Fernando Alves: “Quero encontrar pessoas que não vão aos telejornais”

Fernando Alves, “o da rádio”, volta à estrada, a percorrer o país à procura de gente e lugares, histórias e notas de rodapé, para o programa que acaba de estrear na TSF - a sua casa de sempre e que ajudou a fazer nascer. Sem destino certo, sem GPS, pelas curvas e contracurvas do caminho, com o gravador que caiu várias vezes e que tem um elástico a segurar as pilhas. Uma conversa que se estende ao ofício, ao que procura, ao que lhe interessa, ao que lhe mexe lá dentro.

Caminha atento a coisas penduradas nas paredes, a apanhar conversas de rua, a tentar perceber sons que o levam às conversas com o pai que identificava todos os cantos dos pássaros quando estavam juntos na horta. Num jardim perto da TSF, em Lisboa, com boas sombras, onde vai e lê, sabe que ali anda um pica-pau que nunca viu. “Já não me interessa tanto perceber que pássaro é dono daquele som, interessa-me perceber que aquele som está a interferir comigo de uma dada maneira”, confessa. O que lhe interessa é a relação com as pessoas, a empatia do encontro.

Qualquer caminho leva a toda a parte, dizia Pessoa. E quem caminha, encontra. “Eu quero encontrar pessoas que não vão aos telejornais todos os dias, que não fazem parte dos bem-vistos da corte.” Estar é ficar e, por isso, a disponibilidade para ouvir, puxar pelos fios dos novelos das histórias, registar com o gravador, modelo antigo, com o qual se entende muito bem, elástico a segurar as pilhas devido a várias quedas. Parte sem GPS e pergunta porque quer saber de caminhos. Quanto mais disponível para ficar sentado a meter conversa, melhor.

São os invisíveis quase escondidos, formidáveis no seu saber, generosos no conhecimento, que lhe interessam. “Pessoas que acrescentam alguma coisa à nossa vida, quando nos cruzamos com elas, e têm coisas para dizer.” O país, garante, está cheio de gente assim, são diretores de museus municipais, é a senhora que tem a chave da igreja, o senhor que conhece todas as pedras de um castelo. E o único eco que lhe interessa é o da rua. “O meu assunto, há muitos anos, é com essas pessoas, não é com o online, não é com os likes. É com essas pessoas.”

Fernando Alves dorme pouco, muito pouco, lê muito, nunca concorreu a prémios, os que ganhou foram atribuídos por gente do meio. Voz grave, densa, inconfundível, palavras que engatam em palavras. “O da rádio”, como prefere que o chamem. Poeta da rádio, nem pensar, jamais, fica em brasa. Mas admite grande felicidade considerá-lo “uma espécie de parente pobre do Rubem Braga, grande cronista da Língua Portuguesa, o maior de todos.” A rádio é o seu bornal, o seu alimento, a sua paixão. Nunca quis ser outra coisa, nunca quis ser jornalista, sempre quis ser “o da rádio”. Fiel ao ofício, à rádio. Porque a sua história é com a rádio.

Em Braga, um jardim, um tulipeiro, Campo da Vinha, a antiga mercearia da esquina fechou, repara, segue caminho, turistas animados na esplanada da Brasileira, avenida central, igreja dos Congregados, Livraria Centésima Página, onde entra. O olhar recai em três fotografias a preto e branco de uma exposição maior patente na Casa da Torre, em Soutelo, perto de Braga. Pede o contacto e parte à procura do fotógrafo, padre e missionário jesuíta, Paulo Teia. Estrada para Vila Verde, sentido Amares e Terras de Bouro, 500 metros à frente, vira à direita, pouco depois o portão da Casa da Torre, ao fundo – tudo dito e descrito na rádio, as curvas e contracurvas da estrada. Fernando Alves está de férias, não tem gravador, passa duas horas a ver a exposição “Lugares de descanso” à conversa com o seu autor. A ideia para o programa “Onde nos levam os caminhos”, que estreou há uma semana na TSF, está ali, na conversa com Paulo Teia que haveria de acontecer para o gravador algum tempo depois na Brotéria, centro cultural dos jesuítas portugueses, no Bairro Alto, Lisboa.

