Generosidade em contexto de guerra. Como ajudar com eficácia?

Portugueses têm-se mobilizado para enviar roupa, comida, medicamentos e outros bens para ajudar os refugiados da Ucrânia

Dar é um gesto de amor que não deve enredar-se em ações desorganizadas e em atitudes impulsivas. O que faz sentido num país, não faz noutro. O transporte de bens pode ser uma despesa pesada. Ajudar, sim, com o coração e com a cabeça.

Todos querem ajudar no atual contexto de emergência humanitária da guerra na Ucrânia. A mobilização é global. Promovem-se concertos solidários, enchem-se carrinhas de roupas, alimentos, material hospitalar, que partem cheias e voltam com refugiados. Fazem-se campanhas, angariam-se bens, mobilizam-se voluntários. Estaremos a ajudar como deve de ser? A boa vontade não chega e a impulsividade não é boa conselheira. É preciso coordenação, perceber como o processo solidário funciona, questionar o que não se entende, dar meios e recursos a quem está no terreno, às organizações que sabem a real proporção das necessidades. Dar bens com peso e medida. Doar dinheiro a instituições de confiança.

Gustavo Carona é médico, participou em missões humanitárias em zonas de carência extrema (Sudão do Sul, Afeganistão, Síria, República Centro Africana, Iémen, Faixa de Gaza), representou os Médicos Sem Fronteiras, Médicos do Mundo, Cruz Vermelha Internacional. “Ajudar é ter plataformas de sustentação e de justiça social”, refere. As estruturas das Nações Unidas e as organizações não governamentais (ONG) fazem esse trabalho no terreno com “reflexões maturadas e experiência seja na medicina, no ensino, na autonomia económica, na sustentabilidade.” Ajudar, sim, mas através de instituições que sabem como fazer. “O principal foco da nossa atenção tem de ser nas organizações que têm uma capacidade de intervenção muito forte e sabem a proporcionalidade das necessidades.” E há uma imagem que puxa para a conversa. A melhor forma de combater um incêndio é dotar os bombeiros dos recursos de que necessitam, em vez de cada um de nós tentar apagar o fogo com copos de água.

Rui Marques, presidente do Instituto Padre António Vieira, mentor e impulsionador da PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados, que coordenou durante anos, envolvido em missões de paz e em políticas de acolhimento e integração de imigrantes, saúda o “sentimento solidário das pessoas e das comunidades” perante situações humanitárias extremas. A questão é saber como ajudar e aprender com a experiência. “É preciso somar à emoção razão nos processos solidários”, alerta. Ajudar com o coração e com a cabeça. Ajudar com inteligência e eficácia.

O envio de bens alimentares, em alguns contextos, não faz sentido. “Muitas vezes, os custos de transporte e a logística são muito superiores ao valor dos bens e desperdiçam-se recursos. É mais racional fazer um donativo em dinheiro para que se comprem esses bens nos mercados locais”, avisa Rui Marques. “Sempre que desenvolvemos um processo de doação, vemos que a maior parte dos bens são inúteis no sentido que são bens desajustados”. Como, por exemplo, roupas para libertar armários, brinquedos que já não funcionam ou objetos em mau estado que iam para o lixo. Não é dar sem ver o quê e sem olhar a quem.

Em relação às instituições, diz Rui Marques, “é preciso ter em atenção a credibilidade que oferecem, uma grande transparência nos processos, que os recursos financeiros sejam aplicados 100% em benefício de quem precisa e não fiquem pelo caminho em despesas que podem ser poupadas”.

Um camião que sai de Portugal para a Ucrânia com roupa de criança pode não fazer sentido. O frio de lá não é o de cá, a cidade pode não ter muitas crianças, o vestuário não é adequado. Uma carrinha com remédios tem de ter à chegada pessoas que percebam português ou inglês e que saibam como usar essa medicação que, na dúvida, acaba por não ser utilizada. Além disso, a triagem de bens exige recursos que, muitas vezes, não existem.

