Senhoras com alguma instrução ensinavam o alfabeto e a tabuada, letras e números em suas casas, onde recebiam crianças dos três aos dez anos. Raspavam etiquetas de madeira de sacas de bacalhau para escreverem o abecedário. A história da educação popular escreve-se numa terra do interior e destapa uma realidade, não muito distante, de outros lugares do país. Há um projeto que protege esta herança cultural. Um legado que não vai desaparecer.
Maria de Fátima Galvão no bilhete de identidade, dona Fátima no trato pela vila, mestra de Murça, recebia em casa meninos e meninas dos três anitos até à quarta classe, aos 25 de cada vez. Os mais pequenos, que ainda não tinham entrado na escola, andavam mais à vontade, queriam brincar. Colocava uma manta no chão, ensinava-os a ler o abecedário, o aeiou, escrever o nome, pouco mais. A conversa era outra com os alunos da primeira à quarta classe, aí a exigência aumentava. Alfabeto completo, tabuada completa, tudo a eito, da frente para trás, de trás para a frente, na ponta da língua. “Tinham de fazer os deveres marcados na escola, tinham de estudar”, vinca dona Fátima. Ninguém saía com trabalhos por fazer.
A sua casa era uma escola fora da escola, mesa da cozinha cheia de livros, lume aceso nos dias frios, terraço transformado em sala de aula no tempo mais quente, quintal aos pés. Uns levavam bancos e cadeiras de madeira, alguns marcavam o nome debaixo do assento, outros levavam escalfetas para enganar o frio. “Foi maravilhoso, ainda hoje gostava de os ter ao pé de mim”, confessa aos 74 anos. Tornou-se mestra aos 45, depois de lavrar campos, servir e fazer limpezas. Mas era como se o seu destino estivesse traçado por mais voltas que desse. “Adorava crianças e o meu sonho era ser professora.” A vida não deixou, calou-lhe a vontade. “Os meus pais tinham muitos campos e toca a trabalhar.” Quarta classe feita, não havia outra opção naquela paisagem rural.
Isabel Breia entra em casa da dona Marquinhas, outrora sua mestra, conhece-lhe os cantos, decalca o caminho de menina, de dias e anos que ali passou e do tanto que aprendeu. Um lanço de escadas, agora de madeira, antigamente de pedra, ligeira curva, um pequeno hall, cozinha em frente, contornada pela direita até um corredor estreito e comprido. Era ali que estavam os bancos dos rapazes de um lado, o das raparigas do outro, sem mesa a meio, lousa no colo. Desenha tudo com as suas mãos que acompanha por palavras que lhe saem de modo emocionado. “De manhã, aprendíamos a tabuada e o abecedário, tínhamos de saber de cor e de trás para a frente. Almoçávamos e à tarde era a aritmética, fazer contas”, recorda. Desse corredor, que era a sala de estudo, via-se o quintal da dona Marquinhas, com casa de banho ao fundo, e pela sombra do sol na cobertura de latão, adivinhava-se a hora do lanche da tarde.
“Era meiguinha, também ralhava, muito educada, sempre ocupada.” Isabel Breia recorda a dona Marquinhas. As cópias eram feitas nas lousas, chegavam a ser 20 para uma cópia só, os erros apagavam-se com pequenas almofadas ou com o cuspe nas mãos. Cada um levava a sua merenda. Na cozinha, havia um caneco de madeira com água e um púcaro de metal por onde bebiam. Faziam fila, aguardavam pela sua vez para beberem pelo mesmo recipiente, pelo mesmo bico. Esse púcaro ainda ali está, numa estante da cozinha. Isabel Breia foi aluna da mestra dona Marquinhas desde os cinco anos, quando entrou na escola já sabia ler e escrever. Continuou a estudar, foi professora primária durante 33 anos, reformou-se há 18.
Ser mestra era como ser professora primária. Dona Fátima sabia lidar com a canalha, gostava de ter criançada sempre à volta. “Levava-os devagarinho. Usavam marcadores de todas as cores para marcar os números, para marcar as letras.” Faziam cópias, ditados, contas e desenhos, o que era preciso estudar. Ela gostava mais de Matemática do que de Português, confessa, na primária era rápida a somar, multiplicar, dividir números. “Não queria que ninguém fizesse as contas mais depressa do que eu”, lembra.
