Joel Neto

A educação do estóico


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Na verdade, é o fracasso. Evidentemente, eu podia dizer: é a persistência, é a compaixão, é a esperança. E também são elas. Mas a semente está no fracasso. Foi a constância do fracasso que ensinou Charlie Brown a lidar com a adversidade e foi a capacidade de lidar com ela que o enformou perseverante, compassivo e esperançoso. Tudo lhe corre mal: o futebol americano e a patinagem, o ilusionismo, um papagaio de papel e um aviãozinho que se lembre de fazer com uma folha do caderno. A melancolia torna-se inevitável. Mas, ao mesmo tempo, a amargura nunca chega a apoderar-se dele. Charlie suspira e tenta de novo – com a mesma determinação. O resultado não será diferente. Por outro lado, se calhar um dia é. E, portanto, ele não vai mudar o Mundo, mas às tantas um dia muda mesmo.

Tirando a música, que ouvimos a toda a hora, e o Sporting, de que vemos todos os jogos, não há nada em que eu me venha preocupando mais em educar o meu filho do que no Charlie Brown. Mesmo o Sporting é sobretudo outro rosto para ele. Há no menino criado por Schulz um olhar existencialista cuja oportunidade não devemos descurar. Mas é a sua lição sobre como reagir ao falhanço que mais pode ajudar a preparar uma criança para a vida. Isto é: a convicção – consciente ou não – de que a vontade permanece um valor inexpugnável, não obstante o suposto determinismo cósmico. E essa vontade, essa resistência à dor e às emoções paralisantes, é a mais urgente das virtudes.

Extraordinariamente, Charlie Brown não existe em Portugal. Há uns anos, a Afrontamento, que como muitas grandes editoras nunca passou de um pequeno negócio, começou a publicar aquilo que seria a obra completa de Peanuts, mas ficou-se por meia dúzia de volumes, açambarcados pelos coleccionadores. Ainda comprei algumas coisas no Brasil, onde apesar de tudo há bastante oferta. Mas, de resto, só edições em inglês, francês ou espanhol, e mesmo assim não muitas. O que chega a ser chocante, porque a estética da melancolia continua uma bandeira entre os fixes portugueses.

Quer dizer: a música que ouvimos é melancólica, o cinema que vemos é melancólico, a poesia que lemos é melancólica. Que ninguém nos apanhe a ouvir música com refrão, a ver um filme com plot, a ler um poema com rima – morreríamos de vergonha. Já de Charlie Brown, inatacável, nem um livrinho disponível. Portanto, ou toda essa melancolia é fita, ou ainda ninguém saiu das suas urgências tribais para compreender o mais útil: que, postos perante a quimera de educar uma criança no meio do ruído político, do frenesi consumista, da competitividade encarniçada e da infinita solidão do século XXI, talvez não haja um oráculo com mais respostas, para uma criança ou um adulto, do que Peanuts.

É claro, podemos sempre ler-lhes um texto de Séneca, de Marco Aurélio, de Epiteto. Talvez fique alguma coisa. Mas tudo isso escasseia também. Já não se educa para a adversidade, muito menos para o fracasso: educa-se para a competição. E, de repente, nada me parece explicar melhor este tempo que criámos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)