Sobreviver ao suicídio

Houve um momento em que a esperança lhes escapou por entre os dias, em que soçobraram de tristeza, em que sobrou só desespero e cobardia. Mas a vida encarregou-se de lhes dar outra oportunidade. E eles reinventaram-se, empoderaram-se, construíram uma feliz serenidade de espírito. Ricardo, Larissa, Bernardo, Irina e Fabiana são a prova de que uma tentativa de suicídio não é uma sentença para a vida.

Quando se obriga a recuar àqueles tempos de gaiato, em que a vida lhe era mais cruel do que gosta de contar, Ricardo Ribeiro, afamado fadista que até já foi distinguido pelo Estado português com a Ordem do Infante (grau de comendador), dá por ele mergulhado num quadro desfocado e incompleto. “Houve partes que apaguei completamente.” Mas há uma memória que sobreviveu aos quase 30 anos que se acumularam desde então, uma lembrança que ainda assoma à consciência aqui e ali, espécie de chaga a que recorre para “não voltar a entrar por ali”. “O sentir que aquela era a única saída. Essa sensação, de nos sentirmos encurralados, nunca mais se perde. É das poucas coisas que não se esquecem na vida.” Sobre os caminhos que o levaram àquele lugar, foi-os desvendando vagarosamente ao longo dos anos. A relação difícil com os pais, as dificuldades económicas, a perceção de que a mãe tentou abortar três vezes quando estava grávida dele (tinha apenas oito anos quando a ouviu confessá-lo em conversa), os maus-tratos, a separação dos pais. E outras dores em que não está sequer disposto a remexer, mas que também o conduziram àquele buraco negro em que desistir da vida lhe pareceu a única saída. “Um tipo não vê solução e então usa da cobardia.”

Ricardo tinha 12 anos, ia a caminho dos 13, vivia com o pai, praticou “aquela coisa”, foi descoberto, foram dar com ele já debilitado, “para lá de Marraquexe”, levaram-no a correr para o hospital, “o que lá está em cima não deixou” que ele morresse, conseguiram salvá-lo. Mas depois ainda teve de salvar-se dele próprio. Foi-lhe diagnosticada uma depressão, passou a ser acompanhado na Pedopsiquiatria, depois o pai mandou-o para um colégio interno. “E foi a melhor coisa que me aconteceu. Conheci pessoas fantásticas, nomeadamente um homem extraordinário, que foi o padre Manuel Alves [diretor do colégio].” O primeiro de uma série de “homens sábios” com quem passou “horas infindas” a conversar e que haveriam de ajudá-lo num percurso que tem sido uma edificação permanente. Houve outros, que faz questão de nomear. O pintor Rui Gomes Pereira, o fadista Fernando Maurício, o músico Rabi Abou-Khalil. Pelo meio, agarrou-se à poesia, à literatura, à filosofia. E ao fado, sempre ao fado.

Mas a vida havia de tardar a acertar-se. Aos 16 anos, deixou a escola para ir guardar ovelhas na Moita. Aos 20 e poucos, morreu-lhe o pai, numa altura em que não se falavam. Aquele sentimento de culpa foi-lhe estilhaçando os dias. Para piorar, teve uma relação amorosa fracassada. E então caiu de novo nas malhas da depressão, noites a fio sem dormir, medicação fortíssima, acompanhamento psiquiátrico. Mas não mais voltou “àquele lugar de querer sair do Mundo”. “E acho que nunca mais vou voltar”, arrisca. A queda serviu-lhe de capital impulso para dar a volta e manter-se à tona. Somou êxitos na música, mudou o estilo de vida, perdeu 50 quilos em dois anos, fez-se, afinal, maior do que as agruras. E descobriu-se, por fim, em paz. “Foi algo gradual, uma construção permanente. Isso de ter uma vida estável e feliz para mim não existe. Ainda para mais na minha condição artística, que é um mundo de altos e baixos. O que existe é um estado de serenidade de espírito. A felicidade nada mais é do que a serenidade de espírito.”

