Cultura de todos, para todos

Diana Niepce ficou tetraplégica num ensaio, há oito anos. A bailarina que aprendeu a amar um novo “eu” voltou a agarrar as coreografias. Numa dança onde a deficiência entra no palco e na plateia - tem audiodescrição e interpretação em língua gestual -, abre-se caminho às artes performativas acessíveis. Os recursos para pessoas invisuais ou de baixa visão, surdos, em cadeira de rodas assistirem a peças existem. E a cultura começa a usá-los cada vez mais, até porque surgem apoios. Já evoluímos muito, mas o espetáculo ainda só vai no início.

Cambalhota, queda para trás, gancho de pés na corda. Os pés falham as cordas e as pontas dos dedos das mãos amparam a queda. A cabeça recolhe, a cervical bate no colchão, ouço o barulho de ossos a partir. O corpo desliga.” O relato de Diana Niepce no livro “Anda, Diana” tem uma data inscrita: 20 de março de 2014. O dia em que viu a dança e as acrobacias fugirem-lhe. Estava num ensaio para um espetáculo da Companhia Armazém 13, que misturava dança contemporânea e novo circo, quando a queda lhe provocou uma lesão medular. Diana – que nasceu com uma perna maior do que a outra e começou em miúda no ballet para corrigir o andar, uma paixão que a levou a fazer formação na Escola Superior de Dança (Lisboa) e Erasmus em Helsínquia – acordou tetraplégica no hospital.

O corpo desligava-se para quem sempre viveu a desafiar-lhe os limites, entre a dança e o trapézio. Diana, que é de Ovar e mora em Lisboa há 14 anos, já tinha carreira antes de o mundo cair. “O meu corpo, que tudo sabia, não era mais o meu corpo.” E, aos 28 anos, não era mais bailarina. Será? Abril de 2022, 36 anos, um espetáculo no Festival Dias da Dança (DDD) criado pela bailarina, acrobata, coreógrafa, e interpretado por ela, a retratar de forma crua “a reconstrução” do seu eu. A questionar preconceitos sobre a estética dos corpos. Não é sobre a deficiência, nem sobre ser vítima ou heroína, é sobre um corpo fora da norma a merecer, e muito, lugar no palco.

Diana já tinha voltado à dança. “Saí do hospital e fui fazer uma peça. A ‘Forgotten fog’, com a companhia de circo com que eu trabalhava. Mas estou há oito anos a tentar reconfigurar o meu corpo.” No livro, em jeito de diário ficcional, que lançou há um ano, conta: “Pelos vistos sou um caso de extremo interesse. Parece que a minha consciência corporal é superior à norma”. De quem não conseguia beber água sem alguém a segurar no copo, estar de pé, mexer as pernas, reconhecer as próprias mãos, uma evolução gigante. Longos meses de reabilitação, a lutar por mais um milímetro de movimento. Uma obsessão entre força de braços e pequenos passos.

O espetáculo “Anda, Diana”, no Festival Dias da Dança, retrata a reconstrução da bailarina depois da queda que a deixou com uma lesão medular
(Foto: Alípio Padilha)

“Caí de um trapézio e fiquei paralisada do pescoço para baixo. Claro que não encontrei logo o caminho.” Mas haveria de se encontrar no novo corpo. Aliás, haveria até de deixar de querer um corpo igual a todos os outros. É sobre isso, afinal, o espetáculo “Anda, Diana” no DDD.

“Sobre reconfigurar o nosso olhar sobre o corpo. Sobre a forma como a sociedade, como o espectador olha para a fragilidade de forma bastante limitada. Vem de muito trabalho e de reformular a minha própria visão.” Fez reset na mente e no corpo. E quer agitar as águas das normas sociais, “que excluem pessoas”. “Mesmo que achemos que estamos empaticamente a compreender, aquilo que fazemos, sem nos apercebermos, é infantilizar, invalidar, é agir de um lugar de superioridade, de condescendência.” Fez investigação sobre corpos não normativos nas artes, foi diretora artística de um projeto de formação de pessoas com deficiência. Carrega bagagem que vai muito além do que viveu na pele.

