Aqui os animais são sempre bem-vindos

No centro da cidade do Porto, o cat café de Fátima Meireles e Joana Rocha alberga 13 gatos (Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Yang, Windu e Beccas conhecem lojas, centros comerciais, restaurantes e até hotéis. A possibilidade de permanecerem em espaços públicos é uma conquista para a dignidade dos companheiros de quatro patas, mas, tanto nos hábitos como nas leis de bem-estar animal, Portugal ainda está atrasado.

Não fosse o próprio nome e o logótipo à entrada ter a silhueta de um gato e, à primeira vista, nada denunciaria que este restaurante é, de alguma forma, diferente. Há mesas, cadeiras e uma vitrina que expõe os bolos e tartes frescas da tarde. O movimento é próprio da hora de pós-almoço: três mesas ocupadas com pessoas a beber café. Atrás do balcão estão as donas e uma funcionária. Percorre-se toda a primeira sala e não há sinal de animais. Nada faz parecer que é aqui um dos restaurantes pet friendly do centro do Porto.

Quem elucida é Fátima Meireles, uma das sócias de O Porto dos Gatos: “Está ali a protagonista de hoje”. Yang, deitada no chão, ao lado do dono, estava ali, sim, discreta. Na mesa mesmo ao lado do balcão, ninguém dá pela presença da cadela, que se mostra serena, mesmo com o aproximar de pessoas.

Pedro Castro, o dono de Yang, é cliente assíduo desde a abertura, em 2018. À inauguração veio ainda com Brownie, uma outra cadela que tinha, mais velha, que entretanto faleceu. Com a chegada de Yang a rotina manteve-se, até porque não tem muita escolha. “Pet friendly aqui no Porto só conheço este e outro café”, sentencia o portuense, que se mudou recentemente para Gaia. Lá, ainda não encontrou nenhum espaço como O Porto dos Gatos e, por isso, apesar de as visitas serem menos frequentes, faz questão de continuar a passar por cá.

“E ali ao fundo estão os nossos gatos”, continua a visita ao espaço. Fátima Meireles e Joana Rocha são proprietárias de O Porto dos Gatos, mas a ideia não surgiu da vontade de ter um restaurante, mas antes do trabalho que vêm a fazer, por conta própria, há mais de 20 anos: resgatar e cuidar de gatos de rua. Conheceram-se nessa missão e decidiram abrir o espaço no ano em que a lei da permanência de animais em espaços de restauração foi aprovada. No entanto, lamentam as sócias, não há legislação própria para um cat café, como se definem, um local já pensado para albergar gatos no interior. Joana Rocha explica que têm de se reger pela lei geral dos estabelecimentos. “Por isso, juntámos informação da ASAE, da Delegação de Saúde e da Direção-Geral de Veterinários e criámos o espaço com todas as regras de saúde, higiene e segurança.”

A lei geral de que Joana fala apenas limita a permanência de animais na zona onde a comida é confecionada. “Aí, só mortos”, ironiza a dona do espaço. “O que não acontece aqui, porque somos um espaço vegan, mas as pessoas têm nojo dos animais, de uma vaca, por exemplo, mas depois têm-na no prato para comer. Assim já não têm nojo.”

Por assumirem o conceito pet friendly até no nome, acreditam que isso afasta quem, à partida, não gosta de partilhar o espaço com animais. “Nunca tivemos queixas ou problemas. As únicas situações complicadas estavam relacionadas com a personalidade das pessoas”, assegura Fátima Meireles, garantindo que “com os animais é tudo tranquilo”.

Os gatos que Fátima e Joana resgatam estão no espaço a seguir ao balcão, para não ficarem stressados com a presença de outros animais, que ficam na primeira sala. Gatos, dizem, é raro alguém trazer, até porque não é da natureza desses animais serem passeados. Mas, fazendo as contas, cães também são apenas um ou dois por mês. “Fala-se muito do assunto, mas há pouca gente efetivamente a trazer os animais para estes espaços.” Uma das explicações levantada por Joana Rocha é o número reduzido de espaços com política pet friendly, ou seja, “como há muitos locais onde o animal ainda tem de ficar à porta agarrado a um poste, não há o hábito de andar sempre com ele”. “A nossa cultura ainda é muito de ter o cão em casa”, completa a amiga e sócia Fátima Meireles.

Yang, de quatro anos e meio, é a companhia diária de Pedro Castro, cliente habitual de O Porto dos Gatos
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Para Pedro Castro, não existem mais espaços por falta de conhecimento. “Tinha um café perto da minha casa em que o dono não sabia se podia ter animais. Os proprietários ainda não têm acesso à informação.” Dar a conhecer os bons exemplos é uma das formas que o portuense tem para que mais espaços acolham esta política, que, acredita, é positiva para todos os que veem o animal como parte da família. Não entra nas lojas com Yang, não acha prático, mas também porque ainda não há muitos espaços que vejam com bons olhos a entrada de animais. Já em hotelaria, sempre que vai de fim de semana, tenta levar a companhia de quatro patas.