Barreira sem retorno

A história inspiradora de Ricardo Ribeiro vai ao encontro do que nos diz José Carlos Santos, professor na Escola de Enfermagem de Coimbra e relator do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, lançado em 2013. “Se é possível [recuperar inteiramente de um episódio destes]? É. As crises suicidárias não são para a vida eterna. Acontecem num determinado momento da vida. E há muitos casos de pessoas que tiveram esse tipo de comportamento e ultrapassaram, têm hoje uma vida estável”, salienta. Só que há um mas. “Mas uma pessoa que já teve um comportamento suicidário passa uma barreira muito importante que é a capacidade de fazer mal a si própria. E disso não há retorno. Se não conseguir lidar adequadamente com a razão de tal comportamento, pode voltar a recorrer a isso mais tarde.” O psicólogo holandês René Diekstra, num estudo de 1993, defendia mesmo que o risco de suicídio em pessoas que já tenham tentado pôr fim à vida anteriormente é cem vezes superior, quando comparado com o da população em geral.

A história de Larissa (nome fictício, como quase todos os que se seguem) é um bom exemplo desta ameaça acrescida. No terceiro ano da faculdade, já depois de lhe ser diagnosticado um transtorno generalizado de ansiedade e de começar a tomar medicação forte, viu-se enredada numa bola de neve de que não foi capaz de sair. “Os ansiolíticos deram-me tanto sono que deixei de conseguir ir às aulas e fui ficando cada vez mais triste. Além de que me sentia mal por obrigar os meus pais a gastarem imenso dinheiro em consultas no privado. Acabei por desistir das consultas, deixei de conseguir estar no Porto, voltei para Viseu, emagreci 11 quilos num mês, só chorava.” E então veio o dia em que deixou de querer esperar por outro dia. Só se lembra de fazer umas chamadas, já mais para lá do que para cá, e de acordar no hospital, com uma sonda.

“Os ansiolíticos deram-me tanto sono que deixei de conseguir ir às aulas e fui ficando cada vez mais triste. Além disso, sentia-me mal por obrigar os meus pais a gastarem imenso dinheiro em consultas”, reconhece Larissa
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Esteve duas semanas internada no Hospital de São João, no Porto, onde tinha “muito boas condições”. Mesmo assim, só queria sair dali para fora. Por isso, começou a modelar as respostas para que lhe dessem alta rapidamente. Erro crasso. Uma semana depois, voltou a tentar o suicídio, a mãe apercebeu-se, foram para as urgências, voltou a ficar internada, agora durante três semanas e com uma mentalidade distinta. “Dessa vez, fiz realmente tudo para estar bem. E quando saí disse à minha mãe: ‘Não quero voltar ao que era antes. Vou renascer’.” E então começou a ir religiosamente a todas as consultas. Psiquiatria, psicologia, psicoterapia. Criou até uma relação muito próxima com a psicóloga da faculdade, que acabaria por ser uma ajuda preciosa. “Mostrou-me que não era normal aquilo que eu era antes. Que não estava a viver, só a sobreviver.” Tomou antipsicóticos, antidepressivos, ansiolíticos diários. Hoje, já só mantém uma dose mínima de antipsicóticos e antidepressivos. Reinscreveu-se na faculdade, tem uma boa média, um namorado que a tem “ajudado muito” em todo o processo. E é hoje uma pessoa muito diferente daquela que foi durante grande parte da vida. Mais dada, mais opinativa, mais aberta a novas amizades, sem medo de se expor. “Ainda tenho ansiedade, mas enfrento-a. Já não tenho medo de fazer as coisas nem de dizer o que quero.”

