O dia a dia dos anónimos com nomes de figuras públicas

Piadas de amigos, pedidos para imitação, apreensão em chamadas telefónicas. Atribuído propositadamente pelos pais ou uma coincidência que só o tempo revelou, ter o mesmo nome de uma figura pública pode parecer divertido, mas também se faz de histórias menos felizes. Na mesma área profissional ou em campos distintos, é certo que a sombra do homónimo famoso jamais os largará.

Barulho de fundo. Nervoso miudinho. Sobe ao palco. As luzes apontam para si e… silêncio, que se vai cantar o fado. Poderíamos estar a descrever um qualquer início de espetáculo de Simone de Oliveira, a cantora e atriz, mas não. Esta é a memória que Simone de Oliveira, educadora social, tem de uma das muitas atuações que fez no tempo da escola. Sim, não há qualquer engano. O nome – até mesmo o “de”, já aí chegaremos – é o mesmo. Letra por letra. E Simone de Oliveira, de 24 anos, vive, mais do que bem, com orgulho de ter o mesmo nome daquela que considera um exemplo de mulher, ativista e artista.

Foi ainda em criança que começou a sentir o que é ter uma homónima famosa, já que, em qualquer espetáculo da escola, Simone de Oliveira não poderia falhar com a sua interpretação da “Desfolhada”, da própria Simone de Oliveira. Natal, Páscoa, aniversários. Qualquer ocasião era a certa para mostrar a canção que Portugal levou à Eurovisão em 1969 nos pequenos palcos dos auditórios escolares e municipais de Espinho, onde Simone de Oliveira nasceu e cresceu.

Hoje, tem 24 anos. Exatamente menos 60 anos do que a homónima. É educadora social, licenciada, e trabalha no Centro Integrado de Apoio à Deficiência da Santa Casa da Misericórdia do Porto. É no local de trabalho que, atualmente, mais comentários a esta coincidência de nomes recebe.

Já não é nos palcos, mas ainda hoje lhe pedem para cantar a “Desfolhada”. Pelo menos nas primeiras semanas de trabalho conta que era essa a deixa preferida dos colegas. “E, antes do meu primeiro dia de trabalho aqui, dizem que nos corredores só se ouvia: ‘temos de nos preparar para conhecer a grande Simone de Oliveira’.” Chegou o dia e conheceram. “Hoje ainda não ouvi a fadista” é a frase preferida dos colegas de trabalho. “Ainda ontem me disseram isso.”

Comentários desde a infância

Os comentários não a incomodam, mesmo vindos desde a infância. Já sabemos que a protagonista das festas da escola era Simone de Oliveira e a “Desfolhada”, mas também nos corredores havia pedidos e brincadeiras. “Tens nome de velha”, atiraram-lhe algumas vezes. “Acho que essa memória, de quando ainda era criança, é a única que tenho de me sentir aborrecida com o meu nome, mas depressa passou”, desabafa. E como é que passou? Conhecendo a história.

“Eu estava tão irritada por os meus amigos da escola me chamarem velha que fui saber mais sobre a pessoa que tinha o mesmo nome do que eu. E a irritação passou.” Passou porque se encantou com a figura. Com a artista, com a mulher, com a ativista. Simone de Oliveira conta que, por causa do nome coincidente, era uma criança com um conhecimento invulgar: sabia, orgulhosamente, quem era a Simone de Oliveira. E passou a fazer questão de repetir a vida e obra da artista a todos aqueles que a chamavam de velha. “Foi uma forma de me educar a mim e aos outros.”

A jovem Simone de Oliveira, que tem orgulho no nome coincidente que lhe foi atribuído
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Tal foi o fascínio ganho quando ainda teria uns sete ou oito anos que, aos 11, apresentou um trabalho na disciplina de História sobre Simone de Oliveira, a cantora. A Simone a falar da Simone. A risota, essa, foi garantida. Mas só no início, recorda. Porque o seu entusiasmo em falar daquela figura era tal que os próprios colegas ficaram concentrados na explicação.

O pormenor faz a diferença

O “de”, sublinha, no seu caso, faz toda a diferença. “Simones Oliveiras deve haver mais, mas com a coincidência de ter o exato ‘de’ é mais raro e é isso que deixa as pessoas curiosas.” Apesar das brincadeiras dos conhecidos e da curiosidade dos desconhecidos, Simone de Oliveira nunca pensou alterou o nome, omitir o “de” ou passar a apresentar-se com o apelido que lhe sobra: Pereira. Tem um imenso orgulho em viver com o mesmo nome da cantora.

Não por uma questão de falta de orgulho, mas por praticidade, há quem altere o nome quando há uma coincidência semelhante. É o caso de Michael Douglas. Os atores. Sim, há dois atores norte-americanos com o exato nome e apelido, além da mesma profissão. Por conta das confusões, um deles passou a utilizar um outro apelido e é conhecido pela maioria do público por Michael Keaton. Falamos do protagonista de “Batman”, de 1989. O outro é o protagonista, por exemplo, do conhecido filme “Instinto Fatal”, de 1992.

