Daniela viu-se obrigada a procurar um segundo trabalho quando o valor do crédito à habitação subiu, a par de tudo o resto. Maria, além de ser administrativa a tempo inteiro durante a semana, está num bar aos fins de semana para conseguir um rendimento extra. Gabriel arranjou um full-time e um part-time desde que chegou do Brasil, em abril, na esperança de conseguir arrendar um apartamento. Ter dois trabalhos é já a tábua de salvação de muitos, numa época em que a inflação caminha galopante e rouba condições de vida. É a necessidade a ditar a procura. Mesmo que isso sacrifique saúde, vida familiar e social.
Nos últimos tempos a história repete-se em loop. O dinheiro não chega até ao final do mês. “Tenho que usar cartões de crédito e depois é uma bola de neve.” Daniela Gonçalves, 41 anos, é responsável de Recursos Humanos numa empresa tecnológica em Braga há 13. Começou há poucas semanas num segundo emprego no ramo imobiliário, em que ganha à comissão, e já anda em busca de um terceiro trabalho, mais fixo, para dar conta do aumento do custo de vida que chegou repentino, que nem furacão, a deixar estragos por todo o lado. Já lá iremos.
Segundo dados cedidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), no segundo trimestre deste ano, havia cerca de 240 mil trabalhadores em Portugal que acumulavam dois ou mais empregos (5% do total de pessoas empregadas). O que põe o país em níveis de 2011, ano em que Portugal recorria a ajuda financeira externa, que levou à chegada da troika, em plena crise. O número absoluto aumentou nos últimos anos, de acordo com o INE. Em 2020, eram pouco mais de 187 mil e no ano passado eram 229 mil os trabalhadores com mais do que um emprego. E a inflação, que caminha galopante, poderá vir enegrecer mais a pintura.
Voltemos à cidade dos arcebispos. Daniela é mãe solteira, tem duas filhas, uma prestes a fazer 20 anos e outra com 15. Comprou casa em julho de 2021, “naquela altura boa em que a taxa de juro estava negativa”. Era objetivo de vida: comprar antes de fazer 40. E cumpriu. “Mas agora está a ficar um bocadinho assustador. Tenho uma filha no 10.º ano, outra na universidade e sou sozinha a ganhar para casa. Recebo cerca de 100 euros de pensão de alimentos de cada uma”, conta.
Além do crédito à habitação, ainda tem um crédito pessoal, que acumula com as despesas da casa, telemóveis, televisão, condomínio, gasolina, propinas. “Tenho muita coisa a meu encargo. A minha taxa de juro do crédito à habitação é variável, já foi revista em agosto e tive um aumento de 80 euros. Foi aí que comecei a ficar mais apertada. Daqui a uns meses vai subir novamente. E mais. Costumo fazer compras mensais e gastava à volta de 150 euros. Neste mês, com o aumento dos preços, gastei 240. Saí do supermercado e deitei as mãos à cabeça.”
Daniela já tinha tido um segundo emprego no ramo imobiliário e agora viu-se obrigada a recorrer novamente. A fazer-se à vida. “Porque não estou a conseguir suportar tudo. Estou a ficar sufocada.” É consultora imobiliária na Century 21, só ganha à comissão. “Se vender, ganho. Estou a começar e ainda não está a ser muito vantajoso, porque trabalho durante o dia e acabo por não ter muito tempo para me dedicar ao ramo. Estou à procura de um terceiro emprego, que me dê um rendimento fixo, à noite. Sei que se vai tornar extremamente cansativo, mas não tenho outra opção. Vou ter que arranjar, dê por onde der.”
Bem sabe que vai sacrificar a vida familiar e talvez a produtividade, debaixo dos avisos das próprias filhas. “Quando trabalhei antes no ramo imobiliário, conseguia gerir bem. Estava em teletrabalho e aproveitava os tempos mortos. Agora, se conseguir um trabalho fixo, acredito que depois de duas ou três semanas vá andar esgotada. Mas o que tem que ser tem muita força.” Ainda assim, assume que não vai condenar a saúde mental e, caso não dê conta de tudo, admite vender a casa. “O problema é que o mercado de arrendamento também está horrível. Primeiro, não há oferta. E depois os valores das rendas estão absurdos. Aqui em Braga, para alugar um T2 ou um T3, 600 euros não chegam. E não estou a pagar 600 euros de crédito. Ainda.”
Medida temporária para não afetar saúde
A saúde é, aliás, um alerta de Jaime Ferreira da Silva, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos, que defende que “um segundo emprego deverá ser sempre uma medida temporária, fruto de uma necessidade conjuntural”. A energia e a resiliência, sublinha, “têm limites, pelo que a manutenção prolongada de um quotidiano profissional de dois empregos irá degradar, gradualmente, a saúde do indivíduo e acabará por ter um impacto sistémico na qualidade e na produtividade, bem como na saúde e nas relações interpessoais”.
