Socorro, o meu filho ainda faz xixi na cama

A enurese noturna é uma questão da privacidade da criança, “que não deve ser partilhada fora de casa”

A enurese noturna é um problema comum entre crianças em idade escolar, que tem impacto em toda a família. Mas há estratégias para resolver. Culpabilizar não é o caminho.

O nome enurese noturna até pode assustar, mas a doença é bem mais comum do que se possa pensar. Estima-se que entre 10 a 15% das crianças em idade escolar, sobretudo rapazes, ainda não tenham um controlo noturno do esfíncter urinário e continuam a fazer xixi na cama, o que é motivo para muitos pais levarem as mãos à cabeça e pressionarem os filhos. Outros há que desvalorizam. Mas nem tanto ao mar nem tanto à terra. Foi pelo menos dessa forma que Margarida Oliveira e o marido tentaram levar o problema de João (nome fictício), filho mais velho, sete anos.

“Ele começou a deixar as fraldas de dia na escola por volta dos três anos. E foi um processo bastante normal. Em casa, estávamos à espera que, pelo menos nas sestas, deixasse de fazer xixi na fralda, para depois lhe tirarmos a fralda de noite.” Isso aconteceu, mas o caminho acabou por ser bem mais longo do que imaginavam. Depois de uma primeira tentativa, tiveram que voltar às fraldas durante a noite, num vai-não-vai que carregou muito desgaste. “Às tantas, ele já tinha seis anos e continuava com fralda. Tínhamos tentado várias vezes e já era uma perturbação para toda a família. Mesmo com fralda-cueca, molhava a cama. Tínhamos que estar constantemente a mudar lençóis”, relata a mãe.

Os pais pediram ajuda à pediatra, que lhes deu dicas e estratégias. Desde acordarem duas vezes durante a noite para o levar à casa de banho, com o cansaço que isso traz a reboque, a reduzir o consumo de líquidos ao final do dia, não baixaram os braços. Também têm uma filha de meses. “Tentámos não o pressionar negativamente. Mas foi muito difícil não o fazer. O trabalho diário que isto acarreta, a somar às outras tarefas que existem numa família, com uma filha recém-nascida, foi muito penoso”, desabafa Margarida. Até tentaram incluí-lo na rotina de lavar os lençóis, “para lhe despertar a consciência”.

E a verdade é que o problema se resolveu. Como? “Sempre tivemos medo do estigma. Mas só quando ele percebeu que não podia ir dormir a casa de amigos é que começou a encarar isto como um problema. De tal forma que pediu ajuda a uma professora do pré-escolar, não teve qualquer estigma em assumir.” A professora criou um “calendário do xixi”. Quando João fazia xixi na cama, o dia era pintado a nuvens escuras com chuva. Quando não fazia, o dia era pintado com um sol. O pai também passou a dormir algumas noites com João, o que ajudou.

Aos seis anos, deixou de fazer xixi na cama. “Aprendi que mais vale não fazer várias tentativas. É preferível tirar a fralda mais tarde do que andar para trás. Forçar acaba por criar um problema que não é deles”, defende Margarida, que pelo caminho foi encontrando amigos a viver o mesmo problema e até relatos na família. “A filha de um casal amigo também fazia. E o meu pai fez xixi até muito tarde e lembra-se perfeitamente. Foi bom percebermos isso. Acaba por tirar o monstro das nossas cabeças.”

Do sono profundo à ansiedade

O relato tem adesão a uma realidade transversal. Segundo Erica Monteiro Torres, pediatra na Clínica Baía de Cascais, “geralmente, quando há familiares com história de enurese, o pai ou a mãe também fizeram xixi na cama até tarde, existe uma tendência em termos familiares”. Em média, as crianças adquirem o controlo voluntário do esfíncter, durante o dia, por volta dos dois anos. E, à noite, entre os três e os quatro. “A enurese, no fundo, acontece quando crianças com cinco anos ou mais continuam a fazer xixi na cama à noite.”