Paulo Teia acaba de chegar de África e está de partida para Rabo de Peixe, Açores, lugar onde se sente em casa, autêntico e genuíno que o mar não deixa mentir. Gosta de saborear um caminho, andou pela Índia a deambular, encontrar pessoas, sentir modos de vida. Regista momentos com fotografias como as que tirou em Tete, Moçambique, crianças negras sentadas no chão a comer, os mesmos gestos e olhares da última ceia dos apóstolos. É esse o evangelho real que quer contar.

Hoje, domingo, logo depois das 11 da manhã, com repetição na madrugada seguinte e às terças às sete da tarde, o programa “Onde nos levam os caminhos” é com o sociólogo e fotógrafo José Cabrita Nascimento, que vive em Portel e tem muita vida em Évora. Conversa debaixo da grande sobreira, Árvore Europeia de 2022, ao pé da aldeia Vale do Pereiro, antes de chegar a Évora Monte, há um caminho de terra batida que leva a essa árvore. Cabrita Nascimento há de conduzir Fernando Alves a um pequeno botequim de petiscos que o manuseador de marionetas José Alegria tem com a família. Ali se contam, desvenda, “histórias de plateias formidáveis que ele encontrou na vida, o velho da aldeia que se levanta no meio de uma peça de marionetas e que interfere com o enredo.” No fim de cada programa, abre-se uma janela ou uma porta até à próxima pessoa.

O caldo, como lhe chama, para este novo programa tem rasto, parte da viagem de 22 semanas que fez este ano para o seu programa “Viagem a Portugal”, que teve como pretexto o centenário do nascimento de José Saramago e como bordão, aquele pau que serve de apoio para quem caminha, o seu livro “A viagem a Portugal”. Fernando Alves desviou-se do caminho várias vezes e das conversas que gravou sabia, sempre soube, que tinha de voltar, que havia mais a contar pela voz de pessoas que falavam de igrejas românicas ou de lendas de mouras encantadas numa nesga de cinco minutos. “Algumas daquelas pessoas ficaram-me na retina, percebi que teria de reencontrá-las num outro contexto, em que elas fossem o centro da história e, nessa abordagem, eu contaria o caminho que fiz para chegar a essas pessoas e que deveria saber, antes de mais, os caminhos que elas percorreram para serem assim no sítio onde estão e agirem assim sobre o território onde vivem.” O amor à terra, a sabedoria que fica, as memórias que não morrem. Tinha de voltar à estrada. E voltou.

O desalinhamento, o detalhe, a surpresa

“Sinais”, na antena da TSF há mais de 30 anos, a “janela aberta para o Mundo”, às 8.48 horas de segunda a sexta com repetição às 14.10 horas, são crónicas de um minuto – e que deram um livro. Tudo serve de pretexto, o que está abaixo do radar, as entrelinhas da atualidade, o pé de página de uma história, uma notícia que conta o que não é tão óbvio. Interessa-lhe descentrar o foco. “Todos estão a olhar para ali e a perder alguma coisa que está ali ao fundo e que só é menor numa hierarquia de valores que foi estabelecida pelo senso comum, não pelo bom senso, pelo senso comum.” Valorizar o detalhe, desarrumar o alinhamento. “Tenho muito respeito por jornais e por momentos da rádio quando desalinham, quando elegem como lead, ou como parangona, ou como título, alguma coisa que só aparentemente é lateral e que lá no fundo, no fundo, é que é verdadeiramente a coisa importante do dia e que ninguém tinha visto daquela maneira.” Ver de outra forma, destapar camada, desfazer os clichés, os lugares-comuns, as manchetes.

