, Eduardo era apenas mais um dos sete filhos de Abílio de Faria e Maria de Jesus Lourenço. Como todos os outros, embora os mais atentos já lhe notassem uma certa inclinação para essas coisas do espírito, brincou até ao pôr do sol nas então bem povoadas ruas de uma das mais remotas freguesia do concelho de Almeida.

Praça central da Guarda, a cidade onde viveu e estudou durante quase uma década

Mais de 90 anos passaram sobre a época em que os pais, acompanhados pela numerosa prole, partiram em busca de melhores condições de vida rumo à capital de distrito, a Guarda, situada a pouco mais de 50 quilómetros.

Regressar hoje ao pequeno povoado que representou o primeiro mundo do futuro excelso pensador é, mais do que um exercício nostálgico, um esforço de imaginação. As 900 almas que então habitavam aquele lugar estão agora reduzidas a 154. E, se as artérias poeirentas de então deram lugar a pavimentos asfaltados com esmero, ladeados por hortas bem cuidadas, o silêncio que agora domina sobre tudo o resto – apenas entrecortado pelo canto dos pássaros – não deixa de conter um lado perturbador, quase opressivo até.

Uma placa assinala a casa onde Eduardo Lourenço viveu até aos nove anos

“Crianças não há mais de duas ou três”, atira, em forma de lamento, Maria Teresa, mulher de formas e espírito maciços, cujas recordações de outras eras ainda estão demasiado presentes para que possa sequer pensar em esquecê-las. Sem se deter, fala de como Rio Seco “era uma terra onde havia muita mocidade”.

Tão abundante que, todos os dias, as suas ruas viam chegar um autocarro para transportar as crianças rumo a Vilar Formoso, quando terminavam o Ensino Primário. Agora, que os dois edifícios escolares fecharam as portas há muito, resta aos seus habitantes socorrerem-se das memórias para se sentirem mais próximos dos familiares que também procuraram noutras paragens forma de garantirem o sustento. “Somos poucos, mas boas pessoas”, deixa escapar, também ela saudosa do convívio regular com os três filhos que, pela falta de oportunidades de emprego na região, saíram da terra logo na sua juventude.

Maria Adelaide é uma das 154 pessoas que ainda habitam na terra natal do escritor

Mais velha do que Maria Teresa uma dezena de anos, a vizinha Maria Adelaide não chegou a privar com Eduardo Lourenço na sua infância. Quando nasceu, em 1939, já a família do ensaísta tinha saído de S. Pedro do Rio Seco há sete anos. Conhecê-lo-ia, no entanto, muitos anos mais tarde, já neste milénio, numa altura em que Lourenço encetou um discreto mas efetivo regresso às raízes. “Lembro-me bem dele, mas raras vezes vinha cá”, começa por recordar a anciã, antes de enumerar com prodigiosa facilidade os nomes de todos os irmãos de Eduardo e o rumo profissional que cada qual seguiu.

Rente à terra

Homenagens diretas em S. Pedro do Rio Seco teve duas – a última das quais em 2011, para inaugurar um memorial de Leonel Moura em sua homenagem -, mas conta quem sabe que, sempre que por deveres de ofício, tinha que ir à Guarda, lá encontrava forma de visitar a sua aldeia de origem, pedindo ao motorista do município que o conduzisse pela povoação. “Bastava essa pequena volta, em que nem sequer saía do automóvel, para se sentir logo com mais energia”, recorda quem presenciou esse ritual vezes sem conta.

Se nessas ocasiões o contacto com os seus conterrâneos era quase nulo, houve ao longo dos anos oportunidades fartas para formar uma opinião bem fundamentada sobre o caráter e o temperamento do filósofo. “Era um homem simples e falador. Ninguém dizia a profissão que tinha”, proclama com orgulho Maria Teresa, que não se surpreende com a ligação inquebrantável às raízes de alguém que conheceu boa parte do Mundo.

O motivo do orgulho bairrista não será tanto o ainda recente pavilhão multiusos localizado em pleno centro da freguesia (“ai, se a senhora Merkel sabe que é assim que andamos a gastar o dinheiro da Europa…”, terá dito Lourenço quando viu pela primeira vez o amplo edifício caiado de branco, fechado no dia da nossa visita) como os discretos ex-líbris paisagísticos e arquitetónicos da adormecida aldeia beirã.

No “espaço particular, reservado, que é o da minha aldeia”, escreveu o autor no monumento que lhe é dedicado em Rio Seco, impressiona a Capela do Bom Sucesso. A começar pela enigmática posição de um Cristo que tomba da cruz, prestes a exalar o último suspiro, mas também o campo de cruzeiros ao ar livre, como se brotassem subitamente do solo.

Cruzeiros a perder de vista: referências à fé são uma constante em S. Pedro do Rio Seco

É também rente à terra que se apresenta o despojado jazigo do escritor, partilhado com Annie Salomon, companheira de muitas décadas, cuja morte, em 2013, o abalou profundamente. Situado à saída da povoação, o cemitério de S. Pedro do Rio Seco é um monumento de sobriedade em que nenhuma das lápides, por mais ilustre que seja o morador, se distingue da do vizinho. Uma discrição que não poderia agradar mais a quem, durante a vida, sempre descartou as poses académicas.

