Há um novo pai que é grua, escadote e cabide

Anselmo Hernanz, empresário da indústria cerâmica, vê nos filhos gémeos, Felipe e Adriana, de 13 anos, a sua maior realização (Maria João Gala/Global Imagens)

A evolução social explica, em parte, a mudança de perfil dos progenitores. Hoje, são mais atentos e disponíveis, envolvidos e interessados no dia a dia dos filhos, querem estar presentes e transformam-se no que for preciso. Uma escolha que traz benefícios para todos, a curto e a longo prazo.

Anselmo Hernanz assume que é pai-galinha dos filhos gémeos, Felipe e Adriana, de 13 anos. É o encarregado de educação na escola, já foi presidente da associação de pais no 1.º Ciclo, agora é vice da do liceu, gere boleias dos treinos e dos jogos de basquetebol dos filhos, quem leva, quem traz. “E fico todo contente com isso”, garante. Às sextas-feiras, em tempo de aulas, organiza o seu dia de trabalho, como empresário da indústria cerâmica, para estar à porta da escola e levar os filhos e um grupo de colegas a almoçar a uma pizaria. Ele e mais 16 miúdos a pé, em excursão, até ao restaurante numa animação constante. Uma refeição que lhe sabe pela vida. “Vale muito mais do que uma lagosta no melhor restaurante do Mundo.” Quando a escola começar, é sagrado: piza às sextas-feiras ao almoço.

Alberto Castelo, produtor cultural, é pai de duas meninas gémeas, Sofia e Clarinha, de seis anos. Sofia passou vários dias no hospital depois do nascimento, Clarinha veio primeiro para casa, foi preciso gerir tempos e rotinas. Logo que pôde deu o primeiro banho à Clarinha, ainda no hospital. Mudar fraldas nunca foi um problema. Tratar de biberões também não. Tudo natural, portanto. Agora contam-se histórias antes de adormecer, acompanham-se brincadeiras, passeios de bicicleta, atividades artísticas e de lazer, a natação, tenta-se que se vistam sozinhas, que ganhem autonomia. É um trabalho a quatro, a oito mãos. Alberto é o tipo de pai que gosta de fazer acontecer, tenta estar presente em tudo, em todos os passos, na azáfama entre escola e casa e todos os outros lugares. “O trabalho é exponencial, a felicidade é a dobrar”, confessa. É outra forma de sentir, é outra forma de olhar a vida. “É uma oportunidade que temos, é uma oportunidade única.”

Isabel Minhós Martins, designer de comunicação, uma das fundadoras da editora Planeta Tangerina, escreveu “Pê de Pai”, Prémio Nacional de Ilustração em 2006. O pai do seu livro dobra-se, encolhe-se, estica-se, desdobra-se, transforma-se num cabide, num avião, num sofá, num escadote, numa grua, num esconderijo, num trator. As ideias, como esta, surgem-lhe em momentos inesperados. Estava a estender a roupa e o filho mais velho, ainda pequeno, passou por baixo das suas pernas. Imediatamente, pensou que era uma mãe túnel. “Como o meu corpo se adapta e se transforma, os dedos podem ser um pente, a mão uma tesoura, o corpo uma cadeira.” E pensou num livro. “Havia muitos livros sobre mães, o papel das mães, a relação mais física com os bebés. Pensei que era importante haver um livro sobre os pais”, recorda a autora. Os pais que fazem parte de um triângulo, não como espectadores de uma cultura machista. “A mãe estava em casa, o pai ia trabalhar, e era o pai que ralhava ao final do dia.” Tudo mudou. “Há uma sobrecarga das mães, mas não se compara com o que acontecia há uns anos”, constata a autora que tem livros premiados e publicados em vários países. “Não caminhamos todos ao mesmo tempo, já há famílias que partilham tarefas e preocupações. O caminho é para haver essa partilha e nas novas gerações isso já acontece”, observa.

Alberto Castelo, produtor cultural, é pai das gémeas Sofia e Clarinha. Faz todos os dias a ginástica possível para lhes dar todo o apoio (André Gouveia / Global Imagens)

O prazer de cuidar
O conceito de família mudou, acompanhou mudanças sociais, culturais, políticas e estruturais que levaram às transformações visíveis no papel da mulher e do homem, da mãe e do pai, do lugar e dos direitos das crianças. São alterações profundas a vários níveis: na conjugalidade, na escolha livre do casamento, no direito ao divórcio, na independência económica da mulher, na maior divisão de tarefas domésticas e familiares, na licença de paternidade.

“A parentalidade é hoje mais consciente na nossa sociedade, muito mais uma escolha dos homens e das mulheres e, como tal, mais frequentemente temos pais (e mães) mais envolvidos, mais conscientes e implicados no seu processo de parentalidade”, refere Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica, que desenvolve a sua atividade com crianças e adolescentes, com pais e educadores, autora de vários livros, como “A psicóloga dos miúdos”. “Não é assim em todo o lado, mesmo na sociedade ocidental, ainda há muitos desequilíbrios no papel da mulher e do homem nas várias dimensões, onde a parentalidade não é exceção”, ressalva.

Há muitas formas de ser família e a tradicional não deixou de existir. Só que agora o olhar é outro. “Temos na nossa sociedade mais famílias com pais presentes, que participam. Já não há uma distinção tão marcada de papéis por se ser mãe ou pai”, sublinha Rita Castanheira Alves.