Não é só aceitar animais

Tal como a cadela de Pedro Castro, Windu também já está familiarizado com hotéis. É, como lhe chama a própria tutora, o “filho” de Francisca Baltazar. A portuense, de 25 anos, trabalha no bar e restaurante do hotel Selina e, tanto por ser cliente como trabalhadora, o cão acaba por usufruir do espaço. “Quando venho trabalhar trago-o todos os dias durante umas horas.” Mas, nos fins de tarde, também vem aproveitar, fora do horário laboral, a esplanada do espaço, sempre na companhia do fiel amigo.

Marisa Reis fala de “uma tendência pet friendly muito mais acelerada nos hotéis do que na restauração”. Por norma, justifica a ex-provedora do Animal de Lisboa, porque não há contacto próximo com comida e porque na maioria das vezes não há partilha de espaços comuns, acabando o animal por estar restrito ao quarto. “Por alguma razão acha-se que as patas dos animais são mais sujas do que os sapatos das pessoas, apesar de calcarem o mesmo, mas este tipo de valores sociais são mais diluídos nos hotéis.”

No caso da hotelaria, a lei recua a 1995, permitindo que os proprietários aceitem animais, com a condição de ter anunciado ao público um regulamento interno. Nos dias de hoje, com o tema dos animais de estimação mais visível, hotéis que aceitam animais “já é algo normalizado”, diz Marisa Reis, também co-coordenadora da pós-graduação em Direito Animal da Universidade de Lisboa. Os próprios motores de busca de empreendimentos, refere a especialista, já têm a opção de selecionar apenas espaços que aceitam animais, o que poderá ser reflexo da grande procura por essa política.

Mas, para Francisca Baltazar, um hotel que restrinja o animal ao quarto não é verdadeiramente pet friendly. “Quero um espaço agradável para mim e para ele.” E, vinca, ficar o animal fechado no quarto não é confortável. Para o bem-estar animal é preciso que este tenha acesso aos mesmos espaços que o dono e que tenha condições para as necessidades fisiológicas do animal, resume a jovem, salvaguardando sempre o bom senso. “Claro que ele não vai estar no meio do caminho, a perturbar o trabalho dos funcionários, ou solto quando está muita gente ou outros animais. Mas, se ele está sossegado como agora, qual é o mal de partilhar o espaço com outras pessoas?”. De facto, Windu, nome inspirado na personagem da famosa saga Star Wars, está deitado junto à dona. Toda a gente que passa cumprimenta o pequeno animal de pelo curto e cinzento.

Francisca Baltazar trabalha no Selina Porto, que também frequenta habitualmente como cliente com o seu cão Windu
(Foto: Amin Chaar/Global Imagens)

“A política pet friendly é positiva para o negócio, não traz muitas despesas e cativa e fideliza clientes como eu, que veem o cão como um filho”, defende a jovem do Porto. Essa é a política do Selina. Inaugurado em 2018 e atualmente com seis unidades em Portugal, desde o início que a política do hotel do Porto é, mais do que aceitar animais, que eles usufruam do espaço, no qual existe zona para necessidades fisiológicas e ração e água disponíveis.

Quanto a queixas, Ana Pacheco, destination manager do grupo Selina, afirma que foram muito poucas, um número insignificante face ao impacto positivo. “Para os negócios”, diz, “é positivo porque leva a clientes satisfeitos e a marketing de passa-a-palavra”. No Selina Porto & Cowork, em 2021, foram cerca de uma centena as reservas com animais de companhia.

A normalidade ainda não chegou a Portugal

Lucas Bernmier, namorado de Francisca Baltazar e “pai” do Windu, é francês, o que ajuda a conhecer outras realidades. Lá, a atitude para com os animais é diferente e, sempre que passam férias em França, o cão é companhia constante em todos os passeios.

É também o caso de Pedro Castro. Ainda com a cadela Brownie, mudaram-se algum tempo para Santiago de Compostela, em Espanha, que visita agora regularmente com Yang. “É totalmente diferente”, garante, num país onde podia entrar com a cadela até em grandes cadeias de retalho ou num hipermercado. “Faz falta ter mais possibilidade cá, porque, se os outros países têm, por alguma razão é.”

Marisa Reis, especialista em Direito Animal, corrobora que Portugal ainda não está a par de outros países. “Conheci a realidade alemã por volta de 2009 e já nessa altura era habitual levar o animal para todo o tipo de espaços”, conta, salientando que quem trouxe o debate para a realidade portuguesa foi o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), uns anos mais tarde. Mas só em 2017 é que foi promulgado o estatuto jurídico dos animais, reconhecendo-os como seres dotados de sensibilidade.