A atenção concentrada, o raciocínio, a criatividade, a resolução de problemas vão tender a reduzir à medida que o tempo passa. E, embora reconheça a necessidade numa fase de grande ansiedade associada aos baixos rendimentos e ao aumento do custo de vida, o psicólogo insiste que a opção deve ser sempre “temporária”. “A exposição prolongada a horários laborais superiores a oito horas por dia cria condições propícias à síndrome do burnout. Cerca de 25% da população portuguesa apresenta sintomatologia depressiva e/ou ansiosa. Em 2021, foram vendidas em média por dia 28 mil embalagens de antidepressivos em Portugal, colocando-nos em segundo lugar no consumo de psicofármacos na Europa”, refere o especialista, que acrescenta que “qualquer prolongamento do horário de trabalho aumentará o risco de degradação das condições de saúde nas suas dimensões física e mental”. Sobretudo, diz, porque em Portugal já se trabalha, em média, mais duas horas por semana do que a média na União Europeia.
Licenciados lideram no duplo emprego
Curiosamente, hoje, mais de metade das pessoas – no total de 240 mil – que têm mais do que um emprego no nosso país são licenciadas. O número de profissionais com formação superior com duplo emprego é inclusivamente o mais alto desde que há registo. Maria Cardoso é disso exemplo. Licenciada em criminologia, não está a trabalhar na área de formação. É administrativa numa empresa do setor do mobiliário e decoração. E desde há um ano, mais coisa menos coisa, que tem um segundo emprego num bar aos fins de semana. “Uma vez que tenho a sorte de ter os fins de semana livres e de não ter horários rotativos – trabalho durante a semana das 9 às 18 horas -, assim que reabriram as discotecas, um amigo que é dono de um bar perguntou-me se estava interessada em fazer lá um part-time”, revela.
Tem 30 anos e vive sozinha, no Porto, há três, quando quis sair de casa dos pais, agarrar a independência, a emancipação. “E é impossível hoje albergar todas as despesas estando sozinha. Os preços das rendas superam metade de um salário médio. E, mesmo tendo negociado a renda para um preço aceitável, tenho que ter dois trabalhos para não viver no limite e poder ter o mínimo de qualidade de vida, passatempos, férias”, relata. Com a inflação a bater-lhe à porta, o segundo emprego tem-lhe permitido manter-se à tona. “Já noto bastante. Nas idas ao supermercado, em bens essenciais. Não estou a falar de roupa ou de produtos de beleza, estou a falar de ovos, leite, pão. Além da gasolina, que está muito mais cara. Não sei se conseguiria sobreviver neste momento se não tivesse o meu trabalho ao fim de semana.”
Abdica, muitas vezes, de jantares com amigos, de almoços de família, num fim de semana engolido por uma maratona entre o trabalho e o descanso. Tem clara noção disso. “O mais difícil é a gestão pessoal, sacrificar eventos sociais, familiares. À sexta-feira, vou trabalhar para o bar depois de ter trabalhado oito horas e estando já muito cansada. Trabalho no bar das 23 horas até às seis da manhã, são 24 horas acordada. Depois ao sábado aproveito a manhã para dormir e à noite volto a ir para o bar. É muito cansativo”, confessa. Reconhece o cansaço acumulado, só que “neste momento é mesmo a única solução”.
Não é capaz de dizer por quanto tempo vai manter o segundo emprego, não tem resposta à pergunta que mais vezes ouve. Mas emigrar é uma hipótese a ganhar cada vez mais terreno. “Já pensei em sair de Portugal, ando a ver propostas. Só ainda não avancei porque não surgiu uma em que valha a pena estar longe da família.” A possibilidade de a empresa onde trabalha se expandir para o exterior está em cima da mesa e, nesse caso, já mostrou interesse em abraçar o projeto lá fora. “Porque iria ganhar mais.”
Work-life balance a esbarrar na necessidade
Numa era em que se fala tanto em work-life balance, na promoção da saúde mental nas organizações, de novos modelos de trabalho de quatro dias por semana, “as pessoas verem-se confrontadas com a necessidade de terem dois empregos – e significando isso um aumento considerável da carga horária de trabalho diária, de horas que se perdem em deslocações entre trabalhos – é quase nonsense”. Artur Queirós, especialista em psicologia do trabalho e gerente da Alento, empresa na área da gestão de carreiras, aponta o dedo às condições de vida num Portugal desigual. “Por um lado, parece que estamos a fazer imenso esforço e a caminhar para criar condições de trabalho que garantam saúde física e mental; por outro, as pessoas veem-se na contingência de terem que tomar opções que lhes garantam condições de vida.”
No que toca à qualidade de vida que se pode deteriorar, segundo o psicólogo, não é o número de atividades que a vai definir. Mas sim o que isso representa em termos de esforço mental e físico. E as consequências nas diferentes dimensões: pessoal, familiar, lúdico-cultural. “E pode ser, de facto, impactante.” Tanto que, realça, acumular trabalho pode prejudicar a produtividade. “Por um motivo simples. Se consideramos que o número de horas diárias não deve exceder as oito, e até estamos a contemplar modelos de trabalho que permitam reduzir a carga horária para garantir mais qualidade de vida, mas também a reboque do argumento de aumentar a produtividade – um dos mais usados para defender a semana de quatro dias, porque as pessoas estão mais frescas, mais capazes de dar resposta às exigências -, está tudo dito. A pessoa estando mais cansada fica menos capaz de dar resposta.”
