A aldeia de Melo
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Vergílio Ferreira foi nascer a uma terra fechada por montanhas onde temos a impressão de o chão subir em redor para nos espiar ou mexer nas nuvens. A paisagem da aldeia de Melo é uma excentricidade calma, uma exuberância solene, feita de aparato mas sem agressão. Se o tremendo se sente em toda a parte é porque tudo nos remete para a nossa pequenez e o quanto estamos à mercê de uma Natureza que não se poupou de gigantismo e intensidade.
A obra de Vergílio Ferreira é a tradução do tremendismo que há. É, ela mesma, a monumentalidade dessa presença do espaço nas vidas esparsas, escassas, dos povos das montanhas que eventualmente tanto concebem a partida quanto sabem que jamais largarão raízes de seus lugares, que são identitários, inelutáveis. Ferreira fala sem rodeios, mas sempre assombrado, do que é daqueles que o muito tempo vence, gastos na resistência como até as rochas se gastam, até sucumbirem inevitavelmente. Há algo de permanente batalha que é travada até à derrota, fazendo crer que se alguma glória nos resta é a de tombar depois de muito o recusar.
A aldeia de Melo, que vi agora pela primeira vez, é uma circunscrição toda ajeitada, uma espécie de comunidade que se protegeu num recanto das montanhas como se socorrendo do corpo de um deus de pedra. E o deus de pedra demora ali sem vontade de partir. Como fazemos aos gatos que acolhemos no colo, ele acolhe o casario e estende os caminhos bastado com ficar ali.
Que magnífico lugar. Que terras, as de Gouveia, onde tudo ainda guarda grandeza e esplendor. Onde cada pessoa parece também poder agigantar para ser tão profunda de pensamento e tão dotada de sentir que tudo nos convence de haver espírito em toda a matéria. Nada fica ausente. Pousamos os pés na pura consciência do Mundo.
Não sei se haverei de voltar. Sei bem que não foi possível sair dali completo. De algum modo, porque parte de mim já era pelos livros de Vergílio Ferreira. Esse que, tendo morrido, não cessa de explicar o que somos, mesmo que lhe sejamos futuros. Porque tudo em seu modo de ver a essência foi arte de saber do que não passa, é sempre de antes, de agora, e de todo o tempo que ainda virá.
Disse-o em inúmeras ocasiões, em tantas entrevistas, o meu romance português é “Alegria breve”, que me comove às primeiras palavras e que me educa para a solidão e para a velhice. Andei pela terra de Vergílio Ferreira como se por dentro deste livro e talvez me tenha impressionado exactamente por avistar a ínfima capelinha ao cimo de uma lonjura imensa e imaginar que ali, numa invernia, se podia sepultar o amor de uma vida inteira por não haver modo de descer e pedir ajuda, encontrar companhia. Impressionou-me que se possa ver para longe e que nem por isso a distância ceda. É severa. Obriga à disciplina. À resistência e à espera. De algum modo, naquele lugar, até para dentro, para dentro de nós, tudo se torna lonjura. Talvez igualmente impossível de percorrer. Talvez sem ceder jamais.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)