Marie, a heroína de uma geração

Um milhão de seguidores nas redes sociais e um “Big Brother” a fazer dela estrela de televisão. Maria Manuela, nome de batismo, é um verdadeiro fenómeno que grita liberdade. O cabelo colorido, as roupas excêntricas, a vida ao lado das ovelhas. Acabou de lançar um livro autobiográfico onde atravessa as dores de uma infância escura. E mantém um só sonho: ser artista.

São 16 horas de uma segunda-feira, Marie está sentada às portas do talho do pai que anda desenfreado a atender a clientela. Casaco com pelos rosa, botas azul elétrico, uma mala em forma de galinha, cabelo colorido. A Maria Manuela de batismo, que na pandemia começara a publicar vídeos no TikTok com a sua ovelha de estimação Sol – entretanto falecida, diz-se que pela dor da distância da dona que por uns tempos migrara para a capital -, é um fenómeno na Internet. Mais de um milhão de seguidores, caso sério de popularidade. Mas ali sentada no talho volta a ser a Nelinha, pela voz do pai Martinho, essa menina da Estela, aldeia tão perto do mar da Póvoa de Varzim. E atira num ápice sobre a mala peculiar: “Gostava também de ter uma em forma de ovelha, há uma de uma marca, mas é estupidamente cara”.

Enfiam-se os dois, ela e o pai, na carrinha do talho e aceleram até à casa onde Marie (assim se quis chamar quando entrou no mundo das redes sociais, porque sempre quis falar francês) nasceu, cresceu e ainda vive, depois de muitos vaivéns. Calça as galochas para ir ao campo, ali mesmo nas traseiras, onde se esconde um cavalo, cães e ovelhas, muitas, para cima de 30. Duas delas acabadas de nascer, ainda bebés. “Às vezes são rejeitadas pela mãe e aí posso adotar”, comenta. Fala acelerada, atropela-se para conseguir dizer tudo o que lhe corre na cabeça a mil à hora. A meia dúzia de passos, avistam-se uns anexos que Marie transformou em casa. Na casa só dela. Uma cozinha, uma casa de banho, um quarto. Não há um único espaço branco aqui. Tudo pintado, do chão ao teto. De azul, amarelo, rosa. Autênticas obras de arte, criadas pelas mãos da própria, a morar nas paredes. Demorou “uns dois dias” a pintar tudo. “Sou compulsiva, não consigo dormir até acabar.”

Marie reconhece: “Quando saí [do “Big Brother”], percebi o quão fechado é o nosso país. Que afinal não é só a minha aldeia. Foi um choque”
A história até aqui de uma influencer que nunca o quis ser é longa, feita de curvas e contracurvas, de dores, de uma depressão, de distúrbios alimentares, de preconceito, de uma infância ingrata para quem ousou fugir à norma. Acabou de fazer 21 anos. Foi a primeira vez que fez uma festa de aniversário. Porquê? “Não penso muito nisso. Não me lembraria que fazia anos se ninguém me tivesse lembrado.” Na pequenez da idade ergue-se uma “heroína”, “símbolo de uma revolução fundamental”, como o escritor Valter Hugo Mãe atesta, que acaba de lançar o livro “La Vie de Marie”, da editora Contraponto, em jeito autobiográfico. Um murro no estômago. Lá iremos.

Do TikTok para o “Big Brother”

Os primeiros passos nas redes sociais começaram no YouTube e no Instagram. O TikTok veio depois, era só para guardar vídeos dos anos pandémicos que a memória do telemóvel já não aguentava. “Foi um acidente. Até hoje não percebo muito bem o TikTok. O que notei é que ao produzir conteúdo dentro do meu mundo, as pessoas veem uma escapatória para serem o que elas quiserem. Por exemplo, onde eu moro pinto tudo. E as pessoas se calhar também gostavam de fazer isso.” É magnética, atrai público. Tem seguidores portugueses, brasileiros, de outros cantos do Mundo.

Do TikTok saltou para o “Big Brother Famosos”, no início do ano. Não foi decisão difícil. Estava em casa, no sofá, a ver um reality show japonês, quando o telemóvel tocou. “Sei que existe um preconceito. Mas há tantas pessoas que consomem e nós somos o que consumimos. Pode parecer parvo, mas via aquilo um bocado como um retiro. A verdade é que é superinteressante a nível pessoal. Não ia ganhar mais se tivesse recusado e ficado em casa.”

“Entre a depressão e um distúrbio alimentar há muito mais vazio e tristeza num distúrbio alimentar. E sei que a depressão é muito má”, assegura a jovem de 21 anos

A sinceridade desarmante, a postura desassombrada e o aspeto excêntrico conquistaram a admiração de boa parte do público – e o ódio também. Virou estrela de televisão. “Mas quando saí, percebi o quão fechado é o nosso país. Que afinal não é só a minha aldeia. Foi um choque.” Ainda recebe mensagens de ódio. A chamar-lhe de lixo, de aberração, a ameaçá-la com violência, que parecem ser sempre mais ensurdecedoras do que as de amor. E essas também as recebe, de crianças e jovens, às centenas, que aspiram ser tão livres quanto ela, tão coloridos quanto Marie, tão despidos da opinião dos outros.