Mário Cordeiro, pediatra, autor de várias publicações, viu e vê essas mudanças a acontecerem à frente dos seus olhos. “Muitos pais descobriram, e muitos outros perderam a ‘vergonha’, do gozo de serem pais, de se empenharem ao máximo, de usufruírem da companhia dos filhos e do prazer de cuidar deles e de os ver crescer, bem como de deixarem fluir a sua vertente maternal e sentimental.” Pais mais abertos, mais disponíveis para ouvir, mais recetivos e envolvidos no quotidiano e nos problemas dos filhos. É o que vê no dia a dia como pediatra. “Não sendo o meu consultório uma amostra significativa da população, constato, todavia, que os pais vão a todas as consultas, incluindo as pré-natais ou de aconselhamento, e muitas vezes até apenas eles, sendo eles que despem e vestem as crianças, ou brincam com elas, fazendo tantas perguntas como as mães”, diz.

Inês Afonso Marques, psicóloga clínica há 17 anos, na direção da área infantojuvenil da Oficina de Psicologia, vê exatamente o mesmo, quer em contexto de consulta, quer em contexto de formação. “Na generalidade dos casos, os pais estão presentes e interessam-se pelos temas dos filhos de forma equiparada à das mães.” Seja como lidar com birras, dificuldades em dormir, ansiedade, seja como comunicar com os filhos ou como estimular a sua confiança. “Observo pais que, no quotidiano, apoiam no estudo, acompanham as atividades extracurriculares, são confidentes dos filhos, estão presentes em momentos significativos, pais que brincam, que dão banho, que vestem. Pais presentes nas minhas consultas.” Ao longo dos anos, aponta, foi conhecendo pais atentos, disponíveis, participativos, envolvidos e interessados.

Vivências e experiências
Anselmo Hernanz geriu expectativas, memórias e sentimentos. Recua ao passado e lembra-se de o pai o levar a pescar e de detestar e do primeiro jogo de basquetebol a que o seu pai assistiu, já Anselmo tinha 16 anos. “É um equilíbrio entre o que sonhamos quando tivermos filhos e aquilo que eles realmente gostam e querem fazer”, indica.

Tenta, ao máximo, passar tempo com os filhos nas rotinas e no lazer. Ir de bicicleta até à praia, jogar basebol ao pé do mar e basquetebol no jardim de casa. Felipe e Adriana participam em algumas decisões familiares, resolvidas em conjunto, seja na compra de um carro, seja na escolha do destino de férias. Memórias que ficam para sempre. “É uma riqueza mais importante do que a camisola de marca ou do que o telemóvel mais recente”, frisa Anselmo. “Todos nós queremos o melhor para os nossos filhos, uns acham que é uma coisa, outros acham que é outra. Providenciamos o melhor que podemos. Mais do que coisas, experiências. São as vivências que lhes podem dar experiências.”

Em casa de Alberto Castelo, há tempo para inventar, dar asas à imaginação nas artes manuais, cadernos onde riscar, papéis, lápis, marcadores. O produtor cultural gere o seu tempo para estar presente na vida das filhas. Quando olha à volta, vê outros pais assim, com a mesma postura, com a mesma vontade. “Cruzo-me com bastantes pais na escola, na piscina. Já não há essa coisa de atividade de pai e atividade de mãe.” Ser pai sem hora marcada, ser pai em todos os segundos. “É uma coisa fantástica e difícil de descrever. Ser pai sente-se e é uma bênção, é não ter medo, é dar o nosso melhor todos os dias”, realça.

Anselmo Hernanz di-lo com todas as letras. “Ser pai é a maior realização da minha vida, é a melhor coisa do Mundo. Ser pai é estar presente, é eles saberem que gostamos deles incondicionalmente. Tudo o resto é consequência disso.” Lá em casa, não abdica da hora de jantar, que nunca tem hora certa por causa dos treinos de basquetebol. “O jantar é sagrado, os quatro à mesa para conversar, para saber o que se passou durante o dia.” Uma rotina saudável para falar de tudo. “Temos esse espaço só nosso e programado. É o nosso espaço.”

Pais mais modernos e mais ligados ao dia a dia dos filhos? Sim. E há vantagens que assim seja. Rita Castanheira Alves adianta que há estudos que mostram benefícios. “Um pai mais consciente, envolvido, mais presente, que quer, mas também que pode participar, que cuida, permite à criança aceder a um modelo importante para o seu crescimento e desenvolvimento enquanto pessoa, nomeadamente na construção dos seus modelos de género”, sustenta a psicóloga clínica. “Pelo exemplo, o pai que cuida, que faz tarefas em casa, que expressa livremente as suas emoções, incute nas crianças a noção correta de que não há tarefas de homem ou tarefas de mulher, ou que ‘os homens também choram’”, acrescenta. O companheirismo no exercício da parentalidade é importante, pelo apoio, pelo suporte, por uma educação mais consistente e equilibrada. O que tem efeitos positivos no desenvolvimento saudável dos filhos e na felicidade do pai e da mãe.

Pais presentes, crianças mais felizes e estruturadas. Mário Cordeiro não tem dúvida que assim é. “Os pais são tão importantes como as mães no processo de crescimento e desenvolvimento das crianças, na formação de adultos, pessoas e cidadãos mais livres e melhores.” Pais de corpo e alma e coração cheio. Sem as ausências do passado.