E no mundo artístico, que continua a dar palco a corpos privilegiados, Diana quer normalizar a deficiência. Num jogo de opressão do corpo, em que o expõe despido, sem recurso a cadeira de rodas nem andarilho ou canadianas, com outros dois bailarinos em palco, é assim o espetáculo autobiográfico “Anda, Diana”, pensado ao longo de três anos e que estreou no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, há um ano. Agora, nos dias 29 e 30, vai subir ao palco do Teatro Municipal Constantino Nery, em Matosinhos. “Uso os outros corpos como próteses, vão fazer o papel de uma cadeira ou de um andarilho. Interessa-me esse lugar visceral, de estranheza.” E há público que se surpreende no final quando Diana surge de cadeira de rodas para os aplausos. “Há pessoas que nem se apercebem durante o espetáculo. Vivem esta peça densa comigo.”

Um festival de dança, a língua gestual

E a deficiência, aqui, também pode entrar na plateia. O espetáculo tem audiodescrição (recurso que traduz conteúdos visuais em palavras, através de uma narração) e interpretação em língua gestual portuguesa (ILGP) para públicos cegos e de baixa visão ou surdos, uma luta da bailarina. E um investimento do DDD, que começou terça-feira e se estende até maio. Além do “Anda, Diana”, a peça “Samba de guerrilha”, no Coliseu do Porto (dia 27), terá intérprete de língua gestual. E “Miramar” no Rivoli, também no Porto, (hoje e amanhã) terá audiodescrição.

Segundo Jonathan Costa, responsável de mediação do festival, “assegurar o direito de acesso e de participação é mais do que um desígnio, é uma obrigação”. O DDD tem vindo a tentar criar condições para que “um maior número de pessoas possa, de forma equitativa, participar e fruir dos espaços e da programação”. A audiodescrição e a ILGP em três espetáculos é só o início. “Sabemos que ainda há muito caminho a trilhar, mas estamos empenhados em desenvolver esse trabalho.”

As artes estão a querer dar passos rumo à democratização e os últimos anos têm sido de avanços. Cláudia Braga, intérprete de língua gestual, bem o pode testemunhar. Ainda trabalha, essencialmente, em contexto escolar. “Mas, na cultura, está a disseminar-se cada vez mais. Em Lisboa, o recurso já é usado com alguma frequência. No Porto, começou a ser mais frequente a partir de 2016, quando a associação Laredo apresentou um projeto ao Teatro Nacional São João.” Já há grupos de intérpretes um bocadinho por todo o país. Trabalham “sobretudo” em teatro”. “Porque há fala. A peça da Diana Niepce, apesar de ser de dança, tem fala, por isso vou fazer a interpretação.”

Cláudia Braga diz que a cultura está a investir mais na interpretação em língua gestual, mas a aposta ainda está no início
(Foto: Pedro Sardinha)

Tudo é preparado antes. Cláudia recebe o guião, o texto do espetáculo, assiste a ensaios ou registos de vídeo, “para ver os ritmos da fala”. E quem contrata? “Normalmente, são os organizadores, às vezes os próprios encenadores. O custo é um travão, estamos a falar de cultura, uma área em que o investimento público é irrelevante. E, muitas vezes, as companhias têm que optar.” Mas o problema maior, acredita, está na educação, “no ensino regular, na academia e nas escolas artísticas, onde se falha a abordagem de criar cultura para públicos específicos, seja para a comunidade surda, para cegos ou autistas”. Até o facto de o intérprete ter de estar em cima do palco e ser preciso acautelar um foco de luz, sem distorcer o espetáculo, é entrave. A janela para as pessoas com deficiência vai-se abrindo, mas devagar, devagarinho.

