Valter Hugo Mãe

Esperar até ter esperança


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Que seja um ano novo de maior juízo. Com SNS e sempre mais Proust. Que se amem mais os que padecem, os que sofrem, perdem, têm medo, ao invés de serem deixados ao abandono. Mais humanidade.

Racionalmente nunca acredito em mezinhas para os anos novos, acabam todos por ser tão à deriva quanto os velhos, vamos indo à sorte e ao azar, seguros sobretudo pela resistência de que formos capazes. Enfim. Contudo, nem que apenas enquanto poema da vida, retórica de encanto ou cosmética para o pensamento, também gosto de imaginar o ano novo, estabelecer com ele um certo sonho que talvez seduza para se poder concretizar nem que numa ínfima parte. E eu quero uma montanha de grandes coisas. Com tanta pandemia e adiamento, formular desejos agora ganha aspectos épicos, exigências de grande produção como nos filmes infindáveis em que se contavam episódios bíblicos. Julgo que estamos exactamente num tempo de proporções bíblicas e só uma misericórdia infinita nos haverá de levar à felicidade no ano de 2022.

Não sei se já viram as previsões que deixou a outra vidente que supostamente acertou em tudo menos no Euromilhões. Outro vírus, maremotos matadores, falta de água potável e um ataque extraterrestre. Haja paciência para tanta aflição. Faz lembrar aquele tempo da pandemia em que apareceu a legionela numa freguesia de Vila do Conde e nos diziam que não podíamos usar a água das torneiras. Pelas janelas podia entrar a covid, pelas torneiras a legionela. Era uma baralhação, mais ainda porque pela televisão também entrava tanto problema que o que nos salvava era voltar a ler Proust.

Estou desde menino à espera dos extraterrestres. Prometeram-nos, com tanto “Espaço 1999”, “Star Treck” ou “Guerra das Estrelas”. Que azar virem logo agora que não podemos andar na rua à vontade, especialmente com mais um vírus da Sibéria. Que falhanço para exercermos uma diplomacia e talvez conseguirmos viagens para os seus planetas, certamente cheios de conforto e guloseimas onde viveríamos como alarves reis.

Ano novo, eleições novas. Marcelo não conseguiu endireitar o Governo para as mãos de Rangel, mas não me admira nada que deixe Rio feliz. Nós, os do Porto, sabemos bem como Rio ganha eleições sem muito propósito, sem grande causa e sem que ninguém queira verdadeiramente que ele ganhe. É sempre uma surpresinha desoladora. Já estou preparado para ver o Filipe La Féria a ocupar o Teatro D. Maria. E Lisboa não tem a Regina Guimarães. Quero ver onde estarão os guerreiros à altura.

Ainda quero ir ao Dubai, ao Brasil, ao Japão e ao Irão. Tudo este ano. Estou com as milhas da Miles & Go a doer de tanto estar parado e já não posso ver o jardinzinho onde o meu cão passeia. A ternura está por um fio. Quero vastidão, mais ainda porque vejo amigos a saírem para grandes férias, cheios de tretas com o vírus mas também cheios de fotografias maravilhosas em praias e museus, mesas de abacates e tâmaras ou festas de luzes e fogos. E eu recatado em casa, bem comportado, a medo, à espera até voltar a ter esperança.

Que seja um ano novo de maior juízo. Com SNS e sempre mais Proust. Que se amem mais os que padecem, os que sofrem, perdem, têm medo, ao invés de serem deixados ao abandono. Mais humanidade. Para todos os anos novos, muito mais humanidade.

Boa sorte a todos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)