Por vezes, encontra o assunto no próprio dia de manhã quando chega à rádio, outras, faz o esboço na véspera em casa. “Quando ando fora, tenho a vida facilitada porque pinga sempre alguma coisa”, conta. Qualquer coisa pode servir de gatilho para outra coisa que dirá na TSF. “Para um leve que pode ser denso, é isso que eu procuro. Uma certa leveza que não leviana, uma certa leveza que pode, em si mesma, conter alguma densidade ou, se não a tiver, pode estimular conversa apetitosa nos destinatários.”

Há dias em que escreve no fio da navalha, a pisar o risco, mas há lastro das histórias que vêm de trás e que já têm lugar na sua cabeça. “O que menos me preocupa é o tempo que tenho para escrever, mas o tempo que tenho para arrumar as ideias na cabeça.” Tem de ouvir a gravação toda para perceber onde estão as falas, o que vai contar. É outro tempo. É o seu tempo.

A voz grave, muito sua, sai sem técnicas de respiração. O seu modo de dizer as coisas. À sua maneira, ao seu ritmo. “Não sei dançar, mas tenho uma cadência, uma ginga. Se escrevo para a minha ginga, para a minha ideia de dança, para a minha cadência, a coisa mais facilmente funcionará”, conta. A carga poética dos textos resulta das suas leituras, da curiosidade para a surpresa, para perceber sons. Lê muito, de facto, anda à volta de 30, 40 escritores, por vezes pica coisas novas. Este verão, encontrou um romance que o fez estremecer. “Baiôa sem data para morrer”, de Rui Couceiro. Falou dele nas suas crónicas, jovem autor que acredita que vai longe. E desse livro que conta, descreve, “a história de um homem que está a segurar uma aldeia que está a morrer à volta dele e ele recupera as casas que já não são de ninguém”.

“O diagnóstico está mais do que feito. Todos sabemos quais são os constrangimentos à volta da profissão. A minha dúvida é se os jornalistas ainda desejam que seja de outro modo”, afirma Fernando Alves

As voltas que dá e as histórias que encontra. Na viagem aproximada ao percurso de Saramago foi a sítios onde o escritor não foi. Uma viagem livre, portanto, com todo o respeito pelo escritor. “Se passo perto de Gouveia e encontro, por felicidade, a dona Augusta que foi cozinheira de Vergílio Ferreira durante 20 anos, vou lá falar com ela, mesmo que Saramago não tenha passado por lá – e não passou porque entre os dois escritores havia uma reconhecida e recíproca animosidade.” É o caminho largo de Saramago que importa. Se o escritor não foi a Paradela, a aldeia mais a leste de Portugal, Fernando Alves vai lá porque sabe que é a terra do tio Lérias, que fazia as guitarras que Giacometti quis conhecer.” Vai porque sabe que encontra sempre alguém. “O meu anjo da guarda das viagens está sempre lá no sítio, ou muitas vezes está. Ao ir a Paradela eu encontro, no restaurante onde o Saramago foi, um sobrinho do Tio Lérias que me conta coisas espantosas”. Um homem que lhe fala em sendinês, subdialeto do mirandês. “É essa felicidade de poder ser surpreendido.” De ouvir, gravar e dizer na rádio. A curiosidade para com o que o rodeia, para perguntar, para ver para além das linhas. Numa das suas viagens, sobe à serra do Caldeirão, vai a Cachopo, um sítio central na serra algarvia, importante há algumas décadas. Chega a uma taberna onde tinha combinado encontrar-se com o presidente da junta, o velhote ao balcão pergunta-lhe “de onde vem o senhor” e responde-lhe “Ah, de Lisboa, abaixo de Cachopo.” Meia hora de discussão sobre o que aquilo queria dizer e que o velhote repetia desde miúdo. Lisboa abaixo de Cachopo. Cachopo no alto e Lisboa em baixo? Ou Lisboa como cidade menor e Cachopo como centralidade? “Esta discussão, no fundo, é outra maneira de dizer que o centralismo de que falam os nossos políticos existe e pode ser dito desta maneira.”

