Joel Neto

A primeira perda


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Foi numa área de serviço da A1, viajávamos nós da Beira Alta para o Algarve, entre uma festa de casamento e as férias em família com que decidimos adiar o Outono. O João andava pelas máquinas de vending, a Marta pela loja de souvenirs – eu olhava especado a porta dos lavabos. “Um novo conceito de casa de banho”, prometia o cartaz. Deve ser uma coisa mesmo nova, murmurei – tipo “Aqui o meu amigo não deixa nada, leva tudo consigo”. Mas afinal, eram só uns pássaros chilreando um cântico feito em computador. De resto, a saboneteira estava tão seca como nas casas de banho antigas, e, quando me assoei, não encontrei um caixote onde deitar o lenço, necessidade que ao menos aquelas supriam.

Até que, arrastando-nos os quatro de regresso ao carro, ansiosos com os 400 km que nos faltavam, alguém estacou:

– E o Nojentinho? Não tínhamos levado o Nojentinho?

Ainda voltámos atrás, um de cada vez, a perscrutar os corredores, inquirir o gerente, sondar a senhora da limpeza. Nada – nem Nojentinho, nem denúncia de um coelho empoeirado aparecido nalgum recanto sujo, nem notícia de um ladrão de brinquedos de peluche detido duas áreas de serviço acima, com sete dinossauros, três ursinhos e um coelho sem direito a membros: um rosto, umas orelhas, um tronco em cabo de vassoura, e nada mais.

– Algum miúdo que o levou – suspirou o gerente, inconsciente da enormidade.

E eu, voltando com a notícia:

– Que espécie de miúdo leva o brinquedo de outro? Que espécie de pai lhe permite que se aproprie dele, e não se empenhe em devolvê-lo, e o leve para casa?

Parecia-me como matar o gatinho de uma criança, mas de propósito. Certos brinquedos são tanto quanto isso.

E talvez o Nojentinho não chegasse aí. Mas, ao mesmo tempo, era o único brinquedo de que o Artur gostava. Tem dezenas, acumulados desde que ainda nem era nascido – animais, veículos, instrumentos. Mas nunca se ligou a nenhum como àquele que o apaziguou em casa da Lília, quando as Amas do Porto Judeu se condoeram de nós e o acolheram durante as tardes de Verão para podermos trabalhar. De início, chegava a chorar. No fim, já lhe saltava para o colo. E, quando percebeu que fora o Nojentinho a enturmá-lo, a Lília – adorável até ao fim – decidiu que não se despediria sem lho oferecer.

Nem se chamava assim: era só um coelho desbotado, com a memória dos dentes, da baba e do suor das muitas crianças que haviam brincado com ele. Foi a Marta que lhe deu esse nome, Nojentinho, e continuou perfeito mesmo depois de o lavarmos a não sei quantos graus, porque nem assim o Artur deixou de adorá-lo.

Agora pertence a outro miúdo, que o encontrou e os pais deixaram roubar. Já ligámos à Lília, a perguntar onde o comprou – não resolveu. Já procurámos um igual na Amazon – são todos enormes, disformes ou apenas convencionais.

O João, avô bondoso, ainda tentou arranjar um substituto: um bichinho alaranjado que nenhum de nós conseguiu determinar se seria raposa ou esquilo, e que por isso Marta baptizou de Bicharoco. Não resultou. Entretanto, chegámos a ter alguma esperança num dinossauro que já vinha com o nome de Dinis, mas o desinteresse foi tão rápido como o interesse.

É natural: o Nojentinho tinha uma história. E agora tem outra: partiu um coração de um menino. Ou, pelo menos, partiu-nos os nossos, o da Marta e o meu.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)