E as causas podem ser várias. “A primeira é a poliúria noturna, são crianças que urinam mais durante o sono por uma questão hormonal e nesses casos o tratamento pode ser precisamente hormonal”, explica a médica. Mas há mais. Desde miúdos que têm um sono muito profundo a alguma imaturidade do sistema nervoso central, uma bexiga pequena e até fatores psicológicos. “A enurese é muito comum em crianças que estão a passar por momentos de stress.” É o caso do divórcio dos pais, o nascimento de um irmão, bullying na escola.

Da experiência que tem, a pediatra sustenta que “os pais, geralmente, ficam bastante aflitos, querem que os filhos sejam autónomos e evoluam, isto tem de ser desmistificado”. Excluídas causas mais graves, como malformações – que podem ser detetadas com análises à urina, ecografia aos rins e bexiga -, há estratégias para não tornar o problema num bicho-papão. “Fazer alguma restrição na ingestão de líquidos umas três horas antes de ir para a cama é logo uma grande ajuda e treinar a criança para ir à casa de banho antes de se deitar”, exemplifica a pediatra. Mas a abordagem terapêutica é sobretudo motivacional. Fazer um calendário com a criança das noites secas e das noites molhadas é um truque. Nas noites molhadas não recriminar, e nas secas dar um reforço positivo. “Não dar uma tónica negativa às noites molhadas é muito importante”, alerta. E voltar atrás, depois de tirar as fraldas, é um erro a evitar. “Para não ser tão difícil para os pais, a solução é colocar um resguardo na cama, daqueles descartáveis.”

Para lá do reforço positivo, existe outra arma terapêutica. Chama-se “Pipi Stop – Alarme Urinário”, um sensor que “se coloca nas cuecas e que emite um alarme às primeiras gotas de urina”. Serve sobretudo para casos de sono muito pesado, “porque a criança acorda e levanta-se, vai ganhando esse estímulo”. Tem sucesso, segundo a clínica, em dois terços dos casos, se usado dois a três meses consecutivos. Em alternativa, “os pais podem tentar perceber a que horas habitualmente o filho faz xixi na cama e levantarem-se para o levarem à casa de banho”, tentando que o faça de forma consciente e não meio adormecido. Só depois de todas estas estratégias esgotadas é que se parte para medicação.

A vergonha, a culpa e o impacto na família

Segundo Victor Viana, psicólogo no Serviço de Pediatria do Hospital de São João, Porto, “a enurese é um problema frequente e entende-se que é quase normal”. A ansiedade tem, naturalmente, dedo nisso. Há casos de crianças que nunca deixaram de fazer xixi na cama e outras que já deixaram e que voltam a fazer por causa de algum episódio. Mas que impacto é que isto tem? “As crianças podem ser vítimas de gozo e isso é parte do problema. A vergonha, a culpabilidade que sente, ampliada muitas vezes pelos colegas, pelos pais, familiares.”

O psicólogo sublinha que é uma questão da privacidade da criança, “que não deve ser partilhada fora de casa”. “Envergonhar, dizer que é malcomportada não ajuda a resolver, pelo contrário. Cria medo de que volte a acontecer e mal-estar na criança, que se vai sentir caso único. Muitas vezes, isto resolve-se e o que fica é esta vergonha, esta ansiedade.”

E o problema traz outras questões a reboque. Desde não poderem ir dormir a casa de amigos até decidirem não participar num torneio desportivo fora. “Não vão porque têm medo que aconteça. Mas isso também pode ser ultrapassado com o uso de cuecas tipo fralda.” E o impacto, reconhece o psicólogo, estende-se à família. “É muito cansativo para os pais, especialmente se pensarmos que têm que acordar quatro vezes por noite”, ou que têm que lavar e secar lençóis constantemente, o que se complica no inverno. Este é um ponto importante. O processo de tirar as fraldas deve ser iniciado nos meses de verão, aconselha Erica Monteiro Torres. “E numa altura em que exista disponibilidade dos pais. Os miúdos, com o quentinho no inverno, têm mais preguiça para sair da cama para ir fazer xixi”, realça a pediatra.

Certo é que ignorar o elefante na sala não é solução, mas a tranquilidade é o segredo. “A maior parte dos casos vai-se resolver espontaneamente. Raros casos vão permanecer até à adolescência”, conclui Victor Viana.