Já os motivos daquela viagem ao abismo só ficariam claros com o passar dos anos. E eram, afinal, bem mais remotos do que alguma vez pensou. O facto de ter trocado o Brasil por Portugal aos cinco anos, a distância da família, a solidão que lhe tolheu os dias, a “vergonha” de falar com sotaque, a tentativa de o mitigar para ser mais como os pares. A princípio, ainda encontrou refúgio na escola e no orgulho de ter boas notas. Mas, com o tempo, foi sendo posta de lado por ser a “marrona” da turma, não teve namorados como as colegas, sofreu de bullying, fechou-se cada vez mais. Chorava por tudo e por nada, começou a automutilar-se, a mãe apercebeu-se e levou-a ao hospital. Diagnosticaram-lhe pela primeira vez uma depressão estava ela no oitavo ano. Mas, a dada altura, por sua própria conta e risco, resolveu deixar de tomar os comprimidos. “Achava que já não precisava.”

E ainda havia a ansiedade. “As apresentações orais eram o terror. Passava uma semana a decorar todas as palavras. Até ir ao supermercado me deixava ansiosa. Passei a sair só mesmo para ir à escola.” Não espanta, por isso, que a entrada na faculdade tenha sido o descalabro. No primeiro ano, ainda se safou porque era tudo muito teórico. No segundo, com apresentações recorrentes, a vida complicou-se, mas a covid e a possibilidade de ficar em casa adiaram o precipício. Até que veio o terceiro ano e correu tudo mal. “Não ia às aulas porque não me queria expor. E então deixei de fazer a única coisa que sabia fazer.” Mas o problema de fundo, a psicopatologia depressiva e o transtorno de ansiedade, já lá estava fazia tempo.

Perturbações mentais em 80% dos casos

Na verdade, é frequentemente assim. Ana Matos Pires, psiquiatra e membro da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, recorda que, de acordo com estudos internacionais, “80 a 90% dos suicídios estão relacionados com perturbações mentais”. Depois, há os outros casos, em que as tentativas de pôr termo à vida são motivadas por circunstâncias específicas da vida pessoal, mesmo que não haja qualquer psicopatologia de base. Foi assim com Bernardo, de 20 anos, zero histórico de problemas, um rapaz “divertido, sempre na brincadeira”, que entrou no curso de Medicina “cheio de expectativas, com uma atitude positiva”.

“Só que comecei a perceber que não gostava nadinha. E tinha acabado uma relação de três anos há pouco tempo. Então foi o típico efeito bola de neve. Ainda por cima estava a ter dificuldades em fazer entender à minha família que não estava a dar. E comecei a sentir-me sozinho, sem saber o que fazer.” Ainda recorreu à psicóloga da faculdade, que por sua vez lhe recomendou uma psiquiatra. Começou até a fazer medicação. “Mas continuei a viver num clima um bocadinho negro. A dada altura, já nem conseguia assistir às aulas. Ia e começava a chorar, cabisbaixo. Não me sentia feliz. E depois tive um envolvimento com uma rapariga que também não correu muito bem.” Até que chegou o dia em que “não deu para mais”.

“Não me passava pela cabeça que uma coisa destas me pudesse acontecer. Mas ninguém é imune. E o que gostava de dizer é que, se algo do género acontecer, não desesperem”, afirma Bernardo
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Por sorte, aquele momento de insanidade e desespero acabou por não ser fatal. “E a partir daí foi sempre para cima. A medicação começou a fazer efeito e no segundo semestre passei a explorar novos cursos a que me poderia candidatar no ano seguinte. Acabou por reencontrar na Matemática o entusiasmo que havia perdido. “Tive receio no início do ano, mas acabei por integrar-me muito bem, as pessoas são fantásticas, nunca tinha sentido tanto apoio.” Hoje, não hesita em dizer que “renasceu”. “Completamente. Voltei ao que era antes.” Mas tirou daqueles dias sombrios uma importante lição para a vida. “Não me passava pela cabeça que uma coisa destas me pudesse acontecer. Mas ninguém é imune. E o que gostava de dizer, a quem me possa ler, é que se algo do género acontecer, ou se estiver para acontecer, não desesperem. Há sempre solução, há sempre perspetivas e pessoas dispostas a ajudar.”

