A maldade, a saúde mental, uma linha tão ténue

Há muito que a noção de maldade inspira grandes discussões e reflexões

Onde começa a primeira e acaba a segunda? É mesmo possível estabelecer uma fronteira entre uma e outra? Uma reflexão que conta com o contributo da psicologia, da psiquiatria e da filosofia.

Perspetivemos este cenário: há, na rede das pessoas com quem nos damos, alguém que abusa das respostas desagradáveis, mostra-se insensível face aos problemas de terceiros, aqui e ali os comportamentos que tem para com os outros roçam até a humilhação. Indignamo-nos, eventualmente enfurecemo-nos, logo lhe passamos um atestado de malvadez. Por outro lado, sabemos que anda com problemas pessoais, parece viver sob uma nuvem de exaustão, em certos momentos percebemos-lhe a ansiedade, a angústia, os traços profundamente depressivos. E aí, sobretudo num tempo em que andamos todos mais alerta para a temática da saúde mental, questionamo-nos: aquela pessoa é realmente má ou simplesmente está a agir assim porque não está bem? Lembremos, a propósito, outro caso mais concreto. Há uns meses, numa arrepiante entrevista ao programa “Alta Definição”, em que recordou o período que se seguiu à morte do filho de 29 anos, a jornalista Judite Sousa assumiu isto, claro como a água: “Eu também não sou uma santa. Fiz coisas muito erradas nestes últimos oito anos. Tenho alguns pedidos de desculpa a fazer. Mas é importante que saibam que se alguma coisa eu fiz de errado, que as tenha magoado, não foi no pleno uso das minhas funções mentais.” E aquelas frases ficam a pairar, a empatia é imediata, como não entender quem fere porque sofre possivelmente a maior dor da vida, podemos realmente falar em maldade quando as atitudes reprováveis surgem num contexto de tamanho sofrimento? E este dilema remete-nos para outras questões ainda mais profundas, todas de resposta complexa: onde é que acaba a saúde mental e começa a maldade? (ou vice-versa) É possível realmente traçar uma linha entre uma coisa e outra? E de onde vem a maldade? Ela implica sempre uma relação de causa e efeito, seja uma doença, o passado ou o contexto de vida, ou pode existir por si própria, sem motivos nem explicações? Há mesmo pessoas boas e pessoas más? E se sim, porquê?

Marta Martins Leite, psicóloga clínica, começa por ressalvar que “é muito importante percebermos que nenhuma pessoa é 100% má ou 100% boa”. “Todos temos a condição de poder fazer o bem aos outros, da mesma forma que todos podemos causar mal a alguém, mediante o contexto e as circunstâncias, de forma intencional ou não.” E se é certo que com frequência associamos os grandes atos de maldade a psicopatas ou sociopatas, é também garantido que pessoas que não apresentam nenhum tipo de psicopatologia podem ser más. “Basta às vezes um contexto que seja mais complicado de gerir.” A especialista dá alguns exemplos, que remetem aliás para as situações abordadas no arranque deste texto: “Alguém que está num processo de luto, alguém que reage a uma provocação que leva a pessoa ao limite, alguém que age por ciúmes”. Ou simplesmente alguém que “tenha uma casa para pagar, mais a escola dos filhos, que ganhe o salário mínimo, que veja tudo a aumentar, é impossível que esta pessoa ande bem, possivelmente vai haver frustração e ansiedade”. Isso pode bastar para potenciar pequenos atos de maldade. Respostas tortas, impaciência constante para com quem lhe é próximo, desejos de vingança por situações fortuitas, por exemplo.

E, sim, a partir do momento em que a pessoa começa a acumular estados de frustração “sem que consiga encontrar estratégias adaptativas para consigo e para com quem a rodeia” falamos de saúde mental. Pelo que se torna difícil estabelecer uma fronteira. Também por isso, realça Marta, é importante estarmos alerta para isto, tanto em relação a nós como a quem nos rodeia. E se por um lado “tudo o que somos tem uma componente biológica por trás” – desde logo, a constituição do sistema nervoso central, a nossa personalidade, sendo que esta “pode de facto influenciar a questão da maldade” -, a psicóloga entende que haverá sempre uma relação de causa e efeito que de alguma forma ajuda a explicar determinados atos. “A maldade terá sempre uma explicação por trás, seja ela qual for. Tudo o que nós somos, toda a nossa estrutura psicológica é um reflexo do que vamos passando ao longo da vida. Sejam traumas, sejam mágoas do passado, tudo isso tem consequências.”

Do contexto à doença mental

Fernando Almeida, coordenador do serviço de psiquiatria do Hospital Lusíadas Porto, lembra, a propósito, que a relação causal pode ser tão simples quanto isto: “Há indivíduos que são durante muito tempo ‘boas pessoas’, mas que a dada altura começam a achar que, por isso mesmo, os outros se aproveitam delas. Acontece muito a nível empresarial. O indivíduo que é promovido nem sempre é o melhor trabalhador. Isso pode levar a indignação e ao sentimento de que ser bom não compensa.” Daí até ao princípio da maldade, seja ela traduzida em pequenos ou grandes atos, pode ser um pequeno passo. Em suma, “a vida, o meio social em que nos movemos, a forma como os outros se comportam, as respostas que vamos obtendo ao longo da vida, toda essa aprendizagem pode levar-nos a atuar de uma forma ou outra”. “A maldade, de um modo geral, não está desligada de todos estes fatores”, salienta. Elenca, a propósito, várias possibilidades de contexto em que esta pode, digamos assim, florescer. “Há a nuance do indivíduo que não é maldoso, mas que se sente injustiçado e se quer vingar. Sabemos que todos nós nascemos com a competência para nos indignarmos e nos vingarmos. Há a nuance do sujeito que avalia mal a relação com os outros e com o Mundo e essa avaliação errada leva-o a sentir-se injustiçado, apesar de o outro o tratar bem. É o caso do indivíduo narcísico, por exemplo. Há a maldade de um indivíduo que sofre de psicose, um indivíduo sereno que nos momentos de desequilíbrio pode achar que está a ser perseguido e reagir de forma desajustada à realidade.” Ou ainda a maldade que se relaciona com a patologia sexual. “A pessoa pode ser sádica no contexto sexual ou até ser maldosa porque está de tal forma apaixonada que é capaz de fazer mal a terceiros para ter prazer.” Isto além da maldade coletiva, conjeturada no seio de um povo contra outro, ou mesmo da maldade por ideologia, propalada na ideia de que fazer bem é dar parte fraca. A lista de exemplos poderia continuar. E depois ainda há indivíduos cuja biologia “aponta para uma estrutura [psíquica] diferente, nomeadamente no caso de alguns ‘serial killers’.” Aí já falamos de uma perturbação de personalidade. O que está bem distante do conceito jurídico do inimputável, note-se.