Um com 71 anos de idade e o outro com 78, respetivamente, ambos bastante reconhecidos internacionalmente pelo seu trabalho, a alteração do nome “profissional”, como pode ser chamado, pareceu uma necessidade pela geração e área coincidente. Mas também há quem, com nomes iguais, tente fazer com que a sua arte seja “vista”, mesmo que continue à sombra de um homónimo mais (re)conhecido.

Quando os homónimos se conhecem

Trata-se de Nick Cave. Ou, melhor dizendo, dos Nick Cave. Um deles dispensa apresentações. É o australiano, de 65 anos, aclamado pelo trabalho na música, em particular como cabeça da banda Nick Cave and the Bad Seeds. Pelas tournées mundiais que faz todos os anos, aparecendo em diversos palcos e festivais, um pouco por todo o lado, é seguro afirmar-se que é, seguramente, o Nick Cave mais conhecido no Planeta. Mas há um outro. Também artista. É Nick Cave, também na casa dos 60 anos de idade, artista plástico e escultor, natural dos Estados Unidos.

Nesta coincidência, a diferente área profissional e nacionalidade facilitam o deslindar da confusão. A não ser, claro, que eles se encontrem em espetáculos na mesma cidade. O insólito aconteceu em 2013, quando o músico Nick Cave atuava em Nova Iorque com a sua banda e o escultor Nick Cave apresentava uma exposição na mesma cidade, umas ruas ao lado. Apesar da coincidência, a boa disposição imperou e os dois artistas até se conheceram pessoalmente e tiraram uma fotografia juntos – para que dúvidas não restassem de que são duas pessoas distintas.

O encontro entre os Nick Cave, o escultor e o músico (da esquerda para a direita), que ocorreu em Nova Iorque, Estados Unidos, em 2013
(Foto: DR)

Quem não quer, de forma alguma, conhecer o seu homónimo é André Ventura. E, aqui, as coincidências (ou melhor, as contrariedades) dão ainda mais curioso à situação. André Ventura, 28 anos, nasceu e cresceu em Grândola, vila alentejana conhecida pela sua ligação ao antifascismo.

O pai, Nelso Ventura, sempre esteve ligado à política local e, por isso, Ventura cresceu a ouvir falar de comunismo, da ditadura e da revolução. Foi logo na adolescência que seguiu os passos do progenitor e iniciou caminho na política, participando em eventos do Partido Comunista Português em Grândola. Conhecido na terra e no partido, quando começou a trabalhar, foi convidado a integrar a lista candidata às eleições da Assembleia Municipal. Foi eleito para segundo secretário e, reeleito, está agora no segundo mandato.

Apesar de pouco conhecido, este André Ventura configura o espectro político contrário ao (mais) conhecido André Ventura, do partido Chega, de extrema-direita. “O nome é o mesmo, mas a ideologia não podia ser mais contrária”, resume o também engenheiro informático.

Apesar da vida na política, André Ventura, este, diz não ambicionar chegar ao panorama nacional. “Sirvo de Grândola para Grândola”, afirma, não configurando que uma subida no partido ou nos quadros políticos esteja nos seus planos.

“O bom e o mau”

Apesar da coincidência no nome e da antagónica posição no quadrante político, André Ventura nunca pensou utilizar outro nome. “André Ventura há o bom e depois há o outro. Não há como fazer confusão.” Mas, apesar da convicta distinção de valores entre os dois, há uma outra coincidência (para lá da identificação no cartão de cidadão): o clube. E foi por aí, aliás, que as brincadeiras entre amigos começaram.

Fervoroso adepto do Sport Lisboa e Benfica, foi por volta de 2015 ou 2016 que os comentários começaram a chegar. Primeiro, por parte dos amigos. André Ventura, do Chega, era na altura comentador desportivo num canal de televisão e um fã assumido do clube encarnado. André Ventura, do Partido Comunista, estava a começar a sua carreira na política. A associação foi automática. À época, ainda sem referências ideológicas. “Olha, estás na televisão.” “Hoje não vais analisar este lance?” “Diz lá porque é que ontem consideraste aquilo falta.” Repetiam amigos, conhecidos e colegas de trabalho cada vez que André Ventura (o mais conhecido) aparecia a falar sobre futebol.

O informático e político do Partido Comunista André Ventura
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Mas, com o avançar do drama político, também os comentários se foram adensando. Agora, até desconhecidos fazem notar a coincidência. “Quando quero marcar um exame médico, uma mesa num restaurante ou sempre que digo o meu nome por telefone, do outro lado há alguém que pergunta: ‘André Ventura? Ouvi bem?’.” As reações são variadas. “Se marco algo em meu nome e quando chego a pessoa percebe que não é o tal André Ventura a maioria fica aliviada, mas também há aqueles em que noto uma ponta de desilusão.” Se por querem idolatrar ou confrontar o cabeça da extrema-direita portuguesa, não sabe.