Audiodescrição, a narração para todos

E se a ILGP está a desbravar caminho, a audiodescrição mais ainda. A equipa de Anaísa Raquel vai audiodescrever o “Anda, Diana”. “E há coisa melhor do que audiodescrever diversidade?”, questiona. É atriz desde 1999 e quando descobriu este recurso para públicos invisuais não o conseguiu ignorar. Três meses de pesquisa e um apoio da Fundação Calouste Gulbenkian permitiram-lhe trazer uma formadora brasileira a Portugal, para criar a primeira equipa de audiodescrição no país. Já lá vão 11 anos. O sonho que ganhou força depois de ver que há audiodescrição do Carnaval no Rio de Janeiro, o de o fazer nas Marchas Populares de Lisboa, concretizou-o há seis anos.

Agora, Anaísa corre o país, tem uma equipa de cinco pessoas. Uma cabina envidraçada, com vista privilegiada para o palco (que os teatros quase sempre alugam), é o posto de comandos de quem narra o espetáculo para público invisual, que usa um auricular num ouvido para escutar a descrição (o outro fica livre para ouvir o espetáculo).

Anaísa Raquel criou a primeira equipa de audiodescrição do país
(Foto: Helder Santos/Aspress)

“Trabalhamos um tipo de audiodescrição que é objetiva (também a há subjetiva). Descrevemos os movimentos dos intérpretes. Se está a arquear as costas para trás, se flete os joelhos, se leva a mão ao chão. Temos que ter um olhar muito treinado.” A emoção deixa que seja o público a criar, não entra nenhuma impressão pessoal do audiodescritor. “O público vive a emoção pela respiração do intérprete, pela forma como pisa o palco. A única coisa que precisa da nossa parte é o input visual. Tudo o resto, o espetáculo dá”, defende.

Dança, teatro, ópera, cinema, conferências, televisão. Já fez de tudo. “Por exemplo, num concerto, dizemos quem são os músicos, quantos são, quais os instrumentos, quando o vocalista atira uma coisa para a plateia. A primeira vez que a Madonna veio a Portugal entrou num Cadillac em palco e isso tem que ser descrito. O que está a vestir, de que cor está o cabelo. Usamos as pausas, o instrumental. Não podemos só vomitar informação, porque isso é altamente intrusivo.”

Há um guião prévio, que passa no mínimo por quatro pessoas, audiodescritores e pessoas com deficiência visual. Ainda há ensaios. A locução é sempre feita ao vivo. O improviso mora nas artes, é preciso destreza. O desafio não é só estar mais presente na cultura, também é conquistar público. “Tem de haver uma aprendizagem. Ainda há um desconhecimento grande deste recurso. Mas de cada vez que vamos a uma nova cidade, temos pessoas novas a descobri-lo.”

Anaísa Raquel a audiodescrever um espetáculo no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal
(Foto: Helder Santos/Aspress)

Ainda neste mês, a Acesso Cultura, associação sem fins lucrativos que promove o acesso à cultura, levou a cabo a primeira parte de um curso de audiodescritores, no Funchal, para formar nove pessoas, do Norte, Centro, Algarve e Madeira. Teve o apoio das direções regionais de Cultura do Norte, Algarve e Madeira, das câmaras do Porto e Funchal, e do El Corte Inglés. “As pessoas com deficiência visual começam a estar mais despertas para oferta cultural acessível. E ainda temos muito poucos audiodescritores no país”, justifica Maria Vlachou, diretora. Não é uma profissão com reconhecimento formal e “não há propriamente um curso de audiodescrição”, daí a aposta. Aliás, a formação de agentes culturais com foco na deficiência e no acesso há muito que é uma preocupação da Acesso Cultura, que tem vários cursos abertos.

“Se pensarmos no que se fazia há dez anos e no que se faz hoje, já evoluímos muito, mas ainda é pouco. É preciso envolver as próprias pessoas com deficiência.” Até porque “a cultura não é um luxo”. No site Cultura Acessível, dá para consultar toda a oferta cultural acessível no país. Há uma semana, havia 111 eventos registados. Podem ser serviços permanentes, como museus, ou espetáculos pontuais.