Redações sem bracinhos, curtas nas mangas

O estado da arte, do jornalismo em geral, da rádio em particular. Cansa-se de ler a mesma frase em todas as janelas. “Há sonolência, apatia, uma espécie de resignação, e os que chegam talvez não percebam que pode ser de outra maneira. E não há muitas situações estimulantes para que quem chega seja tentado a sacudir a poeira do casaco.” Ganha-se mal, os precários são desconsiderados e desrespeitados, recebem fora de horas, fazem contas mês após mês. Não há disponibilidade, diz, “para comprar livros que possam sugerir escapatórias, que possam alimentar fantasias de outra coisa ou desejo de outra coisa, criar disponibilidade emocional para outra coisa.”

Numa entrevista conduzida por Clara Ferreira Alves, em 1998, para a RTP, Fernando Alves já falava no estado da arte como “mais frio, menos mágico, mais funcional.” “É uma doença antiga”, observa hoje. “O diagnóstico está feito, mais do que feito. Todos sabemos quais são os constrangimentos que existem à volta da profissão. A minha dúvida é se todos os pacientes, os jornalistas, grosso modo, ainda desejam que seja de outro modo. Muitos já não desejarão. Falo das chefias intermédias, de alguns que já ficaram sentados em cima do próprio rabo, que se foram acomodando, já não desejarão, já preferirão a entrevista no estúdio, mas o ideal mesmo é que não os macem com a necessidade de investir valor acrescentado no trabalho do dia a dia. O ideal é pegar num take da Lusa, acrescentar duas larachas, e aí vai disto.”

Nessa entrevista, conta que a paixão pela rádio surgiu em Benguela, para onde foi viver com quatro, cinco anos, aos 14, 15 anos, entra na rádio que existia perto da praia Morena, passa meses a espiar os técnicos da rádio a quem chama alquimistas, acrobatas, ginastas. Acabou o liceu e foi fazer rádio. E nunca fez mais nada na vida. Era o que queria ser, é o que é.

O tempo passa e tudo pode parecer igual. “Começa a instalar-se um rame-rame, uma espécie de condenação a esta alegria dos cemitérios que é hoje uma redação. O jornalista das redações de hoje, de um modo geral, não levanta o rabo da cadeira.” Fernando Alves sabe e assume que é um privilegiado do ofício no meio do cenário que descreve. Apresenta propostas, sai do estúdio, escapa à rotina, vai onde quer, não encontra pedras no caminho, não é dos que ganha pior. “Neste momento, tenho a felicidade de ter um diretor que me estimula a ir mais ainda, falo de Domingos de Andrade, não é o diretor convencional, não é alguém acomodado à cadeira, é um intranquilo também, um tipo que se entusiasma, que pode ferver em pouca água – ora eu também sou assim e podia dar faísca, felizmente o que tem acontecido é que um diz mata e o outro diz esfola. E esse apoio que tenho sentido da parte dele, quando sugiro uma empreitada qualquer meio vadia, tem sido muito reconfortante para mim.”

Quando olha à volta há desencanto, uma “fúria mansa”, chama-lhe. Não temos bracinhos, lembra, é uma expressão antiga. “Não há bracinhos é uma espécie de lengalenga que vai apontando o nosso amargo de boca em voz alta.” “O problema é que as redações estão curtas nas mangas, as equipas têm duas, três pessoas, é quase obsceno. Há os que não podem estrebuchar porque a relação deles com a empresa é ainda frágil, ainda não criaram voz, não têm ainda uma espessura de voz que lhes permita dizer sem medo o que quer que seja, o seu desconforto.” Há os sem voz e há os cínicos – até, confessa, começa a acreditar que os cínicos são desejados neste ofício. E volta a falar das chefias intermédias. Os que estão, refere, nesse “posto de comando intermédio, cuja estratégia essencial é defender o instalado, defender o que está, não fazer ondas.”

Fernando Alves, o da rádio, dos gestos por dentro, da pontuação interior, dos textos ora ácidos, ora suaves, das crónicas improváveis, está quase nos 70 e anda na estrada. Sempre de mala feita e pronto para ir até ao fim da rua, até ao fim do Mundo. Sem redes sociais.