Mais abertos, mais precoces, mais drásticos

Essa predisposição crescente para pedir ajuda é o ponto positivo que Isabel Lourinho, psicóloga clínica e coordenadora do gabinete de apoio ao estudante do ICBAS, destaca, na hora de fazer uma espécie de raio-X à saúde mental dos estudantes com que se vai cruzando. Nos 16 anos que leva de trabalho em contexto universitário, tem assistido a “uma mudança de paradigma”. “Recorrer aos serviços de Psicologia já é hoje uma coisa muito mais normalizada. Chegam-me muitos alunos em que a sugestão de ir à consulta parte dos próprios colegas, que não têm problemas em partilhar que também vão. Ou mesmo dos professores, que estão hoje muito mais atentos. Não tenho dúvidas de que há hoje um estigma muito menor.”

Mas a evolução não se tem feito só de boas notícias. “A par com um aumento da procura dos nossos serviços, noto um aumento das situações graves, como comportamentos suicidários e consumo de drogas. E também um aumento do número de pessoas que já anteriormente, na adolescência ou mesmo na infância, tiveram necessidade de recorrer a consultas de Psicologia. Seja por causa da separação dos pais, de casos de bullying ou de um histórico de psicopatologia.”

E que explicações encontra para esta aparente deterioração da saúde mental dos mais jovens? O facto de recorrerem cada vez mais às consultas explica uma parte de questão, mas é só uma peça de um puzzle maior. “Há hoje uma pressão muito grande para o sucesso, para as relações, para o corpo perfeito. E as redes sociais vieram acentuar isso. Nunca foi tão fácil estar conectado e por outro lado nunca vi tanta solidão e pouca confiança no outro. Muitos destes jovens não têm sequer a figura do melhor amigo, que para nós era banal. Com alguma frequência, há pouca qualidade na rede de pares. E depois, o facto de Portugal ser dos países com pior equilíbrio entre o trabalho, a família e o lazer também não ajuda. Quase que se trabalha só para pagar as contas, há pouco tempo para brincar com os filhos.”

E essa falta de atenção tem um preço, por vezes demasiado alto. Já para não falar da covid, que veio “agravar a questão da falta de laços”. Fausto Amaro, presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, reconhece que apesar de no geral se verificar, ao longo dos anos, uma ligeira diminuição do suicídio em Portugal, tem havido “um aumento do suicídio na adolescência”. “As explicações que têm sido dadas relacionam-se essencialmente com a integração nas famílias e na sociedade”, releva o sociólogo, em sintonia com as explicações de Isabel Lourinho.

Irina, hoje com 27 anos, nunca soube explicar exatamente os motivos que, ainda adolescente, a levaram a querer desistir de tudo. Mas, à distância, não tem dúvidas de que o contexto familiar não ajudou. Os pais divorciaram-se tinha ela três anos, passaram eternidades em litígio nos tribunais, o pai acabou por morrer durante esse processo, tinha ela nove anos. “O meu contexto familiar ficou completamente estragado. Éramos uma família de classe média-alta e passámos a ter dificuldades, a minha mãe teve de arranjar dois empregos e a relação entre ela e os meus irmãos passou a ser muito conturbada.” Mesmo assim, durante muito tempo, achou que estava tudo bem. “Até que aos 13 anos, apesar de não sentir uma tristeza específica, comecei a imaginar muito o meu processo de suicídio.” E depressa passou à prática. Lembra-se de acordar nas traseiras do prédio em que vivia, de tentar pedir ajuda, de entrar no hospital a berrar de dores porque tinha fraturado a coluna e de um médico ainda lhe dizer “bem feito”. Reencaminharam-na para um hospital psiquiátrico, mas ela pediu por tudo para não ficar. E não ficou.