Ensinava como tinha aprendido. Sem ralhar, sem levantar a voz. “Não tinha mão de bater, educava-os de outra forma, dava-lhes bons conselhos. Dizia-lhes para se portarem bem hoje para amanhã darem bons meninos.” Uns tinham mais jeito para as palavras, outros para os números. Se não havia deveres, a mestra inventava-os, havia outro caderno para os trabalhos não programados.
Dona Fátima foi mestra até quase aos 60, entretanto a mãe adoeceu, cuidou dela. Ficam as recordações daquele tempo, as visitas que os antigos alunos lhe faziam, as conversas que ainda acontecem quando a veem na rua. Fica o caderno do menino João, o jeito do Luís para o desenho, a doce Paula que partiu para o Luxemburgo depois da primeira comunhão, o puto rebelde que não queria ler e estudar e depressa mudou de ideias quando chegou a sua casa. As saudades não passam. “O sonho de ter as crianças ao pé de mim foi muito bom.” A mestra não esconde a emoção desses tempos.
Aprender a cantarolar ao som do acordeão
Havia criatividade e imaginação numa terra pobre, do interior, isolada, sem muitas possibilidades, que lentamente ia mingando com a emigração. As mestras aproveitavam as etiquetas de madeira das sacas de bacalhau, de encomendas de alimentos, das solas e dos cabedais. Raspavam os nomes dos fornecedores para escreverem as letras do abecedário em quantas linhas coubessem. Isabel Breia ainda se lembra da dona Marquinhas de avental posto a esfregar essas etiquetas, a limpá-las bem limpas para escrever as letras em duas, três carreiras, as que fossem possíveis.
Dona Marquinhas tinha escola, instrução, o quarto ano do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Talvez tenha sido a primeira mestra em Murça, nasceu em 1905, morreu em 1999, casou-se aos 20 anos com José Teixeira, o marido caçador, o marido músico que tocava acordeão que, várias vezes, era a banda sonora para a tabuada e o alfabeto ditos a cantarolar naquele corredor estreito com várias janelas.
No mês passado, a mestra foi homenageada pela terra, pelos antigos alunos, colocou-se uma placa na fachada de sua casa. “Aqui foi a casa de saber e do conhecimento iniciais, para várias gerações, por obra de D. Maria da Conceição M. Teixeira (D. Marquinhas da mestra).”
António José Meireles andou na mestra Marquinhas dos seis aos dez anos, tal como as suas irmãs. Foi um ano antes de entrar na escola, aos sete. “Não havia mais nada, a maior parte dos alunos andava lá, era uma maneira de aprender alguma coisa e estarmos entretidos”, diz. O caminho era curto, 50 metros da escola a casa da mestra, apenas uma rua a percorrer, virar à direita, alguns passos à direita, e ali estava a casa de dona Marquinhas. “A canalha toda gostava de lá andar, levávamos merenda, o lanche. Criámos uma certa camaradagem entre nós. Havia muitos miúdos, de oito, nove anos, que tinham de ir trabalhar quando chegavam a casa.” Eram outros tempos.
Afonso Fernandes, engenheiro agrónomo, bombeiro em Murça, andou na mestra Fátima. Ele e o irmão gémeo Tiago. Saíam da escola, mais uns quantos colegas, 15 minutos a pé e estavam em casa da mestra depois da escola. Caminhada na galhofa, depois era hora de fazer os deveres. “A dona Fátima não era ríspida.” Se era para trabalhar, era para trabalhar, se não havia deveres da escola, havia coisas para rever, cópias para escrever. “O meu pai tinha andado nas mestras e notava que havia uma evolução muito maior, sobretudo na parte do Português e da Matemática.” Vai daí, os filhos seguiram-lhe as pisadas.
Os pais trabalhavam, os filhos tinham quem os orientasse nos trabalhos de casa. “Nos tempos livres, havia sempre umas coisinhas para fazer, por vezes, brincávamos no pátio. A dona Fátima era exigente.” Queria todos os seus alunos preparados. Quando Afonso não tinha deveres, era certinho. A mestra pegava no outro caderno e lá anotava as tabuadas que eram para fazer, os textos para copiar.
