Tarefas domésticas. Quando e como envolver os miúdos

Nunca é demasiado cedo para envolver as crianças em tarefas domésticas, tendo, naturalmente, em atenção o seu nível de desenvolvimento

É só vantagens. Prepara para a vida, apura a organização, promove a entreajuda, incentiva a responsabilidade. Com algumas ressalvas. Depende da maturidade, não pode ser um castigo, pagar por esses trabalhos passa uma mensagem perigosa.

Qual a melhor idade para que os mais pequenos comecem a cozinhar, a passar a ferro, a limpar o pó, a arrumar o quarto? Haverá uma altura indicada para limpar janelas, estender e apanhar roupa lavada, dar banho ao cão? O início das tarefas domésticas por parte das crianças tem estratégias. Sem divisões de meninos e meninas. E sem contrapartidas financeiras. A bem da felicidade de toda a família.

Não há contraindicações de maior nesta matéria e há laços que se reforçam. “Envolver as crianças nas tarefas domésticas desde cedo é prepará-las para a vida, na medida em que aprendem a trabalhar em equipa para um fim comum, potenciando a sua autoconfiança e autoestima, autonomia e coordenação”, refere Rute Agulhas, psicóloga clínica e terapeuta familiar. Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e psicoterapeuta infantojuvenil, fala de empenho e dos seus frutos. “A colaboração de todos e a responsabilização da criança, por tarefas ajustadas à sua faixa etária/nível de desenvolvimento, fortalecem um conjunto de valores (cooperação, altruísmo, comunicação…) e promovem o desenvolvimento cognitivo, motor, emocional e social da criança”, sustenta. Esse envolvimento, acrescenta Rute Agulhas, “também ajuda a promover o sentido de ordem, o respeito por si, pelos outros e a solidariedade”.

Há tarefas em função das idades, de qualquer forma, a maturidade é sempre um elemento a ter em conta. Uma criança de 3 anos pode arrumar os brinquedos e ajudar a fazer a cama. Aos 4, 5 anos, pode varrer o chão e regar as plantas. No início da idade escolar, aos 6, é tempo de limpar o quarto e preparar refeições simples como cereais, sandes, saladas, ou ajudar na confeção de pratos mais complexos com um bolo ou um arroz. Dos 9 aos 12, mudar lençóis, limpar a casa de banho, utilizar alguns eletrodomésticos, como a torradeira e o aspirador. Depois dos 12, e de forma gradual, os adolescentes devem ser encorajados a colaborar nos mais diversos afazeres domésticos. Mais idade, mais desafios, mais responsabilidade.

Os mais pequenos são como esponjas, absorvem o que está à volta e, neste caso, não é exceção. Uma vez mais, o exemplo à frente dos olhos é fundamental. Rute Agulhas chama a atenção para isso mesmo. “O papel dos pais/cuidadores é determinante, na medida em que funcionam como modelos que as crianças tendem a imitar. Os mais novos aprendem com aquilo que ouvem, mas também com o que observam”, repara.

Nunca é demasiado cedo para envolver as crianças em tarefas domésticas, tendo, naturalmente, em atenção o seu nível de desenvolvimento. De qualquer modo, os trabalhos podem sempre ser ajustados. “De um modo geral, as crianças gostam de imitar os adultos e sentem-se valorizadas por poderem participar em tarefas de casa”, diz Inês Afonso Marques.

Cozinhar é um bom exemplo dos benefícios dessas ajudas caseiras. E em vários domínios. No social, as crianças compreendem o que é a entreajuda e a importância de saber esperar. No cognitivo, desenvolvem a linguagem, a leitura e a escrita, exercitam o raciocínio, já que ler uma receita exige fazer cálculos de quantidades e medidas. Emocionalmente, estreitam-se laços e lidam-se com sentimentos. E a motricidade fina é reforçada em tarefas como descascar e cortar alimentos e envolver ingredientes.

As famílias ressentem-se da falta de tempo, as lides da casa fazem parte da rotina, e há sempre coisas a fazer, a arrumar. Toda a ajuda é bem-vinda. Para Margarida Crujo, pedopsiquiatra, é vantajoso que os momentos dessas missões domésticas sejam tempo de relacionamento e quase um jogo ou brincadeira. Há, no entanto, o fator risco, isto é, o maior ou menor risco associado a esses trabalhos. “Arrumar o quarto, à partida, será seguro, e tem a vantagem de permitir à criança/adolescente aprender a cuidar de um espaço que possa ser exclusivamente seu, como quem aprende, simbolicamente, também a cuidar um pouco de si próprio”, sublinha. Outra conversa é passar a ferro ou usar facas para preparar comida, ou cozinhar num fogão com chama ou manusear certos detergentes. “O ideal seria que os adultos se encarregassem das tarefas de risco, apesar de as poderem ensinar aos filhos ou até mesmo envolvê-los em pequenas etapas – por exemplo, ajudar a colocar a roupa passada no armário ou lavar legumes antes de se cozinharem”, exemplifica a pedopsiquiatra.

Além do grau de risco, se é ou não ajustado à maturidade, há o grau de autonomia associado à mesma tarefa. Margarida Crujo considera que as crianças não precisam de completar sozinhas todas as etapas do mesmo serviço. “Há tarefas que se podem realizar num mesmo espaço e tal permite a interação entre pais e filhos: por exemplo, os filhos usam uma vassoura enquanto os pais cozinham.”