E os empregadores lidam bem com o facto de os funcionários terem outro emprego? “Diria que não. Precisamente por esta preocupação. Os relatos que vou recebendo vão nesse sentido. Os gestores e empresários têm receio da falta de foco, do cansaço exagerado. Porém, se contratualmente não é exigida a exclusividade, não existe espaço para a questão.” E há um contraponto a pesar, e muito.
“Temos que perceber o que leva as pessoas a tomar essa decisão. A partir do momento em que uma atividade representa as condições necessárias para que a pessoa tenha qualidade de vida, ela não sentirá o mesmo ímpeto de procurar um segundo emprego.”
Artur Queirós é perentório quando apela a que se “criem soluções estruturais, macroestruturais, para que os próprios empresários tenham capacidade de dar mais resposta às necessidades dos seus trabalhadores”. E critica a glorificação do excesso de trabalho. “O número de pessoas classificadas como workaholics é significativo, nomeadamente em gerações mais jovens. E isso deve-se a uma cultura organizacional que glorifica o trabalho. Quanto mais, melhor. Independentemente dos efeitos nocivos. Alguém dizer que trabalha muito ou em vários sítios não é malvisto socialmente. Pode haver vergonha é no motivo que leva a ter os dois trabalhos.” Só que a carreira, ressalva, não é um sprint, é uma maratona. E é preciso olhar para os efeitos a médio-longo prazo. “Alguém que é confrontado com a necessidade de ter dois empregos está longe de ser o que pretendemos para o nosso país.”
Do Brasil para a luta em Portugal
Está longe, é certo, mas as subidas disparadas no custo de vida, num país com salários baixos, deixam pouca margem até a quem encheu a mala e atravessou o Atlântico para vir em busca de mais estabilidade. Gabriel Siqueira aterrou em Portugal em abril, 10 de abril. Chegou do Paraná, no Brasil, com o sotaque na voz. “Queria vir morar para aqui, pela qualidade de vida, pela segurança, pela qualidade da educação para as crianças.” É pai de dois meninos, um de oito anos e outro de um. Veio sozinho, abrir caminho na ideia de criar as bases para a família poder juntar-se a ele mais tarde, quem sabe em abril, “se tudo der certo”. Um amigo sugeriu-lhe S. João da Madeira, “por ser ligeiramente mais no interior, ter rendas mais baratas do que o Porto, por exemplo, e mais hipóteses de emprego”.
E as expectativas cumpriram-se. Não tinham passado nem duas semanas desde que aqui chegou e já estava a trabalhar. É controlador de qualidade numa empresa do setor automóvel, num turno noturno, das dez da noite às seis da manhã, de segunda a sexta-feira. Um mês depois, Gabriel, que tem 27 anos, arranjava um segundo emprego, numa mercearia de rua, como vendedor e repositor de mercadoria, onde trabalha das 8 horas ao meio-dia, de segunda a sábado. “Quando vim, ainda não se ouvia falar muito de inflação. Mas, desde que cheguei, houve uma grande subida. Na alimentação é onde tenho sentido mais. E as rendas são exorbitantes. Por enquanto estou num quarto, mas ando à procura de um apartamento.”
Gabriel foi em busca de um segundo emprego para tentar ganhar segurança e lançar as estacas da vida que quer criar por cá. Não gosta de se acomodar e “ficar a reclamar de tudo”. “Enquanto aguentar e tiver saúde para isso, vou aproveitar. Foi uma decisão minha. Sempre corri atrás de uma vida melhor. E tive que me adaptar à situação que estamos a viver agora de aumentos sucessivos.” Não tem carro, usa a bicicleta para se deslocar entre os dois empregos. E só vê benefícios nisso. “Faço cardio todos os dias e é mais económico. Como trabalho perto, não vejo necessidade de ter carro.”
O ritmo acelerado aguenta bem, já estava habituado a trabalhar de noite – e longe da família nos últimos meses antes de vir – no Brasil. Tem a rotina cronometrada ao milímetro, numa gestão afinada que desdramatiza. “Geralmente, vou ao ginásio depois do trabalho na mercearia. Depois almoço. E durmo entre as 16 horas e as 21.30. Sendo sincero, começo a sentir o cansaço mais no final da semana. Não posso dizer que não é cansativo, tenho 27 anos e cara de 40”, brinca.
A verdade é que ter dois empregos tem sido a tábua de salvação para um imigrante num país que soma uma vida cada vez mais cara. “Tem-me ajudado muito, sem dúvida. É óbvio que estes aumentos me assustam. E estar longe da família também é duro. Um amigo que veio comigo não aguentou, voltou para o Brasil. O que mais me preocupa, neste momento, aqui é tentar encontrar um apartamento com uma renda que possa pagar. Estão ainda mais caras do que quando cheguei. Mas se não desisti até agora, não desisto mais.”