Só que, quando voltou para casa, o estado psicológico em que se encontrava piorou drasticamente. Passou anos mergulhada numa tristeza profunda, andou de psiquiatra em psiquiatra sem nunca ter um diagnóstico exato, tomou fármacos vários, tentou várias vezes pôr fim à vida, submeteu-se a dois internamentos, num deles chegou a tentar fugir. Em vão. Até que, por volta dos 19 anos, quis começar a trabalhar. E a vida foi-lhe sorrindo aos poucos. “Comecei a perceber que conseguia fazer coisas, a sentir-me valorizada, a sentir que podia controlar o meu futuro.” Aos poucos, foi deixando a medicação e as consultas, agarrou-se ao exercício físico, empoderou-se. E, mesmo que não saiba identificar o momento de viragem, sabe, com certeza, que hoje nada tem que ver com aquela adolescente depressiva e sombria. “Hoje sou uma pessoa megapositiva, superalegre. A minha grande prova dos nove foi ter ficado desempregada durante a pandemia e ter conseguido dar a volta. Tirei cursos, reinventei-me, estou de bem com a vida.” E por isso fez questão de partilhar a história com a NM. “A mensagem que gostava de passar é que não tem de haver estigma em relação à saúde mental. Ninguém é mais ou menos por isso. O cérebro é um órgão como os outros todos e precisa de manutenção.”

O caso da comunidade LGBTI+

E se o aumento dos comportamentos suicidários entre adolescentes é uma tendência relativamente recente, há outras que se vão mantendo uniformes ao longo do tempo. A do suicídio ser mais comum entre os homens (na Europa, cerca de quatro vezes mais), apesar de as mulheres tentarem mais. A de a população com mais de 65 anos ser aquela em que há maior prevalência. A de a taxa de suicídio ser três vezes superior entre homossexuais e bissexuais. Hélder Bértolo, presidente da Opus Diversidades, dá conta disso mesmo. “Recebemos muitos pedidos de apoio psicológico para pessoas com ideação suicida, que dizem que não aguentam mais. Isto acontece diariamente.” O problema ainda é mais premente nas pessoas trans, que, realça o dirigente, “por causa da aparência, têm muitas vezes dificuldade em encontrar emprego”. Mas à associação continuam a chegar também pedidos de ajuda de homossexuais, seja por serem forçados a submeter-se a terapias de conversão, seja por serem expulsos de casa.

Fabiana, hoje prestes a completar 50 anos, nunca foi. Mas nem por isso se livrou das dores de crescer colada ao rótulo da homossexualidade. “Há 40 anos, crescer enquanto pessoa não-normativa em termos de orientação sexual, ainda por cima numa aldeia do interior do país, era muito diferente porque não havia informação. Eu desconhecia a palavra homossexual, a palavra lésbica, desconhecia a existência de uma hipótese de vida que não fosse um casal heterossexual.” Por isso, a primeira relação viveu-a com medo e às escondidas. “Tive medo do ostracismo pessoal e esse é um medo terrível para uma adolescente. Ainda por cima quando se trata de uma coisa tão bonita e tão especial como é o amor.” Com 13 anos, procurou pela primeira vez informação sobre o assunto. Só encontrou alusões a “uma fase da adolescência”. “Mas quando se repetiu aos 15 anos percebi que não era uma fase.” E assim, durante dois anos, encontraram-se às escondidas nas casas de banho do liceu. Até que as famílias descobriram e as separam. “Não culpo a minha família porque sei que foi fruto do desconhecimento.” Mas naquele momento viu-se sem perspetivas. “Na altura, o final daquela relação significou para mim o fim da hipótese de ser feliz em qualquer outra relação. Nesse desespero, o suicídio pareceu-me a solução mais viável.”