Esta é outra nuance da questão. Sofia Brissos, psiquiatra no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, e perita do Instituto de Medicina Legal, ajuda a clarificar este ponto, remetendo, desde logo, para o Código Penal, onde se lê (no número 1 do artigo 20.º), que “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”. “Para que o tribunal possa tomar a decisão, precisa que alguém lhe diga se aquela pessoa que cometeu aqueles factos – e dizemos factos porque se se tratar de um inimputável não podemos falar de crimes – tinha ou não doença mental. É esse o trabalho do perito [no caso, o psiquiatra forense], montar as peças do puzzle para tentar perceber se à data dos factos havia doença mental e se fruto dessa descompensação a pessoa não conseguia avaliar a ilicitude dos seus atos. Se assim for, consideram-se preenchidos os pressupostos médico-legais da inimputabilidade.” Sofia Brissos coloca em cima da mesa um outro cenário. “Podemos chegar à conclusão que a pessoa não é inimputável, mas o tribunal concluir que, por exemplo, matou outra com especiais requintes de malvadez. E aí coloca-se a questão: ‘Se não é doença, então é o quê?’. É aí que entram os psicólogos forenses, que vão fazer a avaliação da personalidade e de eventuais traços psicopáticos. Em dados casos, há traços tão exacerbados que falamos em perturbação de personalidade. Sendo que, se a pessoa for avaliada e se demonstrar que há esses traços psicopáticos de malvadez, isso vai pesar na medida da culpa.” Vai haver um agravamento da pena, entenda-se. “E depois também há casos em que não há associação nenhuma, as pessoas são simplesmente más”, conclui. “Muitos crimes graves não são cometidos por pessoas doentes, são cometidos por pessoas más. A maldade existe e é perfeitamente avaliável e mensurável.”

A noção e a interpretação do mal

Diga-se, a propósito, que há muito que a noção de maldade inspira grandes discussões e reflexões. Immanuel Kant, por exemplo, icónico filósofo alemão, defendia que o ser humano tem uma propensão para o mal, apesar de ter uma disposição original para o bem. José Manuel Curado, também ele filósofo, além de professor da Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas da Universidade do Minho e investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma instituição, começa por procurar responder a esta questão: afinal, o que é a maldade? “É a interpretação de um comportamento determinado. Não tem um ponto de referência absoluto e não está na ordem metafísica da realidade. Não há uma bitola, é sempre uma interpretação de algum grupo em relação ao dano que se faz a outrem.” E, além de tudo, é mutável. Como se percebe, por exemplo, pelo facto de no passado o ato de infligir dor a animais não ser percecionado como maldade. E se ao longo de grande parte da História os vários povos foram defendendo a existência de entidades malignas, hoje prevalece a ideia de que “não há intervenção de fora, de que o universo é moralmente neutro”. Mas, então, que razões há para a maldade? “Isso é algo para o qual ainda não temos resposta. A maldade partilha de uma irracionalidade que está nos antípodas da clareza da nossa descrição lógica e científica do Mundo. É caprichosa e efémera, é uma sementinha que nos escapa. Tudo reside neste processo que vai das vésperas da ação até à concretização da ação. Há qualquer coisa que acontece na nossa cabeça nesse momento e ainda ninguém percebeu muito bem o que é.” O que não lhe merece grandes dúvidas é que “a maldade é parte da natureza humana”. “Mas agora estamos numa cruzada contra a natureza humana. ‘Medicalizamos’ tudo, pensamos que podemos acabar com tudo, e a maldade acaba por ser percecionada deste ponto de vista, como um assunto a abater.”

De volta ao campo da psicologia, às relações de causa e efeito e à tese de que os atos de maldade, maiores ou menores, têm sempre uma explicação subjacente, Marta Martins Leite faz questão de deixar este alerta: “Não é por entendermos que há um trauma ou uma mágoa do passado que temos de aceitar tudo com normalidade. Daí a importância de mantermos sempre a nossa personalidade trabalhada a um nível saudável, nomeadamente através de terapia cognitivo-comportamental. Num mundo ideal, todos devíamos fazer terapia, todos devíamos procurar apoio para lidar com questões mal resolvidas do passado, mesmo que aparentemente banais”. Ainda mais num tempo em que, fruto dos efeitos da pandemia, da guerra, das dificuldades financeiras, a maldade parece encontrar um terreno perfeito para se exacerbar. Estaremos mesmo a tornar-nos mais maldosos? A psicóloga dá uma resposta politicamente correta. “Dá a sensação que as pessoas não estão a saber gerir tudo o que está a acontecer.”