Até onde vai a vida privada dos políticos?

A polémica em torno da primeira-ministra finlandesa reabriu o debate sobre haver ou não haver limites para a exposição da intimidade por titulares de cargos políticos. E sobre o que é ou não é matéria de interesse público. Num mundo de redes sociais e de mais proximidade, cria-se espaço para a partilha. Mas a história já vai longa, não faltam páginas de casos controversos em Portugal e no Mundo. E mesmo nos novos capítulos este ainda é um caminho sinuoso.

“Eu também sou humana. Isto é algo privado, é alegria e vida. Mas não faltei a um único dia de trabalho.” A declaração emocionada de Sanna Marin, à beira das lágrimas, veio depois da turbulência de uma polémica que pôs a primeira-ministra da Finlândia debaixo dos holofotes. Um vídeo a dançar com amigos numa festa privada que começou a circular pela Internet sem que Marin o tenha previsto, um tornado de críticas seguido de um teste de despiste de drogas negativo revelado ao Mundo e uma bola de neve a girar em torno da exposição da vida privada de titulares de cargos políticos.

Numa era de redes sociais, de mais proximidade, de personalização da política nas figuras muito para lá dos partidos, as esferas pública e privada fundem-se cada vez mais. Exige-se maior transparência e desenhar fronteiras claras é um autêntico exercício de contorcionismo. Duarte Pacheco, deputado do PSD, sabe-o bem. Levou longos meses a pensar antes de aceitar o convite para posar em tronco nu na capa da revista “Men’s Health”. Hesitou, muito. Tem noção que carrega um escrutínio apertado. “Esta exposição era uma questão da minha vida privada. Mas podia afetar a vida profissional. Quando assumimos determinadas funções, tem de se encontrar um ponto de equilíbrio que não é fácil.” Por isso, antes de tomar a decisão, abordou o assunto com o então presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e com os colegas do partido.

O deputado do PSD Duarte Pacheco posou em tronco nu na capa da “Men”s Health”

Foi adiante. Por uma razão simples. “Mostrar que gosto de praticar desporto não pode ser motivo de vergonha. Quis mostrar que aos 50 anos é possível ter uma vida saudável, numa época em que há tantos casos de obesidade. Percebi que não há mal nisso. Mostrar que os políticos são pessoas normais, de carne e osso, que gostam de estar com os amigos, que têm hobbies. Os políticos não são feitos de plástico, não têm o cabelo sempre aprumado, não têm o botão da camisa sempre fechado. Isso seria uma prisão.”

A capa valeu-lhe o epíteto de “deputado mais fit de Portugal”. Críticas? Recebeu muitas, da política à sociedade civil. E a credibilidade que a sociedade pede a um político não fica afetada? “Espero que não. Seria criticável se num ato formal tivesse um comportamento inadequado. A minha área no Parlamento é a financeira. Não vou discutir assuntos orçamentais a rir ou a cantar, mas para lá disso tenho uma vida. Posso ir ao ginásio, tal como outra pessoa. Acho que mostrar esse lado humano até engrandece as figuras políticas.”

O deputado do PSD Duarte Pacheco
(Foto: Manuel de Almeida/Lusa)

Opinião ligeiramente diferente tem João Cardoso Rosas, diretor e investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho. Vai para além do olhar moralista e põe a questão apenas em termos políticos. Voltemos ao caso de Sanna Marin. “Cabe a cada agente político ajuizar os limites. Estranhei este caso, porque apesar da juventude é uma líder política já com experiência. E isto revela falta de juízo político da parte dela, ao permitir que o espaço privado seja filmado, não antecipar a possível exposição pública nem a reação a essa exposição”, refere o também professor de Filosofia Política. Este tipo de situação, assevera, “tende a enfraquecer o agente político, que perde credibilidade, mesmo não estando a fazer nada de errado, e neste caso certamente não muito diferente do que qualquer finlandês faz ao fim de semana, isso não importa”. Trata-se da forma como as pessoas veem a política. Até num país, como a Finlândia, onde se espera haver mais abertura, “há leis universais”. “Uma delas é que o político tem de mostrar uma imagem de respeitabilidade, dignidade, que se perde com este tipo de exposição. Há um limite de salvaguarda da dignidade.”

