Azul para meninos, rosa para meninas. Não tem de ser assim

Liliana Pimentel e Nelson Moura com as gémeas Joana e Francisca, que usam roupa de todas as cores e brincam com bolas e bonecas (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Desconstruir estereótipos de género dá trabalho, é necessário desmontar preconceitos e atitudes, mostrar às crianças que a igualdade não é uma utopia. É preciso começar cedo. O projeto Kinder anda no terreno a apoiar profissionais que estão nas escolas desde a primeira infância e a criar novos materiais e ferramentas.

As meninas não podem jogar à bola, os meninos não podem brincar com bonecas. Cor-de-rosa num rapaz não fica bem. Uma rapariga não deve ser canalizadora. A mãe trata dos afazeres domésticos, o pai muda os pneus do carro. Há profissões masculinas, há profissões femininas. Um homem não chora e não lava a louça. Uma mulher passa a ferro e vai às compras. E por aí fora. Como desmontar tudo isso na cabeça das crianças?

Rita Constança tem dois filhos, João de 13 anos e Manuel de dez. Andam no conservatório de música, João aprende oboé, Manuel trombone. Usam cabelo comprido, vestem roupas das cores que querem, João andou no ballet, mas não quer ser bailarino, gosta muito de música. Manuel não liga muito ao futebol. Rita, enfermeira, separada, já ouviu comentários de que devia cortar o cabelo aos filhos “à homem”. Não liga, não se perturba. Esses assuntos estão bem resolvidos lá em casa.

“O João nunca abdicou das atividades de que gostava em prol da pressão dos colegas”, conta Rita, que defende que os temas da igualdade, preconceitos e estereótipos de género “devem ser abordados ao longo do percurso educativo, desde o pré-escolar”. Em várias frentes e não apenas numa disciplina. “É muito importante, mesmo em termos de futuro. Não podemos dizer que há profissões de homens e profissões de mulheres porque as crianças acabam toldadas na criatividade, acabam por não desenvolverem as suas capacidades, a fazerem outras escolhas na vida porque a pressão social é grande.”

Liliana Marques Pimentel, investigadora e professora na Faculdade de Economia de Coimbra, e Nelson Moura, engenheiro eletrotécnico, têm duas filhas gémeas, Joana e Francisca, de três anos. Andam na creche, em setembro entram no pré-escolar, têm roupa azul e de outras cores, brincam com bolas e com bonecas. Se fossem meninos, garante a mãe, seria igual. “Vamos dando o melhor contexto possível. Nas brincadeiras, nunca fazemos diferença de brincadeiras de meninas e de meninos. E tenho a certeza de que o faríamos da mesma forma se fossem meninos”, assegura Liliana Pimentel que, confessa, fica satisfeita quando vê cada vez mais mulheres nas suas aulas ligadas à Gestão e Contabilidade. “Não tem de haver essa construção de que há brincadeiras mais propícias para os meninos e mais propícias para as meninas. Não fazemos uma educação, à partida, tendenciosa. Não temos discursos estereotipados”, reforça.

Luís Gonçalves é professor de Cidadania e Desenvolvimento e de Educação Moral e Religiosa Católica no Agrupamento D. Infante D. Pedro, em Penela, fez parte do grupo de trabalho da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, tem turmas dos 5.º ao 9.º anos, dá aulas de Cidadania ao 7.º. A igualdade de género entra na sua sala e, ao desinteresse inicial, porque os estereótipos estão tão enraizados que tudo parece normal, segue-se o envolvimento dos alunos que questionam o que parecia certo e fazem perguntas.

Quando o assunto é o empoderamento das mulheres, por exemplo, Luís Gonçalves vê que há rapazes que sentem que querem tirar os homens do topo da hierarquia profissional e social. É preciso, portanto, falar destes temas nas escolas. Daí que, no seu entender, seja essencial partilhar experiências, falar de dificuldades, fazer perguntas, debater, refletir. “Ajudar rapazes e raparigas a perceberem o seu lugar no Mundo, a relação consigo e com os outros, o respeito perante as outras pessoas.”

Capacidades e possibilidades

“O João queria ir com as unhas pintadas para a pré-escola, uma de cada cor.” Rita Constança pintava-as aos padrões, como o filho lhe pedia. No 1.º Ciclo, entrou no ballet. “Fez as provas de admissão, não havia lista de espera, entrou de imediato.” A professora de então integrou essa dança como atividade artística. “Nunca sofreu muito por andar no ballet, não tinha preferência de jogar à bola nos intervalos.”

No 5.º ano, a mãe notou diferenças, mais reparos, mais observações, meninas para um lado, meninos para o outro. “Na educação pré-escolar, essas questões não estavam muito presentes, estavam diluídas, não havia muita separação do que é de menina e do que é de menino. Nunca senti que isso fosse significativo até ao 2.º Ciclo. Nessa altura, havia ali algum desconforto e não só pelo facto de andar no ballet, havia algum bullying também”, lembra. “Acaba por haver uma pressão de aculturação silenciosa que se manifesta.” O ambiente em casa ajuda e na escola é preciso colocar esses temas na ordem do dia até para, sublinha Rita, “minimizar o impacto social e cultural”.

