Os novos rostos do circo

Pedro Matias é equilibrista, rolla bolla. Daniel Seabra acrobata aéreo e acaba de ser premiado. João Pataco estreia a sua primeira criação, “Oco”, em janeiro. Carolina Vasconcelos faz roda cyr, Sofia Encarnação roda alemã, Lia Vilão lira e suspensão capilar, Ariana Sebastião malabares - e fundaram, as quatro, a Companhia Absurda. Têm menos de 30 anos, passaram pelo Chapitô e, em palco, nas alturas ou no chão, sem rede, mostram o que são, com inquietude e desassossego, a criar e a interpretar. São a nova geração. São o futuro.

Pedro Matias sai do metro, segue pela rua das traseiras do Coliseu do Porto, pela Formosa, atravessa o portão verde de acesso aos bastidores, alguns lanços de escadas, está no camarim. Maquilha o rosto, aquece o corpo num ligeiro treino, veste o fato colorido, elástico, colante dos pés ao pescoço, coloca o capacete que é apenas um adorno da personagem. Pedro é equilibrista, rolabolista, rolla bolla, malabarista. Tem 25 anos, é de Santarém, é do circo e não quer estar sossegado. “Temos um corpo, é só usufrui-lo”, diz. A partir daí, tudo pode acontecer.

São oito da manhã, é sexta-feira, há cafés que ainda não abriram na baixa do Porto, choveu toda a noite, parou há pouco, o céu vai abrir e o Sol há de aparecer. A primeira sessão do circo do Coliseu do Porto começa às dez da manhã. Haverá mais duas, uma às duas da tarde, outra às nove da noite, há dias com mais, outros com menos, até 8 de janeiro. Os colegas vão chegando, conversas pelos corredores, camarins ocupados, materiais e adereços nos devidos lugares, a postos. A história foi assimilada há semanas, agora é tempo de entrar em cena. Uma companhia de circo foge da cidade, perde-se num deserto cyberpunk, mostra a sua arte a uns azarentos que ali estão. É na procura de um lugar de liberdade e de pertença que o circo de Natal do Coliseu se constrói, inspirado no texto “Os gigantes da montanha”, de Luigi Pirandello. Pedro entra e sai de palco várias vezes. E é de liberdade que fala. “O circo dá-me descoberta, poder estar sempre a descobrir coisas e pessoas novas, dá-me também um pouco de pensamento sobre o que se está a fazer, a pertinência do que se está a fazer.”

No 9.º ano, Pedro Matias, de Salvaterra de Magos, Santarém, percebeu que havia uma escola bem diferente da que conhecia, criativa, artística, irreverente, que trabalhava com o corpo. “Uma escola onde se mexiam e não estavam quietos”, lembra. Era o Chapitô, em Lisboa. Sabia que era ali que tinha de estar naquela escola de circo, na Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espetáculo, na capital. “A ideia de um menino de uma vila-aldeia ir para Lisboa não acontecia.” Não aconteceu de imediato, mas tinha de acontecer, pelo bichinho da descoberta, pela vontade de abrir horizontes, por aquele desassossego. Três anos depois, aos 18, estava lá, no Chapitô, viveu no último andar da escola, descobriu o circo e suas artes, que há mundos paralelos que não devem ser arrumados em gavetas ou colocados cada um na sua estante, que se entrecruzam e respiram em conjunto. Três anos de Chapitô a aprender e a experimentar, a seguir INAC – Instituto Nacional de Artes do Circo, em Vila Nova de Famalicão. Mais dois anos de aprendizagem para definir uma técnica e desenvolvê-la. “Aí é que está o grande divertimento. A parte divertida é que não estamos cingidos a uma coisa.”

Carolina Vasconcelos também está ali, nos camarins do Coliseu do Porto, maquilha-se, branco ao redor dos olhos, lábios vermelhos, rosto verde, parte de cima já vestida, vistosa e brilhante, faltam as calças laranja e a cabeleira fogosa roxa com os cabelos em pé. Daqui a pouco será uma das intérpretes do circo do Coliseu. Tem 24 anos, é de Lisboa, pratica roda cyr (cyr wheel), roda de alumínio que manuseia com leveza, está na Companhia Absurda, em Vila Nova de Famalicão, vai fazendo trabalhos pontuais, como neste circo do Coliseu onde está em palco sem a sua roda.