Perceber necessidades, atuar com impacto

Portugal surge em 35.º lugar no Good Country Index que mede, numa lista de 125 países, o quanto cada se contribuiu para o bem comum da humanidade. Num índice mais específico de ajuda social local, de proximidade, Portugal fica pelo 88.º lugar. Outros dados mostram que cerca de 10% da população portuguesa está envolvida em atividades formais de voluntariado, enquanto a média europeia é o dobro, no norte da Europa mais do triplo.

“O comportamento de uma sociedade, de um país, de uma população, depende sempre das suas circunstâncias históricas, políticas, sociais, culturais”, indica Rita Ribeiro, professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Neste momento, a guerra na Ucrânia é uma circunstância que apela à solidariedade. São as informações, as imagens, bombardeamentos, cidades destruídas, gente que foge. “Há uma mobilização quase global. Há um ataque a um país soberano, uma ação militarizada de grande violência, há uma resistência, e tudo isso constrói uma narrativa que leva a uma identificação emocional e tem efeitos na forma como as pessoas se mobilizam.” E todos querem ajudar da forma mais imediata possível.

“As bombas não param, os refugiados não param. Por favor, não pare de contribuir.” Este é o apelo da AMI – Assistência Médica Internacional, ONG portuguesa, que intervém em várias frentes. Neste momento, tem uma equipa na Hungria e outra na Moldávia e as suas estruturas e respostas sociais em Portugal preparadas para o apoio aos refugiados que chegam.

Luísa Nemésio, vice-presidente da AMI, fala em confiança, em credibilidade, em organização e coordenação. É necessário saber o que se passa, as capacidades e necessidades, restrições nas fronteiras, dificuldades em chegar aos destinos. Por isso, antes de tudo, a AMI envia uma equipa exploratória que, entre 42 e 78 horas, vê o que está a acontecer e o que é preciso para atuar com impacto. Só depois é que avança com campanhas de angariação de fundos. Na Hungria, por exemplo, percebeu-se que são necessários medicamentos base, analgésicos e antipiréticos, para as famílias em deslocação na Ucrânia.

Como ajudar? “A melhor forma é, sem dúvida, o donativo em dinheiro a organizações que merecem a confiança das pessoas. É muito importante saber a quem se dá o dinheiro”, responde Luísa Nemésio. Essa ajuda tem de ser coordenada. “É preciso cuidado com a cultura, com os hábitos alimentares, nem tudo interessa para determinados países. O mais importante é fazer chegar a ajuda de uma forma organizada para que os esforços não sejam em vão.” A AMI aceita donativos, recolhe bens perecíveis, está inscrita no programa alimentar mundial. “A vontade é grande e a coordenação é muito importante nestas circunstâncias. Há pessoas extremamente generosas, mas o tráfico de seres humanos existe, é preciso muito cuidado na maneira como se fazem as coisas”, enfatiza a vice-presidente da AMI.

A Unicef, Fundo de Emergência Internacional para a Infância das Nações Unidas, tem espaços seguros, chamados “pontos azuis”, para ajudar crianças e suas famílias na fronteira da Ucrânia, prestando apoio psicossocial, cuidados médicos, registando crianças e lembrando o quão importante isso é (porque há redes de tráfico). Neste momento, tem uma equipa de 140 pessoas na Ucrânia mais 254 nos sete países à volta que atuam em várias áreas: saúde, compra de vacinas, alimentação e água, educação informal, ajuda financeira a famílias em movimento que saíram da Ucrânia sem nada. “Emergência Ucrânia” é uma linha de apoio da Unicef com donativos financeiros, com 15 euros garante-se alimentos a sete crianças durante um dia inteiro, com 55 euros um kit de emergência de água e higiene para uma família, com 75 dois kits de primeiros socorros com medicamentos essenciais.

A Unicef só aceita donativos em dinheiro e todos os fundos são direcionados para uma necessidade específica, para uma resposta definida, para um país em concreto. Não são fundos flexíveis. Não é diferente no caso da Ucrânia. “A Unicef só recebe donativos em dinheiro. Temos equipas no terreno que nos dizem o que é preciso, acionamos as nossas compras, através da central em Copenhaga, e expedimos o que é necessário”, adianta Beatriz Imperatori, diretora-executiva da Unicef Portugal. E assim dá-se resposta a uma lista de necessidades.

