Jorge Manuel Lopes

Canções para madrugadas em órbita


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Com variações na neblina, a voz da cantora e compositora escocesa Dot Allison sempre soou à voz da madrugada do dia seguinte. Mesmo que o enquadramento musical vá mudando. Foi revelada ao mundo há 30 anos com o sublime, e único, álbum do trio One Dove, “Morning dove white”, um registo histórico e exemplar na forma como a canção pop se entrega à música de dança e ao dub, sob a influência da revolução das raves e do acid house (e com mão na produção de Andrew Weatherall, notável poliglota musical falecido em 2020). Banda acabada, seria preciso esperar pelo final da década de 1990 para ver chegar “Afterglow”, o primeiro álbum em nome próprio, iniciando um trajeto em que a eletrónica foi partilhando cada vez mais o palco com outros estímulos.

Em “Consciousology” (Sonic Cathedral), o seu nono álbum, a guitarra sobretudo acústica, salpicos de piano, orquestra sem problema em ser romântica e uma sonoplastia eletrónica discreta e levemente fantasmagórica (além do baixo e da bateria, nem sempre presentes, discretos e amiúde oblíquos, mas longe de serem figurantes) são a companhia instrumental para um repertório que segue mais por uma folk rural, bucólica, psicadélica. As composições são peças de porcelana, a fragilidade aparente uma ilusão que se desvanece ao escutarem-se uma e outra vez. “Unchanged” é rock espacial em lenta mas épica progressão. “Moon flowers” é pop embrulhada numa sinfonia de bolso orbital. Os seis minutos de “Double rainbow” têm a forma de uma clareira num bosque, a guitarra (de Andy Bell, dos Ride e Oasis) e o sintetizador a acompanharem a voz no suave regresso de uma viagem ácida. “Mother tree” é um exemplo da importância subliminar da secção rítmica neste álbum: os parcos mas explosivos apontamentos da bateria escutam-se num plano secundário, ainda assim crucial para o rumo da canção. A toda a hora, o canto de Dot Allison é uma presença familiar: um sussurro expressivo, sempre à beira do desabamento mas sempre seguro. Rumo a uma manhã emersa.