Aos 13 anos, fazia dança, mas não era bem aquilo. “Quando estava na dança, sentia-me muito deslocada”, confessa. Desenquadrada, presa até, tudo igual para gente igual. Queria algo mais físico, aos 15 anos, estava no Chapitô, onde a paixão aconteceu entre os dias passados entre técnicas circenses, teatro, diferentes formas de expressão artística. “Acabei por me apaixonar pelo circo.” Não era trapézio que queria até que colou os olhos num vídeo de Angélica Bongiovonni e a sua roda cyr. Era aquilo, coração aos pulos, e a vontade concretizada de ver a artista ao vivo e a cores num estágio no Canadá. Já não havia dúvidas. Aos 18, Carolina entrava na primeira turma do INAC e com uma certeza. “Qualquer tipo de corpo e qualquer modo de ser encaixam no circo.” Nesse circo que dá liberdade, nesse circo que desbrava caminhos.

A 11 de janeiro, João Pataco, 23 anos, alentejano de Estremoz, estreia a sua primeira criação no palco do Chapitô, em Lisboa, onde estudou. “Oco” é um espetáculo multidisciplinar com dança, teatro, circo, poesia, que fala de saúde mental. João, sozinho em palco, não é apenas um acrobata aéreo, não é apenas um bailarino, é muita coisa porque é muita coisa que quer ser. Está na Companhia Laboratório, em Lisboa, o seu berço, agora anda em digressão como bailarino na peça “Monólogos da vacina” com João Baião. Em 2020, venceu, com o amigo Miguel Tira-Picos, o programa “Got Talent Portugal”. Acredita no circo e quer ser parte dessa história. “Quero que Portugal cresça e quero ser um grãozinho para que cresça a nível artístico”, revela.

Carolina Vasconcelos tem 24 anos, faz roda cyr, é intérprete e encenadora, uma das fundadoras da Companhia Absurda. Aos 13 anos, estava na dança e percebeu que não era ali o seu lugar. No circo, todos os corpos encaixam
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Aos 11 anos, João estava num grupo de dança, nada formal, era um hobby, durou seis anos, também fazia natação, jogava futebol, queria ser psicólogo. Até àquele espetáculo em que entra como voluntário, trava a fundo, sente onde pertence. Desiste do liceu, deixa Estremoz, entra no Chapitô, recua dois anos nos estudos. Tinha acabado de fazer 18. Queria arriscar, tentar, não sabia se iria resultar. “Vinha de longe, era um mundo novo, sabia que tinha de ter um foco, queria fazer parte desta vida”, conta. Sabia exatamente o que queria: acrobacia aérea. “Queria levar o meu corpo ao limite. É isto. Sabia que ia ser difícil, não tinha o meu corpo preparado para a acrobacia.” Foco, investir, treinar. Sem parar, sem desistir, ali, naquela escola diferente de todas as outras. “O Chapitô é uma escola mágica, um mundo à parte, onde entramos e nada mais importa, é uma escola de sonhos.” E o seu sonho concretizou-se.

Física, política, mudança

Daniel Seabra acaba de vencer a primeira edição do Prémio Jovens Artistas Coliseu Porto Ageas – Artes Circenses. Recebeu o prémio segunda-feira passada, distinção que o apresenta como um dos mais importantes nomes da nova vaga do circo contemporâneo em Portugal. É acrobata aéreo, tem 29 anos, é de Sobrosa, Paredes, estudou três anos no Chapitô, aluno de mérito, bolsa Talento Nacional – BES 2013, trabalhou para a Disney on Ice, Royal Circus, colaborou com diversas companhias, La Fura dels Baus, Erva Daninha, Companhia da Esquina, Teatro Experimental do Porto. Em 2020, fundou a sua própria companhia Circo Caótico, no Porto. Vive para o circo, vive do circo. Inconformado, irrequieto, apaixonado por adrenalina e pelo circo, focado nos seus propósitos, imparável. “E não quero ser de outra forma. Só assim é que se pode ser um agente de mudança”, afirma.