O elogio e a paciência

Como fazer? Como envolver? Quais as estratégias? Incentivar desde cedo, modelar comportamentos que se querem observar, agradecer a colaboração. “Não ir atrás corrigir ou aperfeiçoar, pois isso passa a mensagem de que a criança não está a ser capaz”, avisa Inês Afonso Marques, especializada em psicoterapia cognitiva-comportamental com crianças e adolescentes, e que costuma dizer, a propósito, “mais vale uma cama feita pela criança com lençóis mal esticados, do que uma cama nunca feita por ela”.

A comunicação é fundamental, como pedir, como explicar, como instruir. “O grau de envolvimento das crianças em determinada tarefa (qualquer que ela seja) e o grau de satisfação que daí podem retirar dependem inicialmente da narrativa que lhes é contada sobre a mesma tarefa”, indica Margarida Crujo. Uma coisa, pormenoriza, é apresentar a arrumação do quarto como um jogo ou um desafio feito com os pais, outra coisa é tornar esse serviço como um castigo.

Rute Agulhas aconselha os pais a recorrerem à modelagem em quatro passos. Primeiro, as instruções. “Explicar à criança como se realiza uma dada tarefa e qual a sua importância, utilizando uma linguagem simples e acessível.” Segundo, a modelagem. Ou seja, explica, “mostrar como se faz, passo a passo, devagar e com uma explicação em voz alta.” Para maior eficácia, o modelo não deve ser perfeito. Há razões para que assim seja. “O adulto deve também mostrar algum tipo de dificuldade ou hesitação e, de seguida, estratégias para as ultrapassar.” A perfeição pode desmotivar. “Se o adulto for demasiado exigente e perfecionista, centrando-se e criticando aquilo que está mal feito, a criança poderá sentir-se incapaz e desmotivada”, alerta Rute Agulhas. Terceiro, praticar com a supervisão e encorajamento do adulto. Quarto, o feedback, salientar progressos e conquistas, ajudar a superar dificuldades. “O reforço social (elogio) e a paciência são fundamentais”, realça.

Há ainda o remar todos para o mesmo lado, contribuir para o bem comum. Se todos colaborarem, os pais terão mais tempo disponível para momentos de lazer, para brincar e passear. Inês Afonso Marques dá mais um conselho. “Reforçar que aprendendo estas tarefas enquanto cresce, no futuro, a criança será um adulto mais autónomo e capaz de se adaptar.”

Não há incumbências para meninas e incumbências para meninos. Deveres domésticos são deveres domésticos. Rute Agulhas toca nesse aspeto. “Rapazes e raparigas devem ser envolvidos da mesma forma, sem qualquer tipo de distinção. Só dessa maneira podemos combater os estereótipos associados ao género.” Inês Afonso Marques reforça essa visão. “Meninos e meninas sem qualquer diferenciação nas tarefas em que participam.” Margarida Crujo concorda: diferenças de género não se justificam.

Outra coisa importante, nada de pagamentos envolvidos. “As crianças não devem receber dinheiro pelas tarefas que realizam, sob pena de transmitir a mensagem de que apenas as devem realizar a troco de um pagamento”, destaca Rute Agulhas. “Este tipo de mensagem não estimula a solidariedade nem a cooperação.”

E nunca esquecer que o dever primeiro dos mais pequenos não é trabalhar em casa, ajudar, claro, mas nunca um processo pesado. “Ajudar, sim, mas as crianças devem, acima de tudo, poder brincar, socializar e, a partir de determinada idade, também estudar”, frisa Margarida Crujo. “É muito positivo quando a logística em torno das tarefas domésticas é partilhada, embora não seja suposto que a harmonia de uma família assente necessariamente no envolvimento dos filhos nestas tarefas”, reforça.


Tarefas para as crianças crescerem com autonomia

Passo a passo do livro “A brincar também se educa” (Editora Manuscrito) de Inês Afonso Marques.

2-3 anos

  • Limpar o pó.
  • Desarrumar e arrumar brinquedos.
  • Colocar no lava-louça ou máquina de lavar louça alguns utensílios de cozinha – colher de pau, pratos e copos de plástico, tupperwares.
  • Colocar roupa suja no cesto.

4-5 anos

  • Aspirar/varrer.
  • Separar o lixo e ajudar no momento de o colocar no ecoponto.
  • Alimentar animais de estimação.
  • Regar plantas.
  • Encontrar pares de meias para um adulto dobrar.
  • Pôr e levantar a mesa das refeições.

6-9 anos

  • Fazer a cama.
  • Colocar a roupa na máquina de lavar.
  • Lavar a loiça.
  • Separar e preparar ingredientes para uma refeição simples (procurar, lavar, contar…).
  • Limpar janelas.

A partir dos 10 anos, inclusive

  • Preparar refeições simples.
  • Estender e apanhar roupa lavada.
  • Dobrar roupa e arrumar nas gavetas e nos armários.
  • Limpar e arrumar o quarto.
  • Preparar a mochila para o dia seguinte.
  • Supervisionar crianças mais pequenas por breves períodos de tempo.