Marie foi para dentro de uma casa vigiada por câmaras a toda a hora na esperança de se encontrar, sem preocupações externas. A experimentar looks fora da caixa. A vestir rosa-choque, verde -alface e tudo o que sempre quis. Chegou a ir vestida de orquídea para uma gala, coberta de manchas vermelhas na cara e com um ramo de flores na cabeça. “Nem acredito que tive coragem. Ao mesmo tempo, fico feliz. Vou morrer, independentemente da idade em que isso aconteça, e já fiz isto.” Isso e um livro, que acaba de lançar e que carrega tanta dor como cor pelas páginas que ilustrou. Escreve desde catraia. Quis fazer o livro pela pressão que carregou depois de voltar ao mundo real, quando saiu da caixa da televisão. Contar a sua verdadeira história. “É um desabafo, um diário de sentimentos, uma partilha. Tem alguns poemas que escrevi na minha infância. E também quis escrevê-lo por ser algo material, hoje somos muito digitais e acho que é importante alguma matéria.”

A infância, a depressão, os distúrbios alimentares

“Pergunto-me quem sou eu.” Arranca assim o “La Vie de Marie”. E a miúda que andava no 7.º ou 8.º ano – há uma névoa no tempo da infância que lhe dificulta a precisão temporal -, que decidiu que toda a sua roupa era uma seca e que o armário da avó era mais divertido, estava exatamente na mesma busca. “Não sabia mesmo quem era. Porque não tinha hipótese de pensar sobre o que era. Tínhamos que ir à missa, que vestir umas calças de ganga. Não sabia sequer que podia vestir-me como queria. Quando percebi que podia, que não tinha que usar só o que as pessoas querem que use, que não tinha que ser como as pessoas querem que eu seja, passei a pensar realmente no que queria usar.” A mãe tentava deitar-lhe a roupa ao lixo, pela vergonha. E a raiva consumiu-a, “porque não via mal naquilo”. Mesmo que soubesse parecer ridícula, sempre foi ensinada a ir à missa e a respeitar o outro. “Não entendia o porquê de não poder ir vestida como quisesse. E a partir do momento em que sou eu mesma parece que já não sou bem-vinda. A partir daí comecei a questionar tudo. Tudo parecia cinzento. Ninguém à minha volta fazia o que realmente pregava. Parecia tudo um teatro.”

Chegou a rapar o cabelo às escondidas, o mesmo que tantos lhe elogiavam. Além de escrever, Marie pintava quadros desde garota. “Mostrava às pessoas e era sempre o meu cabelo que elogiavam. Ninguém queria saber do resto.” Fartou-se, estava no Secundário (num curso de artes frustrado), na altura em que começou a enfiar-se para dentro. “Até então, usava uma capa de miúda extrovertida na escola, embora me sentisse extremamente sozinha e triste. Toda a gente achava que tinha muitos amigos. Era a rapariga feliz, que falava muito alto. Uma personagem que criei porque não queria que as pessoas descobrissem o que realmente sentia.” Só que no Secundário já nem forças tinha para vestir a personagem. “Já não queria esforçar-me para parecer o que não era.”

Marie com o pai

Pela aldeia soavam histórias cruéis sobre a Nelinha. Andava na droga, parecia uma sem-abrigo, dizia-se. Pelo aspeto diferente. “Nunca soube se o povo realmente falava ou se essas histórias eram uma projeção das pessoas que me queriam mudar, que me diziam que toda a gente falava mal de mim para eu ter medo e efetivamente mudar.” A miúda cheia de receios, que passava a vida a rezar e que nem se arriscava a sair da escola nos intervalos para ir à loja das gomas no 5.º ano, nunca foi capaz de compreender o preconceito. “Sentia muita revolta, não queria mesmo existir. Era superdepressiva. E passei anos neste círculo vicioso. A dor era tanta que eu era só nada, um vazio constante.” Quis deixar de ser boa aluna para não dar essa felicidade à mãe. “Era tanta a preocupação com a aparência que sentia que nem isso merecia. Nunca tive suporte.”

A depressão andou de mãos dadas com Marie a vida toda. E os distúrbios alimentares vieram a reboque. Viveu os extremos. De quem não comia em casa dos pais para quem viveu num quarto em Lisboa e começou a comer compulsivamente toda a comida dos colegas de casa. Aí, a comida virou refúgio. “Os distúrbios alimentares eram o reflexo de traumas. Entre a depressão e um distúrbio alimentar há muito mais vazio e tristeza num distúrbio alimentar. E sei que a depressão é muito má. Foi diagnosticada durante anos. Desde que me lembro, de que tenho memórias, que sofro de depressão.” Não se conhecia de outra forma até há pouco mais de um ano, quando se libertou. Pacificou-se nos últimos tempos.