Nunca quis ser outra coisa. “Em 2009, fugi literalmente com um circo, conheci uma miúda do circo, era um puto, tinha 15 anos”, recorda. Ficou nesse circo na terrinha, em Sobrosa, em apresentações à volta da aldeia, na ginástica acrobática que já praticava. Depois Chapitô, onde, em 2015, apresentou o seu primeiro espetáculo “Água mole em pedra dura”, inspirado em Gisberta, a transexual assassinada no Porto. A sua mais recente criação, “Raiz”, do Circo Caótico, é sobre a partilha de um lugar, como alguém que influencia o espaço do outro, e vice-versa, sempre a provocar o desequilíbrio. Vinte e oito datas feitas em Portugal.

Daniel partilha o que pensa. Na sua visão, para ser artista de circo é preciso perceber duas coisas: física e política (não partidária). Os corpos e objetos no espaço, a força da gravidade, na física. A política e sua essência, o lugar onde se está, chegar ao outro. “Se não se perceber de política, não se está, honestamente, a fazer grande coisa”, repara. No seu circo, há sempre temas, questões do género, histórias de mulheres, fronteiras e limites. “Gosto muito de trabalhar sobre a verdade”, reconhece.

Daniel Seabra, acrobata aéreo, criou a companhia Circo Caótico, no Porto. Quer contaminar o seu circo com várias linguagens e lembra que 70% dos teatros do país não programam esta arte
(Foto: Julieta Guimarães)

Sofia Encarnação é a única a fazer roda alemã no país, no circo, descobriu-a no INAC, depois de três anos no Chapitô, a experimentar técnicas acrobáticas. Encomendou a roda de 40 quilos, logo se veria, se não gostasse, vendia. Encantou-se pela arte e ficou com a roda. “Foi um processo de descoberta.” Com algumas reuniões familiares, no início.

No 10.º ano, estava em Humanidades, queria ser advogada, uma das grandes amigas falou-lhe do Chapitô. “Sempre gostei da área das artes.” Porque não? Conversa com a família, ia fazer audições no Chapitô, não havia volta a dar. Entrou, nova reunião familiar, mudança de planos. “Percebi que gostava mesmo de circo.” Esteve um ano em França, a treinar numa escola de circo.

Sofia, 26 anos, de Lisboa, está onde sente que deve estar neste momento. “O circo dá-me muita liberdade”, garante. E aquela máxima de que se se fizer o que se gosta, nunca se terá de trabalhar na vida, soa-lhe bem. As etapas do dia a dia e os constantes desafios significam crescimento. “O circo puxa muito pela nossa criatividade, marca-nos, desenvolvemo-nos muito como seres humanos e olhamos para as coisas de outra maneira”, comenta.

Há oito anos, aos 20, Lia Vilão atravessou o Tejo, deixou a margem Sul, a sua casa no Barreiro, para estudar no Chapitô, depois de uma apresentação nesse espaço como bailarina de danças de salão – tem oito anos de competição, o irmão como par. Ficou encantada, porque não experimentar circo?, a ligação física às artes já era uma realidade, o design gráfico no liceu não a atraía assim tanto. Tentou, entrou no curso de Interpretação e Animação Circense, fez as malas, instalou-se em Lisboa. Todo um outro mundo, toda uma reinvenção. “No primeiro ano, passámos por todas as técnicas e não tinha jeito para os malabares”, admite. Ainda tentou antipodismo, malabarismo com os pés, concorreu para o INAC, entrou. “Desenvolvi uma boa técnica em lira e acabei por descobrir a suspensão capilar.” É o que faz agora, lira e suspensão capilar na Companhia Absurda e em projetos que vão aparecendo. Como peixe na água. “O circo é um mundo que me dá liberdade de expressão. Além da técnica, há outros meios que se podem ligar, e há tanta liberdade sobre o que se quer passar. E sou feliz quando o faço. Estar em palco deixa-me realmente realizada.” “Mexe com a autoestima, mexe com as nossas capacidades, a necessidade constante de inovar e de ser diferente”, acrescenta. Neste meio ainda pequeno, com vários artistas, Lia gostava de ter um lugar. “Destacar-me no bom sentido.”