Museu a céu aberto

Sede do concelho de origem de Eduardo Lourenço, Almeida é um verdadeiro museu a céu aberto. Com a sua bem recortada muralha e posterior fortaleza (construída mais de 300 anos depois, no século XVII), é fácil compreender por que razão, ao longo dos séculos, foi tão decisiva para travar (quase sempre) o ímpeto dos invasores.

Ruas labirínticas da povoação de Almeida convidam à descoberta

O último destacamento militar que dali saiu, em 1927, foi anterior em poucos anos àquela que terá sido uma das raríssimas ligações do escritor a esta terra – no início da década de 1930, o jovem Eduardo realizou o exame de admissão à quarta classe na terra que classificava de “capital providencial”. Curiosamente, fê-lo num ambiente fortemente militar, num edifício que hoje serve de tribunal, remetendo para a profissão do pai, mas também para a formação que ele próprio teria pouco depois, sem que disso tivesse guardado grandes saudades.

É em frente à antiga Vedoria Geral da Beira que hoje encontramos um memorial dedicado ao quase centenário autor. Da autoria de Graça Morais, mostra-nos uma figura imersa nos seus pensamentos que apela à urgência de “habitarmos poeticamente o mundo”, sob pena de “não o habitarmos” de todo.

Memorial da autoria da artista plástica Graça Morais foi colocado a poucos metros do local onde Eduardo Lourenço fez o exame de admissão à quarta classe

O “imaginário hiperbólico” que integra a citação do mural não poderia encontrar equivalência mais certeira na paisagem circundante, essa sim muito familiar de Eduardo Lourenço. É sem custo que avistamos as povoações vizinhas de Pinhel, a noroeste, de Figueira do Castelo Rodrigo, a norte, e, já em Espanha, a nordeste, a Aldea del Obispo. Mas, por mais inspiradoras que sejam as vistas que rodeiam o visitante, o olhar teima em não largar a fortificada urbanização de Almeida, por onde espreitam amiúde minúsculas tascas especializadas nas famosas ginjinhas da região.

Os anos de formação

É muito provável que, para o então petiz Eduardo, a chegada à cidade da Guarda tenha assumido laivos de revelação. Com nove anos, e apenas habituado à dimensão rural de S. Pedro do Rio Seco, a monumentalidade, mesmo que contida, da cidade conhecida pelos cinco F – forte, formosa, fria, farta e fiel – tê-lo-á impressionado muitos anos antes até de, no final da adolescência, se ter perdido de amores por Coimbra, para onde foi estudar.

Nessa década em que lá viveu, uma das suas moradas foi na Rua de Batalha Reis. Mesmo ao lado do Teatro Municipal e muito próxima também do célebre sanatório, “de onde se escoavam às vezes para as ruas da cidade figuras pálidas que atravessavam, desviando-se das pessoas sãs, como fantasmas”, recordou Lourenço muitos anos depois. Mas a Guarda também fez parte do seu percurso formativo. Primeiro, no antigo Liceu Afonso Albuquerque (hoje Escola de Santa Clara) e depois, a partir dos 15 anos, no antigo Convento de S. Francisco, onde cumpriu o serviço militar integrado no Batalhão de Caçadores 7 como oficial miliciano.

A escola na qual aprendeu a ler e a escrever é hoje o edifício da Junta

Como qualquer jovem da sua idade, o autor de “Heterodoxias” terá circulado vezes sem conta por alguns dos pontos mais emblemáticos da quase milenar urbe, como a Porta do Sol, a Praça Velha, o Paço do Bispo, a Judiaria ou a Igreja da Misericórdia. Mais provável ainda é que se tenha impressionado com a Sé, o emblemático monumento em torno do qual a cidade se foi desenvolvendo através dos tempos. Pela sua imponência e mistura singular de estilos ou correntes, como o gótico, manuelino e renascentista, mas também pelas histórias, mitos e lendas que a rodearam desde os primórdios da sua construção, ainda no século XIV. Desde então, viu a sua construção estender-se no tempo por inacreditáveis 150 anos, mas também ser saqueada por soldados franceses no século XIX ou ter o culto proibido no seu interior por alturas da implantação da república.

Regresso às origens

Por ironia do destino, as marcas da passagem de Eduardo Lourenço pela cidade cujo destino associava mais à “solidão”, “vigília” e “ensimesmamento” do que à defesa que lhe dá nome são bem mais palpáveis hoje do que no período em que lá viveu.