A exposição entra diretamente num jogo de aproveitamento por parte da Oposição, que agarra “estas oportunidades para descredibilizar”. “São juízos políticos o que estou a fazer, não morais. Ela estava simplesmente numa festa e não cometeu nenhuma ilegalidade nem imoralidade. A análise é meramente política.” Como o é quando põe os pés em Portugal para olhar para um presidente da República que nos habituou a aparições de calções de banho, em tronco nu, a nadar, a tirar selfies na praia. “Este caso não é um lapso no juízo político, faz parte da sua construção de presidente amigo de todos os portugueses. É uma construção muito pensada e é um sucesso.”

Se abrirmos o leque a outras figuras políticas, com partilhas pessoais e familiares planeadas (ao contrário do caso de Sanna Marin), o resultado é o mesmo? “É uma estratégia de aproximação, para mostrar que são como os demais cidadãos. Há quem faça essa construção bem feita e outros que o fazem de forma mais torpe, mostrando excessivamente. Repare-se como Marcelo é cuidadoso em relação à sua namorada. O que ele faz, faz bem feito. Outros políticos podem tornar-se ridículos.”

Casos amorosos e polémicas

A vinda a público de pormenores da vida privada dos políticos já valeu muitas e muitas polémicas pelo Mundo fora. A amplitude da Internet pode empolar o debate, mas a história já é velhinha. E os casos amorosos entram neste emaranhado. Todos se lembram do escândalo, no final dos anos 1990, em torno da relação extraconjugal entre o presidente norte-americano, Bill Clinton, e a jovem estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky. Os Estados Unidos são ricos em controvérsia. Mas a Europa não escapa. Basta ver a batalha pessoal – que se tornou pública – de François Hollande com a ex-mulher Ségolène Royal, que, mais tarde, já separados, acabaria por nomear ministra no seu Governo. Aliás, as mulheres do antigo presidente francês fizeram correr muita tinta cor-de-rosa, incluindo o caso com a atriz Julie Gayet (que terá estado na origem da sua separação da jornalista Valérie Trierweiler, então primeira-dama de França) e que encheu páginas de tabloides pelo Mundo, em 2014. O affair teve forte impacto na popularidade do presidente ainda em exercício. Tanto que o namoro só viria a confirmar-se anos depois. Hollande e Gayet ainda estão juntos, casaram em junho.

A divulgação por tabloides do romance entre François Hollande e a atriz Julie Gayet abalou a popularidade do então presidente francês. Ainda hoje estão juntos, casaram em junho deste ano
(Foto: Franck Fife/AFP)

Portugal também tem história no mundo amoroso. Estávamos em finais dos anos 1970 quando Francisco Sá Carneiro, fundador do PSD, conheceu a editora dinamarquesa Snu Abecassis e se apaixonou. Era casado e pai de cinco filhos. Deixou a mulher para ir viver com a fundadora da editora D. Quixote – moreriam juntos em Camarate – , numa época em que o divórcio não era bem visto. O falatório numa sociedade conservadora era óbvio e fez-se ouvir, mas Sá Carneiro não quis ser discreto, teve a coragem de assumir a relação. Pior, de pôr em causa a carreira política por isso.

No final dos anos 1970, Sá Carneiro teve a ousadia e a coragem de assumir um divórcio e o romance com Snu Abecassis, desafiando o conservadorismo da sociedade portuguesa
(Foto: Arquivo/Global Imagens)

A pergunta é evidente. Para o eleitor, qual é a vantagem de conhecer os casos amorosos de um político, o seu clube, se vai a festas ou se consome álcool? “Se a vida privada não afeta em nada a gestão da coisa pública devia ser ostensivamente ignorada como matéria, não só pelos media como pela Oposição”, aponta André Freire, politólogo, que sustenta que o vídeo da primeira-ministra finlandesa é “um não assunto, é irrelevante para a governação”. Ainda que saiba que é “indesejável”, porque “a exploração desses episódios existe”. Por isso mesmo, é preciso “alguma autocontenção, não por ser um imperativo, mas como mecanismo de defesa”.

Recuemos ao verão do ano passado, quando o eurodeputado Paulo Rangel viu um vídeo onde aparece embriagado numa rua de Bruxelas tornar-se viral na Internet. O social-democrata reagiu, na altura, no Twitter, dizendo ter sido filmado “depois de um excesso num jantar com amigos, há anos”. “Não sei quem filmou, guardou e só agora divulgou. Deploro que o tenha feito, violando os limites da vida privada.” André Freire subscreve a “exploração intrusiva”. “Quem é que não apanhou uma piela na sua vida? A única coisa que faz sentido explorar no campo da vida privada dos políticos é a contradição. Ou seja, quando defendem determinadas posições inflamadas e isso não condiz com o que fazem na vida privada. Se um deputado faz do combate ao consumo de álcool uma grande batalha e depois é apanhado a beber, aí sim, é matéria.” Como o deputado britânico conservador e abertamente homofóbico Crispin Blunt, que se viria a assumir gay e a anunciar a separação da mulher, em 2010. Para lá disso, cometer ilegalidades também invade a esfera do interesse público, porque aí “o político tem especial dever, tem que dar o exemplo”.