Lia Vilão descobriu a lira e a suspensão capilar no INAC. O circo dá-lhe liberdade para se expressar, para sentir, para questionar, para voar
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Ariana Sebastião é malabarista, sente-se livre na sua arte, vê-se a fazer várias coisas dentro e fora do palco, e não tem dúvidas de que o circo contemporâneo vai encontrar o seu espaço, ser respeitado e considerado, ter o lugar que merece. “Não há nada melhor do que acordar e ir feliz para o trabalho e sair feliz. Sabe bem estar no sítio onde quero estar.” Tem 30 anos e é de Lisboa.

O circo não tem fronteiras, não tem gavetas fechadas, tem horizontes largos, pode ser tudo ao mesmo tempo, dança, circo, teatro. Tudo o que se quiser. “Encontro no circo muita liberdade para fazer, para ser o que eu sou e o que quero ser. E quando faço, faço com muito gosto.”

O circo não foi uma descoberta óbvia para Ariana. Tinha 16 anos, estava numa formação de auxiliar de ação educativa, adora crianças, e gostava da parte dos espetáculos de fantoches e de teatro. Nos testes psicotécnicos, ficou confusa, não havia cruzes nos quadrados onde esperava, elas estavam no lado das artes. “Nunca me tinha passado pela cabeça que ser artista podia ser uma profissão.” Decidiu estudar Interpretação na Escola Profissional de Imagem, no Cais do Sodré. Uma professora aconselhou-a a experimentar algo mais físico no Chapitô. Assim foi, experimentou palhaço, malabares. Depois rumou a norte, ao INAC, e dedicou-se ao malabarismo. “Vejo-me em muitos papéis”, atira. Além de intérprete, vê-se como diretora artística, como assistente de direção. “Gosto de trabalhar a minha criatividade, a minha imaginação, gosto de trabalhar com pessoas.”

Ariana Sebastião é malabarista, experimentou várias técnicas, depois de perceber que ser artista é uma profissão
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Sofia, Carolina, Lia e Ariana fundaram a Companhia Absurda no ano passado, durante a pandemia, em Famalicão. Já têm dois espetáculos, “Frágil” e “In Loco”, estão a caminho da terceira criação, que estreará em 2023. A companhia surge como uma plataforma para mais espetáculos, mais projetos, alguns de inclusão social, como estrutura de apoio a outros artistas, como meio de criar oportunidades e candidatar-se como associação. O nome vem do universo surrealista e de um guarda-chuva virado ao contrário que é o logótipo da companhia. “O absurdo está muito ligado ao surrealismo”, explica Sofia Encarnação. Daí o batismo numa torrente de propostas. Atuam ora juntas ora separadas em projetos e trabalhos que vão aparecendo no circo. “Somos muito diferentes, mas acabamos por nos complementar”, salienta Sofia.

Pensar, criar, provocar

Pedro Matias é freelancer neste mundo, alguns projetos de dança com Paulo Ribeiro, algumas companhias, a Radar 360º, a Instável. A ambição, grande ou pequena, existe sempre. Pedro sabe o que quer. “Um dia, ter uma companhia e poder considerar-me um criador, ter um registo pessoal definido. Esse caminho é lento, é feito devagar.” Percorrido de olhos abertos, assimilando o que cada uma das artes lhe dá, a entregar-se da forma que merecem, para ter maturidade de levar para o palco o que se cria.

O circo contemporâneo tem uma narrativa, conta uma história, reflete problemas deste tempo, descobre e cria, diverte também. O circo não é só uma coisa, são muitas. “O importante é que também seja útil. Servir um propósito, provocar, no bom sentido, o espectador, mas, ao mesmo tempo, com entretenimento”, diz Pedro. “O circo tenta passar uma mensagem, tem de expressar alguma coisa, cria nuances e camadas. A história ajuda a passar uma mensagem”, acrescenta. Pedro quer aproveitar esses momentos, continuar a fazer circo, aqui ou lá fora.

Daniel Seabra absorve tudo. Participou em três filmes, agora anda a fazer música. “Interessa-me muito experimentar tudo, tenho muita vontade de contaminar o meu circo com outras linguagens”, confessa. Vê o circo numa revolução, animais fora até 2025, novas propostas, mais expressões, e tudo pode ser um gatilho para trabalharem todos juntos, circo tradicional e circo contemporâneo, não lhe interessa essa segmentação, essa divisão. “Circo é circo independentemente da linguagem e da estética que use”, argumenta.