Dar, sim, mas com garantias. “O mais importante, seja dinheiro, sejam bens, é saber o que lhes acontece e confiar nas organizações”, realça a diretora-executiva da Unicef Portugal. E perguntar, perguntar sempre, questionar as instituições, saber para onde vai o dinheiro, como vai, como será utilizado. As pessoas que dão precisam de respostas. “Devem fazer todas as perguntas e enquanto não estiverem satisfeitas continuar a perguntar para perceberem como tudo funciona, porque se faz de uma determinada maneira e não de outra”, sublinha Beatriz Imperatori. “É preciso ter a certeza de que o que se envia é o que é preciso e, do lado de lá, se quem recebe vai usar”, acrescenta.

E depois de sair da agenda mediática?

A Cruz Vermelha Portuguesa recebe donativos em dinheiro e bens necessários para ajudar quem chega da guerra na Ucrânia. “O povo português respondeu e responde de forma generosa em dar e tentar ajudar quem necessita. É importante manter a chama viva desta vontade de ajudar a população da Ucrânia e não só – ajudar também outros refugiados que fugiram de outras guerras. Vamos ter necessidade de organizar e manter a ajuda durante muito tempo”, destaca Ana Jorge, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa. Ajudar hoje, ajudar amanhã e depois, e depois de amanhã. “Será uma ajuda que vamos ter de dilatar no tempo.” Sempre de uma forma organizada e coordenada por parte de quem dá, de quem envia, de quem recebe. “Não é fácil, é complexo ser capaz de ver o que é o melhor e como se faz.” Para isso, é preciso ter pessoas experientes no terreno.

O processo solidário não acaba no momento em que se dá. Há etapas, toda uma logística em movimento. O dar, o comprar, o transportar, o distribuir, o entregar. O primeiro impulso de dar alimentos mimetiza, de alguma forma, o que se passa no país, dar pão e sopa a quem precisa enraizada numa visão assistencialista que está a mudar, mas que ainda predomina. A socióloga Rita Ribeiro aponta essa vertente. “Uma visão mais assistencialista talvez marcada por uma certa religiosidade que incide na compaixão e na piedade que podem resolver no imediato, mas não resolvem estruturalmente o problema.” E a Ucrânia é Europa, não está assim tão longe. “Há uma identificação que se faz com os ucranianos que, porventura, não foi feita noutras situações humanitárias de catástrofe, e que não são assim tão distantes, como na Síria e no Iraque”, comenta Rita Ribeiro.

Para Rui Marques, há um duplo trabalho a fazer, tanto do lado das instituições que devem ser transparentes no modo de atuar, como do lado de quem dá, de perceber o que faz sentido doar, a quem o fazer, em quem confiar. A generosidade é um gesto bonito, mas a impulsividade não é boa conselheira. “Receber refugiados em casa. Está mesmo a família disposta a isso, não vai ficar em stress?”, questiona. O primeiro impulso será esse, mas haverá condições, por quanto tempo, a questão da língua, e outros aspetos têm de ser ponderados. Não será melhor um esforço com organizações locais que tratem de habitação autónoma? “É fundamental sermos generosos, sermos emocionais e racionais, eficientes e inteligentes na ajuda.”

E depois de cada situação entrar na normalidade, no corre-corre do dia a dia? Como será quando a guerra acabar, por exemplo? “Um dia, vai sair da agenda mediática, mas vai continuar a ser necessário sermos solidários nessa altura, mesmo que não esteja nas primeiras páginas dos jornais e nas aberturas dos telejornais”, observa Rui Marques. “Temos de saber ser racionais na mobilização solidária e não sermos condicionados pelo impacto mediático.” Seja como for, as organizações continuam o seu trabalho diário em várias frentes, em várias respostas, cá e lá fora. E a generosidade continua a não ter limites, a não ter fronteiras. E fica sempre a pergunta, como lembra Rui Marques. “Como podemos fazer melhor?”