A família, as férias, as fotos NAS manchetes

À margem das acesas polémicas, a linha que separa a vida pública da privada esbate-se a um ritmo alucinante com as redes sociais. É aí que muitos partilham fotos da família, de amigos, imagens de férias. “Não vejo que isso seja um problema. A forma como se vestem, se divertem e se publicam ou não isso nas redes não tem a ver com a sua atividade profissional. Por exemplo, a Isabel Moreira partilhou fotos em biquíni com amigos na praia, neste verão. Deixa de ser menos boa deputada por causa disso?”, questiona André Freire.

Um vídeo onde o eurodeputado Paulo Rangel surge embriagado tornou-se viral na Internet

A socialista usa o Instagram como coleção de memórias do dia a dia, palavras dela. “Se vou viajar, ou se estou numa praia que gosto, tiro uma fotografia. Para não perder. Mas não vejo interesse público em partilhar aspetos da minha vida privada. Não exponho nada do que é a minha vida íntima, no sentido do que são as minhas escolhas, o jornalismo não entra na minha casa. Mas é um direito dos políticos fazê-lo”, comenta Isabel Moreira. Sobre polémicas como a que envolveu Sanna Marin, é perentória: “O que devia causar repulsa é a divulgação, a devassa da vida privada. E, uma vez divulgado, aquele vídeo não tem nada de censurável. Faz parte de uma vida saudável a pessoa divertir-se, relaxar. Desconfio muito de pessoas que não se divertem. Não quero votar numa pessoa assim. Prefiro votar em pessoas reais, que são humanas. Os políticos não têm que se coibir de viver uma vida normal, era o que faltava”.

O eurodeputado Paulo Rangel
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Para o espalhafato, não tem dúvidas que muito contribuiu o facto de ser uma primeira-ministra mulher, jovem, a tomar decisões históricas como seja a adesão à NATO. “Basta ver o caso português. Imaginem que tínhamos uma presidente da República mulher, de 36 anos, de biquíni, na praia, a tirar selfies. Será que o olhar era o mesmo? É evidente que não.”

Quando Isabel Moreira partilha fotos em biquíni, fá-lo naturalmente, sem pensar muito. “Não acho que retire credibilidade, até acho que desmistifica. O facto de se normalizar é bom. Os limites são traçados por cada um. Cabe a cada político decidir se quer ou não quer expor a vida privada. Desde que não viole a lei e que não seja incongruente com o que apregoa em público, é completamente irrelevante.”

A deputada socialista Isabel Moreira partilha imagens das férias no Instagram
(Foto: DR)

Até pode ser, mas os casos que viram manchetes multiplicam-se. Não é preciso rebobinar muito para reavivar a memória, ainda há dias Pedro Santana Lopes abandonou um debate em direto na televisão sobre a privacidade dos políticos depois de ser mostrada uma foto sua numa festa nos anos 1990. Nela, aparece com uma fita vermelha na cabeça num cruzeiro da discoteca Kapital, imagem que à época fez capa na revista “Caras” e que suscitou grande escrutínio por dar corpo à fama que tinha de “bon vivant”.

No verão de 2005, já em pré-campanha (embora não assumida) para as presidenciais, Cavaco Silva levou a família de férias ao Brasil, assim como um repórter que relatou os pormenores da viagem
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Como essa, há outras tantas histórias que resistem à passagem do tempo, quais peças museológicas. É o caso da mítica dança de Jerónimo de Sousa, registada em vídeo, na passagem de ano de 1995/96. Ou das férias, no verão de 2005, de Cavaco Silva no Brasil com toda a família – que levou atrás um repórter da revista “Sábado” para relatar todos os pormenores da viagem num retrato de família feliz. Em matéria de viagens, Paulo Portas também entrou para o rol quando se instalou num luxuoso resort do Dubai para uma semana de férias e deu azo a um texto publicado no extinto jornal “24 horas” com o título “Os 1001 luxos de Portas nas Arábias”. Só que no campo dos momentos exóticos, Mário Soares ganhava a todos – não só nas visitas oficiais, também a nível particular. Soares trouxe um lado descontraído e informal à política, numa excentricidade muito própria e não resistia a criar um bom boneco para as objetivas durante as viagens. A foto do antigo presidente montado na carapaça de uma tartaruga gigante, nas Seychelles em 1995, é o testemunho maior e deu muito que falar.