O tema está a entrar no radar, tanto que a Direção-Geral das Artes, no ano passado, criou um projeto com a Acesso Cultura para apoiar artistas com deficiência e a inclusão de recursos de acessibilidade nas produções. Mais: recentemente, foi lançada uma rede de teatros com programação acessível. Na verdade, é muito mais do que uma questão ética, as pessoas com deficiência também devem ser olhadas como um mercado. “Não é admissível não abrir a porta a todos porque é caro. Os Parques de Sintra investiram muito nesta questão e um ano depois registaram um aumento de 30% nos visitantes. E porquê? A maioria dos visitantes não vai aos espaços culturais sozinhos. Numa família ou grupo, se um não puder entrar, ninguém vai”, explica Maria.

Uma mostra totalmente inclusiva

No mundo das artes performativas, a navegar entre a dança, o teatro, a música, é no cinema a maior falha. Uma certeza de Maria Vlachou. “Há muito poucos filmes com audiodescrição em Portugal. Há algumas experiências em festivais, mas é sempre uma programação limitada.” A recente mostra de cinema Ampla, na Culturgest, em Lisboa, foi tudo e o seu contrário. Toda, mesmo toda a programação, que reunia filmes premiados nos principais festivais nacionais, era acessível. Num pioneirismo de aplaudir. Audiodescrição para cegos ou pessoas com baixa visão, ILGP e legendas descritivas para pessoas com deficiências auditivas, filmes dobrados para quem não consegue ler legendas, acesso a cadeiras de rodas nas primeiras filas, sessões descontraídas a pensar em público com espetro de autismo.

Rita Gonzalez, organizadora, fez uma formação sobre arte e deficiência e não largou a ideia de criar uma mostra totalmente inclusiva. Conseguiu. “Isto implica um investimento grande. Exige ter equipas a ver os filmes, gravar a narração e legendas, trabalhar em legendagem descritiva, fazer interpretação em língua gestual. Quando os filmes não são trabalhados com estes recursos a priori, temos que os dotar posteriormente. Seria muito mais fácil se as produtoras pensassem logo nisto.”

A mostra de cinema Ampla, organizada por Rita Gonzalez, Sofia Afonso, Hugo Tornelo e António Câmara Manuel, que se estreou este ano, foi a primeira totalmente inclusiva em Portugal
(Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)

A acessibilidade custou um terço do orçamento da Ampla. “Mas o principal feedback foi de pessoas com deficiência que puderam escolher ver qualquer filme. Não ficaram restringidas a uma sessão”, sublinha Rita Gonzalez.

A luta de Diana e dos artistas fora da norma

Então e para lá do público? Voltemos a Diana Niepce, a bailarina que tanto se tem batido pela acessibilidade. Não só dos espectadores, dos artistas. De ver corpos não normativos em palco. “Em 2018, estava a discutir acessos para o público, hoje já discuto o acesso para artistas com deficiência. O palco também tem que ser um espelho da sociedade.” Diana sabe que teve o trabalho facilitado. Já era bailarina antes. “Não me iriam dar voz se assim não fosse. E mesmo assim, demorou tempo.”

No início de 2020, a Acesso Cultura iniciou um registo de pessoas que se identificam como profissionais da cultura e com deficiência. “Recebemos resposta de 50 pessoas de todas as áreas culturais. Onde é que estão? Porque não os vemos?”, pergunta Maria Vlachou. O trilho adivinha-se longo. Muitos nem conseguem ser admitidos nas escolas artísticas. Mas um passo importante foi dado. “Pela primeira vez, este ano, há um curso para artistas surdos promovido pela Terra Amarela e pelo Teatro Nacional D. Maria II.” Conta 15 alunos.

Quando o pano abre, há uma certeza inequívoca: faltam referências nos grandes palcos e ecrãs para todos os que são obrigados a viver de imaginação e sonhos condicionados. Maria lembra-se do anúncio de um casting para um espetáculo que juntava Portugal e Espanha. Dizia estarem “à procura de atores com ou sem deficiência”. “Em Portugal apareceram cerca de 40 pessoas com deficiência e em Espanha umas centenas. Se não estivesse claro no anúncio, estas pessoas nunca iriam. Já sabem que ninguém está à procura delas.” Talvez um dia isso mude. Pelo menos é esse o sonho de Diana Niepce. E de tantos que vivem na penumbra.