Dona Fátima confirma, talvez seja a única mestra viva em Murça para contar a história. A sua história que se cruza com outras. As mestras cuidavam e ensinavam, transformavam as suas casas numa espécie de pré-escola e de ATL da altura, uma resposta social a uma necessidade de famílias numerosas de uma terra do interior, com muito campo para lavrar, com muito para fazer. As mestras, designação popular, cuidavam das crianças, iniciavam a aprendizagem, ajudavam nos trabalhos da escola. Faziam o que podiam, como sabiam.
Saberes, vontades, necessidades
Um antigo edifício de uma escola primária de Murça, de 1905, do tempo de meninos para um lado, meninas para outro, que vem da monarquia e atravessou a república e a ditadura, é hoje um guardião de histórias com o nome CITRIME – Centro Interdisciplinar Transfronteiriço e Inter-Regional de Memória da Educação, criado em janeiro de 2020, como polo de investigação histórico-pedagógica e de formas de divulgação criativas. Tem uma sala dedicada às mestras, às nove identificadas em Murça, numa exposição aberta ao público com fotografias a preto e branco dessas senhoras – Fátima, Marquinhas, Rita de Santa, Inês, Maria Amélia, Miquelina, Alzira, as meninas Ermelindinha e Carmelinda. O espólio foi recolhido, preservado, salvaguardado. Cadernos antigos, uma braseira, uma escalfeta, uma secretária da dona Marquinhas, livros da tabuada, de letras e números, a lousa, bancos e cadeiras de madeira de antigos alunos, botões que serviam para contar, duas palmatórias, o rapa-tira-põe-deixa. Dona Fátima conhece de cor os objetos, mostra a fotografia de sua casa, o seu retrato, olha para os bancos, um deles é do seu aluno Afonso Fernandes.
As memórias das mestras de Murça fazem parte do projeto Raízes da Educação para o Futuro (REduF) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A Câmara de Murça é parceira. Margarida Louro Felgueiras, professora de História da Educação, agora reformada, investigadora, autora do livro “Para uma História social do professorado primário em Portugal no século XX”, coordena o projeto que envolve uma equipa interdisciplinar e um estudo aprofundado de um concelho de Trás-os-Montes e Alto Douro. “A história da educação foi feita muitas vezes sem ter em conta a realidade, é preciso vir ao terreno ver como as coisas se passaram”, repara. Sempre se interessou pela educação, em compreender como funcionava e como tudo cria uma mentalidade. Esta é também a história do abandono da educação num país rural.
No final, haverá um livro sobre dois séculos de educação em Murça, XIX e XX, em que as mestras terão um capítulo importante. “O fundamental é, por um lado, compreender que a população tem saberes, vontades e necessidades, e que a educação se insere nesse território, não é num campo vazio, quer no passado quer no presente.” A comunidade é feita de pessoas de carne e osso. “De alguma maneira, é um convite a fazer pensar também os professores nessa ligação com a comunidade de que se fala muito e que, às vezes, há muita dificuldade em pôr em prática. Por outro lado, é considerar as comunidades como portadoras de saber e não como ignorantes.”
As mestras de Murça, e de outros lugares do país, são uma resposta social. E esta educação popular não tem tido lugar na história. “Queremos romper um pouco com essa imagem estática que se tem do passado da educação e da educação primária muito voltada para o Estado Novo, como se não tivesse existido educação no país. As pessoas sempre encontraram formas de tratar da sua vida”, refere Margarida Louro Felgueiras.
A questão das mestras é um dado importante neste projeto. As suas motivações e origens sociais são diversas. E quem são estas senhoras? “São pessoas que têm a quarta ou a terceira classe, ou até com mais educação no sentido de terem o quarto ano de liceu ou alguma escolaridade mais avançada. Ser mestra era trabalhar em casa, coadunava-se com a vida doméstica, com os filhos que algumas tinham.” Ensinavam os números, ensinavam o alfabeto, a desenhar o nome. E compunham o rendimento familiar, chegavam a receber cinco escudos por criança.
Isabel Breia está na origem do projeto, mesmo antes de tudo começar, de tudo acontecer. Lutou e luta para que as memórias não se percam quando começou a assistir ao encerramento das escolas à sua volta. Sempre acreditou que os materiais têm voz e vez. “Preservar o património também é educar”, defende. Este sonho, um sonho seu, está a concretizar-se à frente dos seus olhos. As histórias, memórias e objetos das mestras de Murça não vão desaparecer. É um legado com lugar cativo naquele pedaço de território. E haverá outros lugares onde a história está por contar. Por escrever.