Não sem muitas lutas pelo caminho. De uma infância fechada na gaiola do percurso casa-escola-talho. Do dia em que a Polícia bateu à porta de casa da família, entre pais desesperados por mais não saberem fazer, e Marie, ainda menor, acabar a ir viver uns meses com a tia. De quando fugiu de casa, por mais de uma vez, para ir viver numa comunidade hippie. O pai foi sempre buscá-la, salvá-la da revolta, num amor que não cabe nestas páginas. Chegou a ouvir das gentes: “A realidade seria melhor se não existisses”. Hoje, entende melhor.

Lisboa, o sonho que não chegou a ser

Voltemos ao TikTok. Os seguidores fiéis desafiaram-na a rumar à capital, “era onde estavam as oportunidades”. Nunca tinha tido muito contacto com a cidade nem sequer com a vida noturna. “Nunca tinha saído à noite, descobri esse mundo lá.” Mudou-se para um quarto em Lisboa, com a desculpa de que ia para a faculdade – não chegou a ir. Tinha 18 anos, prestes a chegar aos 19, ainda antes de entrar pelas televisões adentro. Mas o sonho virou desilusão. “Não me consegui identificar com ninguém da minha idade. Percebi que vivem tanto de aparências como aqui, na aldeia. E achei que eram mais desconectados. Tudo é muito rápido, parece que nunca há tempo. Há pessoas interessantes, porque há mais pessoas. Mas é tudo muito comercial, superficial, falso.” Caiu num poço sem ter quem a agarrasse. Andou descalça pelas ruas. Experimentou cogumelos, erva, a compulsão alimentar, tentativas de suicídio, enquanto tentava manter em alta o algoritmo das redes sociais. Reergueu-se. A Nelinha – que quer muito deixar de o ser, porque associa o nome a todos os que não a querem deixar crescer – regressou então à terra natal. E agora pinta os sonhos com todas as cores do arco-íris.

É vegan, hoje, apesar de fugir a sete pés de rótulos e de não ser extremista. Não faz a depilação, mesmo tendo sentido a pressão quando andava na natação na adolescência. E os pelos são um tópico de conversa que a diverte. “Acho que isso ser tema é cómico. Sei que, esteticamente e tendo em conta a forma como fomos educados, vamos achar sempre mais atraente uma pessoa sem pelos. Mas a questão é que não quero ser atraente. Nunca quis. Só quero ser artista.” Não chegou a fazer a ambicionada licenciatura em artes, mas tem os planos arrumados. Quer restaurar a antiga vacaria de casa para fazer um estúdio. Começar a produzir cerâmica, a pintar em tela, escrever mais livros, aprender com uma costureira para lançar as próprias peças de roupa. E vender todas as obras na sua loja online. “Nem tudo tem que ser objetivos grandiosos. As pessoas têm a ideia que de repente és famoso e tens que ter uma casa XPTO. Gosto de morar aqui e gosto de criar aqui.”

Valter Hugo Mãe, autor do prefácio do livro “La Vie de Marie”, escreve que Marie é uma “dessas figuras raras que podem inspirar uma geração inteira para que passe mais perto dos sonhos”. Um exemplo urgente de despadronização, com um “papel de importância incalculável para todos nós”, perante a “violência, que se normalizou a partir das redes sociais”, essa “sociedade de juízo imediato, desinformada e reativa ao segundo” que “favorece que ninguém se queira destacar senão pela mimetização de algo que já deu certo”.

Afinal, quem é esta rapariga e porque está assim vestida? A pergunta é de Virginia López, jornalista que Marie conheceu dentro da casa do “Big Brother” e que colaborou na escrita deste livro. Uma obra que López resume ser “manual de liberdade e amor-próprio”.

Marie não teve coragem ainda de o voltar a ler. “Sofro muito da síndrome de impostor. Acho que as coisas que faço nunca são boas. Que a pessoa que era quando o escrevi já não sou agora.” Cresceu a sonhar ser amada. Já é, por milhares. A sonhar gostar de viver. Já gosta. Só ainda não sabe quem é. “Acho que ninguém sabe. Sou uma constante mutação. Uma metamorfose.” Como diz Virginia, o Mundo foi, tantas vezes, “demasiado cinzento para uma alma cheia de cores”. E Marie decidiu vesti-las e pintá-las. A verdade é que nem tudo foi preto até aqui, garante ela. “Porque nem tudo é preto e branco. Existem sempre tons de cinza mesmo na escuridão.”