Rita Constança sempre ensinou os filhos, João e Manuel, a praticarem as atividades de que mais gostavam, independentemente da pressão dos colegas
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Liliana Pimentel é sensível às questões de género, investiga, informa-se, estuda estas temáticas, que considera “extremamente importantes”. A educação é fundamental, em casa, na escola, ao longo de vida. “O que esperamos é estimular as nossas filhas e que elas percebam que não é o facto de serem meninas que as vai limitar neste ou naquele tipo de desportos ou de atividades. Deixá-las explorar para verem quais as suas preferências”, especifica. Liliana Pimentel e Nelson Moura estão e estarão atentos, sabem que há projetos e atividades neste âmbito. Ainda assim, Liliana deixa um reparo: “Há claramente uma desigualdade de género nas tecnologias de informação”.

Rita aponta algumas incongruências, inconsistências. Por vezes, o discurso da igualdade de género não bate certo quando se abrem os livros da escola. “Muitas vezes, os manuais escolares mostram os meninos com bolas, as meninas com bonecas e tarefas domésticas. Esses manuais não podem seguir padrões nem estereótipos”, comenta.

Nada acontece de um dia para o outro, há estereótipos que se perpetuam, até de forma inconsciente, portanto, é preciso começar por algum lado. “Mudar mentalidades, às vezes, demora gerações. É fundamental abordar estes assuntos, quem está no terreno sabe o quão importante é. Rapazes e raparigas são iguais no sentido de capacidades, possibilidades”, realça Luís Gonçalves. E não se pode baixar os braços. “São pequenas sementes que se vão lançando, que esperamos que caíam em terreno fértil e floresçam”, refere o professor, que é defensor de uma estratégia articulada, concertada nas escolas e nas famílias. “É importante que este trabalho seja feito com calma, com serenidade, com abertura, trabalhar com toda a comunidade para chegar a todos. Entre o perfeito e o possível, temos de agarrar pequenos possíveis para chegarmos ao perfeito.”

O projeto “Kinder – Combater estereótipos de género na educação e na primeira infância: Construir uma pedagogia inclusiva na educação infantil”, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, foca-se nestas questões. O objetivo central é apoiar a formação de profissionais do setor da educação, docentes e não docentes, educadores e professores, que trabalham com crianças do pré-escolar, dos três aos seis anos, e dos primeiros ciclos do Ensino Básico, dos sete aos 12 anos. Com conhecimentos, aptidões e atitudes para uma pedagogia sensível ao género. Tatiana Moura, coordenadora do Kinder, professora e investigadora do CES em áreas como masculinidades e prevenção de violência de género, salienta que as escolas e as famílias têm um papel fundamental em contrariar a perpetuação de estereótipos de género. “Bastava não reproduzir desigualdades, ir a tempo de não construir esses estereótipos.” Mas essa não é a realidade. “O que estamos a fazer bem é mostrarmos às meninas que podem ser o que quiserem, engenheiras, astronautas. O que não temos feito tão bem é dizer aos meninos que podem fazer o que quiserem, não estando assim a desconstruir masculinidades que podem ser violentas no futuro”, resume. As crianças devem crescer a saber que têm várias opções. No entanto, enfatiza Tatiana Moura, “há muito poucos materiais e ferramentas para trabalhar em idade infantil”.

Histórias, livros, jogos, animações

O Kinder, que envolve mais dois países, Espanha e Croácia, fornece ferramentas nesta área, vai elaborar um manual focado nos processos de ensino e aprendizagem a partir de uma perspetiva de igualdade de género, e está a aplicar questionários a profissionais de educação e responsáveis parentais para recolher informação, trabalhá-la e direcioná-la para as necessidades reais das escolas. E está a realizar ações de formação na Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC). “A estratégia Kinder é de, para e com todos. Promove a partilha que visa eliminar a segregação de género”, adianta Sofia Gonçalves, professora na ESEC, investigadora nas áreas de organização do ensino e gestão escolar. “Há vontade, mas não há recursos suficientes”, acrescenta. O que está a ser resolvido. Cerca de 200 alunos dos cursos de Educação Básica e de Comunicação, Design e Multimédia e do mestrado em Ensino de Língua Gestual Portuguesa da ESEC estão, neste momento, a elaborar materiais e recursos pedagógicos para as escolas: histórias, jogos didáticos, desafios, animações, canções.

O combate aos estereótipos, assinala Sofia Gonçalves, não deve acontecer apenas dentro das salas de aula, mas também nos recreios, corredores, zonas de convívio. “Estas temáticas são prioritárias, esta sensibilidade é fundamental, não é só em Cidadania e Desenvolvimento, mas em todas as áreas do saber.” E adiciona: “A temática da igualdade de género é prioritária, mas, muitas vezes, não é tornada prioritária nos contextos educativos. É necessário criarem-se espaços e tempos de partilha, reflexão, sobre dinâmicas e decisões. Decisões democráticas, fundamentalmente.”

O Estado tem obrigação, segundo a Constituição, de promover a igualdade entre mulheres e homens. É, aliás, um dos princípios fundamentais, recorda Sandra Ribeiro, presidente da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. “Educação, cidadania, igualdade e direitos humanos, não são uma mera associação de palavras, são conceitos alicerçados na Constituição da República Portuguesa e no regime jurídico nacional, mas também da União Europeia e nos tratados internacionais”, observa.

A educação tem um papel determinante para “a construção de uma sociedade mais inclusiva, menos preconceituosa, menos discriminatória”, defende. “Esta questão deve ser tratada e explorada o mais cedo possível. Os preconceitos vêm desde a nascença como pequenas bactérias que atacam. É fundamental dar às crianças ferramentas para que possam pensar livremente.” Sandra Ribeiro fala num trabalho de fundo no ambiente escolar para uma mudança comportamental estruturada. Desde cedo, quando tudo começa, quando os mais pequenos seres descobrem o Mundo.