Mulheres deputadas nas redes sociais

Façamos “forward” para a atualidade. A ex-deputada bloquista, psicóloga e atual comentadora política Joana Amaral Dias colecionou muitas críticas pelas partilhas de imagens em biquíni no Instagram (onde conta 44 mil seguidores) e por assumir um lado mais sensual. Isso nunca a travou. “Estamos no século XXI. Os políticos são pessoas, têm família, vida social, férias. Não estamos a falar de reis nem rainhas encerrados em torres de marfim, em relicários que devem ser adorados como se fossem deuses.” Já sentiu todo o tipo de preconceitos na pele, ora porque “uma deputada não devia aparecer de biquíni”, ora por ser “exibicionista”.

A ex-deputada bloquista Joana Amaral Dias colecionou críticas por partilhar fotografias ousadas

“Uma modelo ou atriz de biquíni não é propriamente assunto. É a ideia patética de que as mulheres que têm profissões intelectuais não podem ser bonitas ou têm que ser recatadas.” Nunca sofreu consequências políticas, ninguém nunca ousou usar isso como trunfo. Admite, porém, que “esta postura baralha um bocado as pessoas”. “Mas ela é vaidosa? É atleta? Ao mesmo tempo discute um Orçamento do Estado? Como se as coisas não pudessem coexistir.”

Mário Soares era campeão nas histórias exóticas, em viagens oficiais ou particulares. A imagem que o mostra no dorso de uma tartaruga, nas Seychelles, é prova disso
(Foto: João Trindade/Lusa)

Cristina Rodrigues, ex-deputada do PAN e agora assessora parlamentar do Chega, também vai levantando o véu da vida privada no Instagram. Reconhece que a exposição pode interferir com a imagem de seriedade que se pede a um político, “mas não devia”. “A credibilidade dos políticos deve ser avaliada pelo seu trabalho e pela sua conduta enquanto agentes políticos, salvo as devidas exceções”, reage. E defende que quem exerce um cargo político “não se deve inibir de sair, ter os seus amigos e divertir-se como entender”. Mas isso não significa, ressalva, que não deva haver limites. Aliás, impõe esses limites a si própria. Antes de publicar o que quer que seja nas redes, tem o “cuidado de avaliar”. “Porque sei que sempre que o faço estou sujeita a crítica. Por exemplo, evito expor demasiado o corpo, partilhar fotografias com familiares, amigos ou espaços íntimos.”

Certo é que a janela que se vai abrindo para o lado privado – de forma voluntária ou involuntária – ainda é, na sociedade pós-moderna, um caminho sinuoso. Vejamos o caso de Adolfo Mesquita Nunes. Depois de assumir a sua homossexualidade numa entrevista ao “Expresso”, em 2018, isso chegou a ser arma de arremesso político quando Fernando Rosas, um dos fundadores do Bloco de Esquerda, usou a ironia para dizer que o CDS “é tão moderno” que até tem “um dirigente gay”.

A divulgação de imagens de jovens em topless na casa de verão do então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi virou um escândalo sexual e político

E se viajarmos para fora do país, a vida privada a imiscuir-se na vida política é um novelo de dramas sem fim. A começar em Silvio Berlusconi, antigo primeiro-ministro italiano que rendeu muitas polémicas, com o escândalo da publicação de fotografias que mostravam várias jovens em topless na sua casa de verão na Sardenha. E a acabar em casos menos conhecidos, como o do deputado democrata Anthony Weiner, nos Estados Unidos, que renunciou depois de publicar fotos suas seminu numa rede social. Ou a história do político britânico John Sewel, que se demitiu depois de surgir num vídeo a consumir cocaína com prostitutas. Aí, o escândalo assumiu contornos mais graves porque Sewel presidia um comité de conduta dos deputados e sempre defendeu uma posição muito punitiva.

Casa de verão do então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi
(Foto: DR)

Se de um lado está a tentativa de preservar a imagem de políticos-modelo de boa cidadania, do outro abre-se a porta para a intimidade, que mostra seres humanos, com falhas, numa potencial (ou não) aproximação aos cidadãos. Como diz o politólogo André Freire, “os políticos são pessoas como nós e é assim que os devemos considerar, só que a sua atividade profissional implica a prestação de contas”.