Para o centro comercial Alegro Alfragide foi natural, na sequência do novo estatuto dos animais e ainda nesse mesmo ano, adotar uma postura dog friendly. Foram o primeiro espaço comercial a fazê-lo em Portugal. Para a decisão pesou também os pedidos de alguns clientes e a atenção às mudanças nas famílias, revela Filomena Conceição. A diretora de marketing da Nhood, empresa que gere o grupo Alegro, frisa que, já em 2017, se foram apercebendo de que o perfil de família tradicional estava diferente. “Não era só o típico pai, mãe e dois filhos. Agora, um animal de estimação também é parte da família, e queríamos adaptar-nos.”

Beccas e Inês Taquelim foram das primeiras a usufruir dessa nova realidade. Ainda antes de 2017 e da política dog friendly, o Alegro Alfragide abriu um concurso para selecionar a “cara” do shopping, a mulher da Margem Sul e a labrador castanha ganharam. O que deu a Beccas o estatuto de celebridade nos corredores do centro comercial. “Toda a gente a conhece.” E até no próprio nome tem direito a reconhecimento, com um título à altura do protagonismo: “A princesa chocolate”.

Inês Taquelim e a labrador Beccas são a cara da política dog friendly do centro comercial Alegro Alfragide
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

A visita ao Alegro é regular, pelo menos semanalmente. “Sempre me deixaram entrar nas lojas com ela, toda a gente gosta e até acha piada”, tanto lojistas como outros clientes, refere Inês Taquelim. Beccas vai para todo o lado com a dona, que não recorda nenhuma experiência negativa em locais públicos. “Até na farmácia, uma vez, ia deixá-la à porta e disseram que podia entrar com ela à vontade.” Vê a cadela como uma filha e acredita que a tendência para mais espaços pet friendly é sinónimo de liberdade para fazer a vida acompanhada pela amiga de quatro patas.

Para preparar este serviço, o grupo Alegro reuniu uma equipa multidisciplinar de veterinários, associações de animais, hospitais e responsáveis legais, de saúde e de segurança. Devido ao trabalho prévio de pesquisa, explica Filomena Conceição, tomaram a decisão de restringir o espaço a cães. “São os próprios veterinários a dizer que não faz sentido ter gatos e também não tivemos clientes a pedi-lo.” O objetivo sempre foi conseguir um espaço agradável aos cães, com inclusão de uma casa de banho canina, percurso próprio sinalizado, formação à equipa de limpeza e um pré-registo obrigatório. O resultado foi tão positivo que outras empresas acabaram por pedir aconselhamento.

Devido ao registo prévio que é necessário fazer no balcão de informação, os donos dos animais que visitam o centro comercial “são pessoas informadas que entendem que este não é o espaço preferencial de passeio, mas temos esta política para conveniência dos clientes”, esclarece Filomena Conceição. Atualmente, há 500 cães com registo no Alegro Alfragide e cerca de 30% das lojas do centro a aderir à política. Algumas, realça a responsável de marketing, até têm a tigela com água à porta. O Alegro Setúbal tornou-se dog friendly no ano passado. Sintra e Montijo preparam-se para adotar a política ainda este ano.

Há ainda muito a fazer

Há três milhões de animais registados no Sistema de Informação de Animais de Companhia, obrigatório para cães, gatos e furões. Mais de 80% são cães. O último estudo da GfK sobre o assunto, datado de 2018, falava de quase seis milhões de animais de estimação em Portugal, em que mais de 50% das famílias tinham, pelo menos, um. Estes números parecem esclarecer que a política pet friendly, mais do que uma moda, é uma questão de hábito.

“Os novos estabelecimentos que vão abrindo, com políticas verdes, ambientalistas e vegan ou vegetarianos, têm maior propensão para permitir animais no interior”, destaca Marisa Reis. Não haverá um número maior de estabelecimentos com esta política ainda por medo de perderem clientes, mas, admite a especialista em Direito Animal, é uma questão de aceitação social e de “dar tempo”. “Vai e tem de acontecer naturalmente.” Para Marisa Reis, ainda há uma grande diferença na realidade rural e citadina. “A discussão dos espaços pet friendly é da cidade porque, no resto dos territórios, o animal ainda é visto como força de trabalho e não como parte da família.”

Apesar de a ex-provedora do Animal de Lisboa encarar os estabelecimentos pet friendly de forma positiva, “falta fazer muito quanto à proteção dos animais, que, noutros países, já não é questão há muitos anos, pois têm toda a proteção concebida, até pela Constituição”. Fala de condições e fiscalização nos abrigos, esterilização, controlo de animais errantes, mais acesso à saúde veterinária. “Deixarmos entrar os animais no comércio e na restauração dá-lhes maior dignidade social, mas não vai resolver os assuntos urgentes.”