“Na altura, o final daquela relação significou para mim o fim da hipótese de ser feliz em qualquer outra relação. Nesse desespero, o suicídio pareceu-me a solução mais viável”, conta Fabiana
(Foto: Carlos Alberto/Global Imagens)

Valeu-lhe a irmã, que chegou a casa a tempo de a salvar, mesmo que não se tenha livrado de passar uns quantos dias em coma no hospital. Depois, deparou-se com uma psiquiatra que haveria de lhe mudar a vida. “Confessei-lhe que era lésbica e que isso era um problema grave. E ela perguntou: ‘Para si ou para os outros?’. Eu respondi ‘para a sociedade’ e ela disse-me: ‘Então vamos ter que mudar de sociedade’.” E aquele toque de despertar não foi automático, mas acabou por lhe definir o resto da vida. “Adquiri as ferramentas que me permitiram ter uma vida muito positiva, contribuir ativamente para a mudança, ajudar a evitar que outros passassem pelo sofrimento e isolamento que nós tivemos de passar.” E então começou a ler, a ler muito, a procurar saber mais sobre a homossexualidade, a descobrir figuras de referência. Entrou pela via do ativismo e associativismo, envolveu-se com uma série de grupos e movimentos de um ainda incipiente movimento LGBT. “Fui feliz a partir do momento em que decidi que ia ser responsável pela minha própria felicidade.” E, tanto anos depois, jura que não mais voltou a sentir a tentação do suicídio. “Senti sempre que havia caminho. E que o caminho estava nas minhas mãos”, diz, como quem fala de uma segunda vida.

Ana Matos Pires, psiquiatra, admite, no entanto, que não lhe agrada o uso do termo “renascer”. Porque dá uma sensação de morte e romantiza o comportamento, o que se deve de todo evitar. “Prefiro que se fale em ultrapassar, em reorganizar-se.” E explica o que pode ser determinante para essa reorganização. “Antes de mais, é importante ressalvar que o suicídio é um comportamento, não é uma doença. E como comportamento que é nunca podemos falar numa causa única. Normalmente há um gatilho, um fator desencadeante. Muitas vezes, é o momento que determina o acontecimento. E, da mesma maneira que é possível controlar os fatores de risco para o comportamento suicidário [ver caixa], se a pessoa estiver devidamente suportada após esse comportamento, a probabilidade de se reorganizar é enorme.” Ou como sublinha Ricardo Ribeiro: “Desistir nunca é solução. Temos de pensar que isto é como um tubo. E se conseguimos entrar, também conseguimos sair por onde entrámos”.


Contactos

Linhas de emergência

Número europeu de emergência
Se alguém está em perigo de vida, ligue 112.

Serviço de aconselhamento psicológico (SNS24)
Se tem sintomas de depressão ou pensamentos de suicídio, utilize o Serviço de Aconselhamento Psicológico, integrado na linha telefónica do SNS 24, através do 808 24 24 24.

Linhas de apoio

SOS Voz Amiga
231 544 545 / 912 802 669 / 963 524 660
(das 15.30 às 00.30 horas)

Conversa Amiga
808 237 327 / 210 027 159
(das 15 às 22 horas)

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
222 030 707
(das 16 às 22 horas)

Telefone da Amizade
222 080 707
(das 16 às 23 horas)

Voz de Apoio
225 506 070
(das 21 às 24 horas)

SOS Estudante
915 246 060 / 239 484 020
(das 20 às 01 horas)


Factos & números

3
Suicídios por dia em Portugal, em média, o que se traduz numa taxa de mortalidade por suicídio de 11,5 por 100 mil habitantes, em linha com a média europeia.

Grupos de risco
Em Portugal, observam-se taxas de suicídio mais elevadas no sexo masculino, nas pessoas mais velhas e nas zonas rurais. Em relação à distribuição geográfica, as taxas são mais altas no Alentejo, no Algarve e nas regiões autónomas da Madeira e Açores.

800 mil
O número de pessoas que morrem anualmente por suicídio, em todo o Mundo, o que corresponde a aproximadamente uma morte a cada 40 segundos. Os países em desenvolvimento são os que registam taxas mais elevadas.

2.ª
Causa de morte entre os jovens (15-34 anos) em todo o Mundo.

Muito mais tentativas
Estima-se que o número de tentativas de suicídio seja 25 vezes superior ao número de mortes por esta via.