Margarida Rebelo Pinto

As Marias de Portugal


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A existência está repleta de linhas ténues ou imaginárias que as diferentes sociedades e culturas vão desenhando ou apagando ao longo de séculos. O piropo, por exemplo, é uma daquelas questões cujos limites são difíceis de definir. Dizer a uma mulher que ela é bonita é um hábito tão antigo quanto a história da Humanidade e não tem em si mesmo nada de errado. Contudo, as circunstâncias em que o piropo é proferido podem ditar a sua inadequação ou despropósito.

Vejamos o que ocorre no nosso lindo jardim à beira-mar plantado: elegemos um presidente da República que pratica ferozmente a informalidade, que se pela por quebrar regras de protocolo, que não dispensa um café numa esplanada e adora tirar selfies com toda a gente. Elegemos um presidente que nos habituámos a ouvir comentar o país aos domingos à noite, que nem sequer precisou de produzir material de campanha porque já vivia em casa dos portugueses por via da sua regular presença mediática. Alguém que desde sempre usou o charme e a simpatia, o afeto e a familiaridade como armas de conquista de poder. E tudo isto com pitadas de show off, basta lembrar o mergulho no Tejo em 1989, aquando da candidatura à Câmara Municipal de Lisboa. Marcelo é uma estrela nacional e sabe disso. Está na primeira linha do estrelato, tal como Herman José, Amália Rodrigues, Eusébio e Cristiano Ronaldo. Para mim uma estrela de primeira linha é alguém cuja influência se demonstra capaz de mudar um país e de o projetar no Mundo. Se fizermos o exercício de imaginar como seria Portugal sem o riquíssimo humor do Herman, a voz da Amália, o génio do Eusébio e do Ronaldo, não obtemos uma imagem nítida. O mesmo acontece com o atual presidente da República. É notório que ao longo dos dois mandatos, poucas vezes resistiu a tecer considerações polémicas e nem sempre fundadas sobre as mais variadas questões, frequentemente dando o dito por não dito e voltando atrás. Recentemente, por causa de um comentário sobre o decote de uma jovem a quem não se coibiu de dizer que era mais bonita do que a mãe, o país mostrou-se chocado. Chocado porquê? Afinal, o que vimos foi o presidente a ser apenas o presidente. A geração a que pertence está cheia de senhores charmosos, altamente batidos em práticas de sedução com meio século em cima: gestores, empresários, administradores, diretores, ex-ministros, que usam o piropo e as gracinhas mais ou menos atrevidas como quem põe sal na comida. Para eles é normal. E é aqui que chegamos ao âmago da questão. Numa sociedade machista estes comportamentos são tidos como normais e Portugal é um país machista, com um presidente machista.

Vivemos numa luta permanente para atenuar condutas herdadas de uma tradição patriarcal, paternalista e condescendente que vem de lá de trás, séculos antes do Estado Novo. Estes episódios geram sempre acesa polémica, mas não são aproveitados para refletir em profundidade sobre o que representam. Prevalece a vocação lusa para desculpar ou desculpabilizar, num misto de conformismo que, por parte das mulheres, é muitas vezes respondido de forma polida e elegante, para neutralizar a gafe. Foi o que fez a mãe da jovem, quando replicou “e somos as duas Marias”, numa sequência de diálogo que faz lembrar uma conversa de surdos.

As Marias de Portugal reagem o melhor que sabem, mas isto nunca foi, nem é, nem será fácil para elas. Elas, que, afinal, somos todas nós.