Reações há muitas

Mas há uma história em particular que se recordará para sempre e, hoje, rende sempre entretenimento entre amigos. “Há uns tempos telefonei para uma pizaria para fazer uma encomenda para levar e, quando disse o meu nome, do outro lado responderam-me: ‘se és quem eu estou a pensar, escusas de vir aqui buscar a piza, porque eu recuso-me a atender-te’.” Um momento de tensão. “Não te preocupes, não é esse, é o outro”, ripostou. “E acredito que isso seja o que muita gente tem vontade de dizer quando ouve o meu nome para alguma marcação.”

Mas a verdade é que a repetição constante de comentários levou a que, agora, evite dar o nome quando não é necessário. “Se quero fazer uma encomenda para levantar ou se quero marcar uma mesa, deixo o nome de um amigo que também vai ou da minha mulher.” Não que fique incomodado com as comparações, porque não as há a fazer, garante, mas, às vezes, prefere não ter de explicar.

E, mais do que explicar ou ouvir os comentários de sempre, prefere fugir ao assunto política, “sensível quando se conhece alguém pela primeira vez”, sublinha. Para sustentar o argumento, recorda o par de vezes em que acabou por ter conversas desagradáveis com pessoas acabadas de conhecer. “Só e apenas porque disse o meu nome.” O simples ato de se apresentar leva a que haja comentários (quase) automáticos à atuação política do líder do Chega, o que já lhe valeu, a André, o informático, ficar a perceber de imediato que alguém é apoiante do partido de extrema-direita. “Quando posso, se ainda não conheço alguém muito bem, prefiro não dizer o apelido.”

A piada que não faz rir

Tal como a André Ventura, cujos pais nunca tiveram oportunidade de antecipar a coincidência de nomes, Sérgio Conceição não foi um homónimo planeado. Militar da Guarda Nacional Republicana e também fotógrafo, dispensava a confusão.

Não gosta das perguntas e dos comentários. Não que haja dissonâncias ideológicas ou futebolísticas profundas, mas por um simples facto: não gosta de desporto. “Podiam confundir-me com qualquer outra pessoa famosa, mas um futebolista? Não é minimamente interessante.” Na verdade, aborrece-o, já que considera que “ganham demasiado para aquilo que fazem”.

Sérgio Conceição, que dispensava a coincidência de nomes com uma figura do futebol
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Sem simpatia pelo futebol, conhece a figura, “mas só de passagem”. “Mais no início da sua entrada como treinador do F. C. Porto, havia algumas brincadeiras de amigos e conhecidos”, mas nada que não passasse rapidamente, face ao descontentamento do homónimo com o tema. Tal como os mais próximos, no trabalho, “pela farda, talvez , que impõe algum respeito”, nunca ouviu “nenhuma boca”. “O máximo que ainda acontece é ouvir num restaurante ou numa marcação: ‘E é o treinador de futebol?’.” Ao que Sérgio Conceição, de 38 anos, prontamente responde que não. Sem risos nem piadas.

“Conceição” vem do pai, José Conceição (nome coincidente com o do filho mais novo do treinador do símbolo azul e branco). “Sérgio”, atira, “não tem qualquer história ou explicação”. Do lado contrário está Simone de Oliveira, cujo nome foi atribuído à jovem espinhense com uma quanta consciência.

Coincidência ou propósito?

“A minha mãe diz que escolheu o nome à sorte, mas eu acho que não porque ela tem três Simones que admira e, ainda que inconscientemente, terão servido de inspiração.” Fala da própria Simone de Oliveira, de quem já falamos, e por quem os pais e os avós da jovem Simone nutrem uma admiração imensa. Mas há mais. E mais uma Simone de Oliveira. Mas, esta, brasileira e conhecida apenas pelo nome próprio. Há ainda a admiração da mãe por Simone de Beauvoir, escritora, filósofa, ativista e feminista. Aqui, a coincidência fica-se pelo “de”, ainda que Simone, a educadora social, considere interessante “quantas histórias incríveis cabem num só nome”.

No campo das coincidências de nomes, é fácil dar azo a uma qualquer inventiva teoria da conspiração, já que a prática não é nova. Pelo menos nos Estados Unidos. Que o diga Anne Hathaway, a atriz norte-americana que tem o mesmo nome que a mulher do poeta William Shakespeare. Pela Internet, é possível ler posts e comentários que chamam a atenção para a coincidente aparência – não só de nome, mas física – das duas Anne. No caso, com uma ilustração que se pensa ter sido a Anne de que falamos referente ao século XVII.

Mas as curiosidades não se ficam por aí. Muitos referem ainda o quão parecidos são o próprio Shakespeare e o marido de Anne Hathaway, Adam Shulman, suspeitando que o casal se trata de uma reencarnação ou de viajantes no tempo à procura do amor vivido quatro séculos antes.

No entanto, seja por uma teoria que nos faz rir ou por um comentário que destaca uma coincidência (quase sempre) engraçada, viver com o mesmo nome do que uma figura pública é, nas palavras de Simone de Oliveira, “uma sombra para a vida”. E, no seu caso, uma boa sombra.