O prémio que recebeu, o primeiro para o circo, é um reconhecimento dos pares, que o entusiasma, que o motiva. É um marco que acaba por destapar uma realidade. “Os apoios governamentais para o circo apareceram há seis anos, 70% dos teatros em Portugal não programam circo”, adianta. O circo não tem espaço como o teatro ou a dança nos prémios, nos apoios, na projeção. Daqui a uns anos, Daniel quer continuar no circo e levar as suas criações a teatros portugueses. E quer que, tanto agora como nesse futuro, não persista aquela ideia preconcebida. “Quando dizia que ia fazer circo, pensavam que ia vestir-me de duende de Natal, encher balões e dar umas cambalhotas”, recorda.

Sofia Encarnação e a sua roda alemã num mundo em crescimento e que dá espaço para imaginar, criar, interpretar. Esteve um ano em França a treinar com uma companhia
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Sofia quer continuar onde está, a desenvolver a sua arte, a respirar o que há ao redor. Como intérprete, como criadora, como curiosa. Sair do país para integrar uma outra companhia de circo está nos seus planos. Acrescentar conhecimento, perspetivas, modos de estar. “Recolher um pouco desse material e dessas vivências.”

Não é uma vida estável, casa às costas, sempre de um lado para o outro. Carolina sabe-o bem, mas não é isso que a desarma. “Gosto desta forma, trabalhar em sítios diferentes, com horários diferentes, nada é monótono, nunca sabemos propriamente o dia de amanhã.” No amanhã, cabem expectativas. Carolina gostava de ser encenadora, ser reconhecida por isso, não só como intérprete. “Gostava de encenar e de dirigir, já tive oportunidade de o fazer, criar para outros.” É onde se sente bem. “O circo contemporâneo passa uma ideia, conta uma história. É um processo que lentamente está a começar a mudar mentalidades”, defende.

Viver do circo é uma faca de dois gumes, um mundo para conhecer e explorar, a instabilidade financeira. “Quem está nesta arte acaba sempre por conseguir fazer”, sublinha Lia. Apesar dos “ses” e dos “mas”, o circo começa a ser valorizado, só que é um processo lento. “Há muitos artistas, bons espetáculos, uma grande logística por trás, há muitos meios de conhecer esta cultura que é tão rica”, sustenta Lia.

Sofia sente algum desrespeito, não pelo que é feito, mas pelo olhar posto na geração mais recente que lhe retira credibilidade. Como se não houvesse maturidade artística numa juventude que estudou circo, que tem anos de escola e conhecimento. “Falta um pouco darem-nos credibilidade pelo pouco tempo que acham que temos.”

Há o sonho e há a realidade, há escola e há o mercado de trabalho. O Chapitô, com inscrições abertas, pensa nessa transição, sob orientação do seu serviço social, dá possibilidade de experimentar a vertente de turismo cultural criativo, por exemplo, em hotéis, bares, restaurantes.

João Pataco usa uma analogia. Há uma montanha-russa num parque de diversões, mete medo, quer-se andar, entra-se, experimenta-se, a montanha pára, o coração aos pulos, adrenalina a ferver, o desejo de andar outra vez e outra vez e outra vez. Estar ali. “Quando entro em palco, é quando, na realidade, consigo ser eu próprio, o que não consigo através da palavra – parece cliché, mas não é. É onde me consigo encontrar, é uma espécie de meditação”, descreve o acrobata.

João Pataco numa sala do Chapitô, onde estudou. Não quer ser apenas acrobata, não quer ser apenas bailarino, quer ser coisas distintas. Tudo o que o circo permite, esse circo persistente
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

João Pataco continua a atuar, continua a aprender. “Quero fazer muitas coisas distintas e não ser só o João acrobata, o João bailarino”. Quer ser encenador, coreografar, escrever espetáculos, aproveitar cada momento. “Quero criar mensagens bonitas para as pessoas.” E não lhe importa que seja um meio instável porque é isso que também o estimula. “Faz-me querer ir mais longe, esforçar-me mais, treinar mais, para atingir um objetivo. É muito difícil, eu sei, e não há muitos apoios em Portugal, só que o circo é persistente. E eu gosto do circo por isso.” Esse circo que, no chão e nas alturas, constrói e cria.