As últimas duas décadas da vida de Eduardo Lourenço foram marcadas por uma reaproximação às raízes
(Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)

A (re)aproximação do pensador à cidade começou a ganhar força no dealbar do milénio, quando foi convidado a proferir uma conferência no município. Sem ter terminado o habitual discurso escrito na sua letra minúscula, sugeriu, em jeito de improviso, a criação de um organismo que aprofundasse a relação de vizinhança ibérica, porque “fisicamente nada de diferente separa Portugal da fronteiriça Espanha”. Estava lançado o mote para o que viria a ser o atual Centro de Estudos Ibéricos (CEI), que, sediado na Guarda, com a participação da Autarquia e do Instituto Politécnico local, congrega também as universidades de Coimbra e de Salamanca.

Com uma atividade intensa nas últimas duas décadas, o CEI alberga nas suas instalações amplas referências a Eduardo Lourenço. A mais valiosa será o memorial em sua homenagem, inaugurado cinco meses depois da sua morte, que expõe uma série de objetos pessoais, assim como as principais medalhas e honrarias recebidas. Lá estão os diplomas dos prémios Camões e Pessoa, os sucessivos doutoramentos honoris causa ou as ainda mais frequentes comendas oficiais.

A cada uma das salas da Biblioteca Eduardo Lourenço foi atribuído um título extraído da sua obra

A pouco metros do centro, ergue-se a Biblioteca Eduardo Lourenço. Ampla e luminosa, não ostenta o nome do seu patrono por acaso. Foi à biblioteca da terra natal que ofereceu a biblioteca pessoal quando há uma vintena de anos tomou a difícil decisão de começar a libertar-se do precioso espólio bibliográfico, doando os seus restantes livros – de foro académico, sobretudo a Coimbra.

Grande maioria dos 8500 livros doados pelo autor à biblioteca da sua terra apresenta dedicatórias personalizadas

Os 8500 volumes ali depositados, disponíveis para consulta mas não para requisição, confundem-se com a História da literatura portuguesa do século XX, tão bem representados estão os seus principais autores nesse período. Na sua maioria ofertas dos próprios escritores, as obras ostentam, além de generosas dedicatórias destes, cuidadas anotações do ensaísta, como se fossem diálogos mantidos em tom suave com as páginas.

Um ano de celebrações

O arranque das comemorações do centenário de Eduardo Lourenço acontece já no dia 23 e apresenta um dinamismo que a comissão executiva da efeméride pretende ver replicada ao longo dos próximos 12 meses. Na Guarda e em Almeida estão previstas iniciativas variadas como visitas guiadas, lançamentos de livro, roteiros ou concertos. Mas, tal como aconteceu com as circunstâncias de vida do próprio ensaísta, as iniciativas irão irradiar-se por muitos outros locais, privilegiando os territórios com os quais construiu relações afetivas.

Coimbra, a cidade em que completou os estudos, ou Lisboa, que sempre associou ao seu amado Fernando Pessoa e onde colaborou com a Fundação Calouste Gulbenkian em diferentes fases da sua vida, estão entre os municípios que vão acolher atividades.

Centro de Estudos Ibéricos alberga um memorial que reúne vários objetos pessoais do ensaísta

Apesar do protagonismo dado à rede de lugares que constituem a geografia lourenciana, o autor do seminal “O labirinto da saudade” sempre foi demasiado livre para se confinar a um só território. Uma evidência que encontra eco no programa comemorativo, a que aderiram 17 parceiros oficiais, entre autarquias, universidades e instituições públicas e privadas.

Em oito universidades portuguesas, mas também fora do país, como Salamanca, Bolonha, Bahia e Rio de Janeiro, estão anunciados colóquios e conferências dedicados ao estudo da obra de Eduardo Lourenço.

A fortificada Almeida, concelho de onde Eduardo Lourenço era natural, é um autêntico museu a céu aberto

“A sua obra é tão ampla e vasta que há sempre facetas por explorar, por muito que já tenha sido estudada. Há novos olhares por lançar e ainda não chegámos, de todo, ao fim da história”, explica Rui Jacinto, presidente da comissão científica do centenário.

Ainda na vertente do ensino, mas com enfoque no ensino secundário, haverá leituras e exposições cujo objetivo maior passa pela aproximação dos jovens à sua obra. Com fama de “autor difícil”, como reconhece Rui Jacinto, Lourenço foi, todavia, muito além do reino da abstração: “Há temas abordados nos currículos do Secundário, como a imigração, que estão muito representados nos livros e textos que escreveu”.

Interior da Sé da Guarda chegou a ser vandalizado pelas tropas napoleónicas

A (re)aproximação a um dos pensadores essenciais do nosso tempo passa também pela vertente editorial. Só no último par de meses chegou às livrarias um volume que reúne a correspondência mantida com Jorge de Sena durante mais de 25 anos, assim como “O espelho imaginário”, um livro onde é possível ler textos críticos de “pintura, antipintura e não-pintura” sobre Pablo Picasso, Sónia Delaunay ou Noronha da Costa, entre muitos outros artistas.

É a pensar no interesse que Eduardo Lourenço sempre manifestou por outras artes que estão a ser planeadas atividades fora do plano literário, como mostras de cinema e exposições.